Fazia mais de um mês que Kleber Mendonça Filho não pisava em sua casa, no Recife. O cineasta embarcou para o Festival de Biarritz, na França, em setembro, de onde viajou de carro para San Sebastián, na Espanha, e seguiu para Madri. Depois, foi para Zurique, na Suíça, e cruzou o Atlântico, rumo aos Estados Unidos. Aterrissou em Los Angeles, viajou para Morélia, no México, voltou à Europa para uma passagem pela Alemanha e retornou ao solo americano. Em cada parada, exibiu seu novo longa, “O agente secreto”, em festivais e sessões especiais, e viu o peso da bagagem aumentar. A obra, cuja estreia no Brasil será nesta quinta-feira (6) e o trouxe, finalmente, de volta ao país, enfileira troféus, homenagens, críticas elogiosas e longos aplausos após as projeções.
Tem sido assim desde que o filme saiu da última edição do Festival de Cannes, em maio deste ano, com dois troféus. Venceu nas categorias de melhor direção e de melhor ator, este para Wagner Moura, protagonista da história, na pele de Marcelo, um professor viúvo que foge de São Paulo para o Recife, em 1977, durante a ditadura militar. “O prestígio conquistado ali foi muito grande. É como se, naquele momento, sem eu nem ter sido avisado, o longa tivesse entrado numa esteira rolante de campanha. É assim que o sistema, digamos industrial, funciona”, diz o diretor, em entrevista por chamada de vídeo, enquanto toma café da manhã num hotel em Nova York, pouco mais de uma semana atrás.
Por campanha leia-se uma rolagem até a premiação máxima do audiovisual: o Oscar. Escolhido pela Academia Brasileira de Cinema para representar o Brasil na categoria de melhor filme internacional, a obra também figura nas principais listas de apostas para indicados em direção e ator, numa trajetória semelhante à do bem-sucedido “Ainda estou aqui” (2024), de Walter Salles. “Você conhece muita gente, é apresentado a pessoas que fazem parte da Academia, às vezes do Bafta, e também vai construindo o lançamento nos Estados Unidos, que é muito importante”, detalha Kleber. A distribuição no país ficou a cargo da Neon, mesma produtora de “Anora”, que arrebatou cinco estatuetas no Oscar deste ano, incluindo a de melhor longa. “Sempre digo que vou aonde o filme vai. Tenho energia, amor, paciência e até mesmo curiosidade em investigar esse processo.”
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A lista dos indicados será divulgada somente em janeiro de 2026. Por mais que haja muito trabalho pelo caminho e as expectativas sejam cada vez maiores, Kleber afirma manter a serenidade. “Acabamos de começar, e as pessoas já estão lá na frente. Mas lido bem com isso. O brasileiro tem um orgulho muito grande da representação do Brasil fora do país. Esse peso, contudo, não é meu”, avisa. “Só quero fazer bem o meu trabalho. Em primeiro lugar, preciso estar feliz com o filme, que está indo longe, sendo muito bem recebido.”
Parte desse reconhecimento, na opinião do diretor, tem a ver com a maneira como o passado representado na trama ecoa no mundo contemporâneo. Afinal, o totalitarismo e a violência, marcas de regimes autoritários, têm sido ressuscitados por líderes globais e encontram adesão por algumas camadas de diferentes populações. “Ironicamente, o filme se passa em 1977, mas alguns aspectos relacionados à natureza humana não mudaram muito”, compara Kleber. “É curioso ver reações de americanos muito sensíveis ao que se passa nos Estados Unidos, por exemplo. Na Espanha, também houve um interesse muito forte, talvez, pelo próprio passado do país, com a questão da memória e a incapacidade da sociedade espanhola em lidar com o que se passou no regime de Franco. Estou curioso para saber como será a resposta no Brasil.”
O bom desempenho nas pré-estreias é também, segundo o cineasta, reflexo da visibilidade alcançada pelo audiovisual brasileiro nos últimos anos, impulsionada pela volta dos investimentos em cultura, setor negligenciado e vilanizado em governos passados. O mesmo aspecto é reiterado por Wagner Moura, ao comentar o sucesso da obra, cujo orçamento foi de R$ 28 milhões, com aportes públicos e privados no Brasil, e fundos oriundos da coprodução internacional. “Não há como falar disso sem mencionar as políticas públicas e a volta do Ministério da Cultura”, destaca o ator. “Veja que bonito: fiquei tanto tempo fazendo filmes no exterior, e o longa que me deu o prêmio mais importante da minha carreira, em Cannes, foi filmado em português.”
