Crédito, Getty Images
- Author, Dalia Ventura
- Role, BBC News Mundo
“Conte-me uma mentira”, pedi a Earle Havens assim que começamos nossa conversa.
Ele ficou incomodado, mas não porque se sentisse insultado. Afinal, ele é um reconhecido especialista em falácias.
Não só ele dá aulas sobre o tema na Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos, como também, na qualidade de curador de livros e manuscritos raros do Centro Stern para a História do Livro da universidade, ele supervisiona a Bibliotheca Fictiva de Falsificações Literárias e Históricas.
A biblioteca é uma extensa, excêntrica e excepcional coleção de enganos, falsificações e fraudes escritas que acompanharam nossa história cultural, desde relatos mentirosos de viagens da Grécia Antiga até extraterrestres maias inventados nos anos 1960.
A razão do desconforto de Havens não era por pedir que ele me contasse mentiras, mas sim por pedir apenas uma: “É como me perguntar qual é o meu filho favorito!”.
Mas, claro, não era só uma, era uma para começar.
Que tal a dos olhos de testemunhas da queda de Troia?
“Ah, sim, essa é muito antiga, de Dictis Cretense e Dares Frígio.”

Crédito, Bibliotheca Fictiva
“O problema era que, por muito tempo, tudo o que se sabia sobre a batalha com Troia era o que Homero contava, e as pessoas queriam saber mais sobre como foi e o que aconteceu com aquelas pessoas que de repente desapareciam do poema.
“Houve coisas que Homero omitiu. Então, existe esse desejo, esse impulso humano de preencher as lacunas.”
Isso é algo, acrescenta Havens, que também foi feito para preencher vazios deixados na Bíblia, “em particular com o Novo Testamento”.
Coisas que a Bíblia não dizia
Uma das coisas que o Novo Testamento não conta é como era Jesus Cristo fisicamente.
“Na Idade Média, decidiram remediar isso criando uma carta falsa de um cônsul romano, governador da Judeia, Públio Lêntulo, ao Senado de Roma, descrevendo Jesus.”
“É de estatura alta, mas sem excesso; garboso; (…) seus cabelos são da cor de avelã madura e lisos, ou seja, retos, quase até as orelhas, mas a partir destas um pouco encaracolados, (…) e soltos partidos ao meio da cabeça, segundo o costume dos nazarenos.”
“A testa é plana e muito serena, sem a menor ruga no rosto, agraciada por um agradável rubor. Em seu nariz e boca não há imperfeição alguma.”
“Tem a barba cheia, mas não longa, (…) os olhos cinzentos…”.
Havens lembra que foi “dessa descrição em uma falsificação medieval que provêm incontáveis representações de Jesus, e há mais de 250 manuscritos medievais e renascentistas que possuem cópias manuscritas dessa carta”.
Outra dessas lacunas tem a ver com o dia de descanso, comenta o especialista.
“Como se explica que, quando os apóstolos, que eram judeus, se converteram ao cristianismo, de repente o dia de descanso não era o sábado, mas o domingo?
“Pois com uma carta que Jesus decidiu enviar do céu… brilhante!”

Crédito, Bibliotheca Fictiva
“Ele a colocou debaixo de uma rocha com uma pequena inscrição que essencialmente dizia: Levante-me.”
“Todos os que passavam por esta rocha na Terra Santa tentavam levantá-la em vão, até que um menino livre de pecado conseguiu.”
A celestial carta claramente diz: Deves terminar a tua labuta todos os sábados à tarde, às 6 em ponto, hora em que se fazem as preparações para o dia de descanso.
Havens conta que “é, além disso, a primeira corrente de carta que conheço na história do mundo, pois diz que quem a reproduzir será abençoado e livre de tempestades e doenças, mas quem a destruir será condenado e atormentado por demônios”.
Entusiasmado, ele já nos havia contado três dos milhares de exemplos que guarda em sua memória.
“Adoro falar sobre este assunto, porque posso falar sobre algo que aconteceu há 3.000 anos ou há 400 anos, e posso falar sobre algo que aconteceu ontem.”
Com a Bibliotheca Fictiva, “confirmamos que estivemos marinando em falsidades desde a origem da cultura. Isso não é apenas um resultado distópico da tecnologia.”
A Universidade Johns Hopkins adquiriu a coleção em 2011 e, naquela época, “o termo ‘notícias falsas’ nem sequer era conhecido, e tive que explicar ao decano das bibliotecas por que precisávamos gastar uma enorme quantidade de dinheiro em um monte de coisas falsas”.
Os porquês
Convencer a universidade a investir em várias centenas de manuscritos, cartas, poemas, iluminuras, documentos, anotações que afirmavam ser o que não eram foi um desafio.
“A principal coisa que eu disse, e mantenho hoje, foi que somos uma instituição de pesquisa que busca a verdade, e a melhor maneira de entender o que é [a verdade] não é apenas olhando para coisas que são absolutamente reais, mas também compreendendo aquelas que não são: como as pessoas as concebem, como essas ideias são absorvidas pela cultura, como podem até moldar nossas ideias, nossas expectativas, gerar preconceitos e nos guiar em nossas vidas.
“Também salientei que todos nós temos nossos preconceitos; ninguém é completamente objetivo. Então, por que não ter uma coleção de pesquisa que nos ensine sobre tudo isso e com a qual possamos ensinar?”