A primeira exibição no país se deu no Recife, cidade natal do diretor. Naquela noite de 10 de setembro, os convidados celebraram não apenas a qualidade cinematográfica do lançamento, mas toda a atmosfera que o envolve. Kleber adentrou o histórico e recém-restaurado Cinema São Luiz acompanhado por parte das 1.300 pessoas que participaram da produção, entre elenco e equipe técnica. Embalados pela Orquestra Popular do Recife e pelo grupo Guerreiros do Passo, dançaram e cantaram frevos a plenos pulmões e fizeram breves discursos diante de uma plateia em êxtase com as falas do diretor e do protagonista, que citou a capital como “vanguarda do cinema brasileiro”.
Uma história que o cineasta ajuda a escrever com a carreira iniciada como jornalista e crítico de cinema e que alcançou sólida projeção internacional já com o primeiro longa. “O som ao redor”, de 2012, foi laureado com o prêmio da crítica no Festival de Roterdã, na Holanda. A produção inaugurou também a parceria longeva que o diretor mantém com atores como Irandhir Santos e Rubens Santos, que aparecem neste ensaio fotografado no mesmo Cinema São Luiz e acompanhado pela reportagem. “Kleber funde o que há de mais relevante na atualidade e nos assuntos sociais, vem como um farol apontando coisas importantes a serem pensadas”, diz Irandhir. Rubens, escalado também para “O agente secreto”, completa: “Os trabalhos dele vêm numa crescente e todos têm em comum o fato de olhar para o passado para entendermos o presente”.
A observação descortina um traço familiar do diretor, cuja mãe, Joselice Jucá, era historiadora e morreu em 1995. “Cresci com essa mulher chegando em casa às sete da noite, com a chave do carro, a bolsa e o gravador Panasonic usado para entrevistas”, recorda-se, dizendo que ela não restringia suas investigações a “bibliotecas e centros de pesquisa”. “Todos os meus filmes têm essa presença. Eu me lembro de, na escola, sentir que a professora de História falava dos acontecimentos como se fossem distantes. Mas, na verdade, estão no hoje, explicam a gente.”
Embora Joselice tenha morrido antes de a carreira de cineasta do filho se concretizar, o diretor se impressiona com registros deixados por ela que parecem antecipar os próprios rumos. É o caso de um entrevista publicada, na década de 1980, no Diário de Pernambuco, em que a mãe falava sobre como ele se relacionava com a História. “Eu era um jovem aspirante a realizador, e ela já dizia tudo o que está acontecendo hoje. Mas não é algo do tipo ‘um dia você vai estar no Oscar’. É uma visão mais sofisticada”, ressalta.
O mesmo estofo foi importante para que ele se consolidasse como alguém interessado em dar vida a figuras tão diversas quanto complexas em seus roteiros. É notória, em sua obra, a fuga de padrões clássicos nesse aspecto. “Odeio isso porque todo estereótipo é burro, parte do pressuposto de que as coisas são de determinado jeito porque devem ser assim”, enfatiza o criador de personagens memoráveis, como o herói queer Lunga, interpretado por Silvério Pereira em “Bacurau” (2019), cuja direção foi compartilhada com Juliano Dornelles.
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“O agente secreto” segue longe das convenções. A começar por uma das personagens mais carismáticas, Dona Sebastiana, interpretada por Tânia Maria. Ela mantém, no Recife, uma espécie de refúgio para pessoas que precisam ficar escondidas das ameaças do período retratado. A desenvoltura em cena da potiguar de 78 anos fez com que seu nome figurasse em listas de apostas como outra possível indicação do filme ao Oscar, na categoria de atriz coadjuvante. “Não é a velhinha na cadeira de balanço, com seu rosário”, ressalta Kleber. “É uma senhora de quase 80 anos, cheia de gás e que vai continuar assim até quando não tiver mais energia. É elétrica, viva.”
No que diz respeito às referências à ditadura militar, velhos clichês ficaram de fora. “Existe uma forte presença, mas não há veículos do exército ou soldados. Queria construir uma atmosfera histórica a partir da minha maneira de olhar para o país”, explica o diretor. Um ponto de vista localizado, acima de tudo, no Recife. E este é um dos méritos do longa, na opinião da atriz Suzy Lopes, que voltou a trabalhar com o cineasta depois de uma participação em “Bacurau”. “Quanto mais mexemos nesse período, mais encontramos assunto”, ela diz. “E os filmes que falam sobre o tema estão sempre centrados num eixo Rio-São Paulo, embora o Brasil inteiro tenha sofrido.”
Escrito sob medida, o personagem de Wagner também é cercado de cuidados que fogem ao lugar-comum dos militantes de esquerda retratados em muitos filmes. “Desde o início, disse a ele que não o queria pegando em armas, correndo para lá e para cá, atirando em pessoas. Seria um estereótipo”, salienta Kleber, que explora diferentes tipos de masculinidades na trama. “Há traços tóxicos, mas em outros personagens. Marcelo tem uma masculinidade que considero boa, algo presente na maneira como se relaciona com o filho, o sogro e a sogra.”
Kleber é pai dos gêmeos Tomás e Martin, de 11 anos, do casamento com a produtora francesa Emilie Lesclaux. O nascimento deles, reconhece, possivelmente fez com que o tema aparecesse com mais intensidade nos roteiros. Ele cita, por exemplo, como as figuras paternas em “O som ao redor” não têm o mesmo peso, se comparadas ao novo trabalho. Ainda assim, faz algumas ponderações acerca do tema durante a entrevista: “‘Aquarius’ (2016) é sobre relações familiares e ‘Bacurau’ traz uma grande família que vive em comunidade. Não sei se sou atraído pela ideia dessa estrutura numa ótica biológica, mas no sentido de pessoas estarem juntas. Não sou um misantropo. Gosto de gente. É importante escolher com quem você está.”
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Emilie é, certamente, um desses encontros acertados. Casados há 20 anos, eles comungam uma parceria estendida ao campo profissional. O primeiro filme em que o nome dela aparece como produtora é o curta “Eletrodoméstica” (2005), dirigido pelo marido. É sempre a primeira pessoa a ler os roteiros escritos por ele e a ver uma cena pronta. “Ela tem uma capacidade de organizar e planejar que me espanta. E sem aqueles clichês de alguns produtores, de gritar e cometer assédio moral, como conhecemos historicamente. A área dela gera muita tensão, porque envolve administrar corretamente o dinheiro, pagar todo mundo e fazer o filme ficar dentro do orçamento”, afirma o diretor. “E acho que nunca foi tão reconhecida como hoje. Em algum momento, estava um pouco discreta demais.”
Tanto ele quanto a companheira têm como marcas o tom de voz baixo e as falas pausadas. Características que, de fato, fogem ao clichê histriônico frequentemente naturalizado nos sets. Bárbara Colen, cujo primeiro longa da carreira foi “Aquarius”, fala sobre a importância de ter começado num ambiente de trabalho regido por essa personalidade e empenho. “Eu me lembro que, além da grandiosidade, havia qualidade em tudo, do cenário à direção de arte, passando pela caracterização”, recorda-se a atriz, que repetiu a parceria com o cineasta em “Bacurau”. Tais aspectos fizeram com que Alice Carvalho se desdobrasse para participar de “O agente secreto”, mesmo com as gravações em curso da novela “Renascer”, da TV Globo, da qual fazia parte. “Voava para o Recife no sábado à noite, chegava no domingo, que era meu dia de folga, e ia para o set. Precisei, mais do que nunca, confiar nos colegas que estavam no entorno e no que as pessoas me diziam sobre a personagem.”
Já a portuguesa Isabél Zuaa estava de férias quando foi chamada para o elenco do novo longa e disse “sim” antes de saber qual seria o papel. “O Kleber é um amante do cinema, e isso está na maneira como ele trata tudo o que envolve o ofício, inclusive os atores”, ela afirma. “Neste filme, há um protagonista, mas todos os personagens são peças muito importantes para a trama. Isso é bonito de se ver.”
Não é por acaso, portanto, que tapetes vermelhos foram cruzados em clima de festa e ritmo de frevo. Acompanhar a escalada de “O agente secreto”, afirma Maria Fernanda Cândido, também parte do elenco, é como honrar uma construção feita, ao longo de décadas, do audiovisual brasileiro. “Não é por sorte que estamos vendo isso tudo acontecer. É fruto de muito trabalho, luta e resistência”, menciona a atriz. “Agora, o mundo tem olhos para o nosso cinema, que tem qualidade e particularidades. É bom que tenhamos esse reconhecimento internacional. Mas, para mim, ainda é mais importante que a nossa população olhe para a própria cultura, e acho que isso está acontecendo.”
Neste tópico, Kleber é um aliado inabalável. Convites para dirigir produções internacionais, ele conta, já apareceram, mas o apreço pela liberdade criativa fez com que recusasse todas as propostas até agora. “Tenho um apego muito grande por escrever minhas histórias”, justifica. “Por enquanto, estou com a sensação muito boa de que, no ano que vem, depois de um bom descanso, vou me sentar para trabalhar em algo que já quero escrever. Estou aberto a atuar fora do Brasil, mas nos meus termos. Nunca trabalharia como um diretor contratado para executar um job.”