Crédito, Bibliotheca Fictiva/Jstor
Os donos da peculiar biblioteca eram Arthur e Janet Freeman, que vinham colecionando mentiras fascinantes desde 1961, quando Arthur estudava teatro elisabetano e se deparou com John Payne Collier, um escritor e pesquisador do século 19.
Collier era uma combinação venenosa de duas coisas: um respeitado erudito e editor de William Shakespeare e um prolífico e descarado falsificador literário.
Desde então, e durante 50 anos, os Freeman se dedicaram a adicionar fraudes à sua coleção, mas chegou o momento em que quiseram que pertencesse a uma biblioteca de pesquisa.
Até então, já tinham joias como poesia supostamente escrita por Martinho Lutero, que não se destacou precisamente por ser poeta, e relatos da Papisa Joana, uma mulher muito culta do século 9 que, disfarçada de homem, foi eleita Papa, apenas para ser descoberta quando deu à luz repentinamente no meio de uma procissão em Roma.
Esse mito só foi firmemente desacreditado no século 17.
Entre as falsificações, destaca Havens, “o documento mais famoso é provavelmente a Doação de Constantino, no qual o imperador Constantino (285-337 d.C.) doava vastos territórios do Império Romano ao Papa Silvestre 1º.”
“No Palácio do Vaticano, conserva-se um afresco que a representa como um fato real.”
O documento “foi usado para justificar as guerras nas quais César Bórgia e outros tentaram se apoderar de partes da Romanha na Itália, e para engrandecer a riqueza e o poder do Papa.”
No entanto, não havia sido criado no século 3, mas sim no 8.
Isso só foi demonstrado no século 15, quando “um brilhante erudito chamado Lorenzo Valla desacreditou totalmente o texto por muitos motivos, mas sobretudo porque utilizava palavras que não existiam na época em que afirmava ter sido escrito”.
E aqui, algo a destacar: a biblioteca não guarda apenas falsidades, mas também os escritos daqueles que as revelaram como tais.
Esse foi outro dos argumentos de que Havens se valeu para convencer a universidade: “Eu disse ao decano que podíamos aprender muito com a forma como as pessoas demoliram coisas falsas.”
O método mentiroso
Para Havens, a Bibliotheca Fictiva é “um registro de uma erudição fabulosa”: não só aqueles que refutaram as mentiras, mas também muitos dos falsificadores eram pessoas “inteligentes, criativas e até engenhosas”.

Crédito, Bibliotheca Fictiva
“À medida que se estuda esta coleção, percebe-se que certos aspectos se repetem, como se os mentirosos aprendessem uns com os outros”, diz.
“Um, por exemplo, é a economia.”
“Se você vai criar uma mentira, a primeira coisa é gerar interesse e inspirar uma suspensão voluntária da descrença por parte do leitor. Não é necessário que ele acredite que é verdade, você só precisa fazê-lo crer que é possível, nem sequer provável, apenas possível”, diz Havens.
“E você não deve dar às pessoas muita informação, porque se acidentalmente der demais, você pode se enforcar com sua própria corda.”
“Outro truque é encontrar outra voz ou outra figura que ateste sua afirmação, e incluí-los em sua obra falsa.
“Assim, você vai notando padrões, e também distintas categorias de falácias e notícias falsas”, assinala o especialista.
Uma dessas categorias é a que Havens chama de “mitologia patriótica”.
“Vimos um pouco disso em todo o mundo e ao longo da história.”
Um exemplo ocorreu no Renascimento, quando os italianos eram os reis, mas, com o ressurgimento da cultura greco-romana, havia algo que os incomodava: o fato de terem chegado muito depois dos gregos.
“Existia a ideia de que a cultura mais antiga era a mais sofisticada, influente e com mais autoridade.”
O frade dominicano Giovanni Nanni, vulgo Annius de Viterbo (1437-1502), “decidiu ‘descobrir’ uma série de textos antigos” que corrigiam a história.
Suas fraudes foram numerosas, variadas e, em alguns casos, extremamente elaboradas, assinala a Universidade de Oxford.
Em uma ocasião, organizou uma escavação arqueológica na qual desenterrou, para espanto dos presentes, uma fantástica coleção de estátuas mitológicas, cada peça colocada com esmero para alcançar um efeito dramático.
Tudo para “demonstrar que os italianos possuíam a linhagem mais antiga, e não ‘os gregos mentirosos, que se achavam inventores de tudo'”, conta Havens.

Crédito, Bibliotheca Fictiva
Sua obra mais importante, o Antiquitatum Variarum, publicada pela primeira vez em 1498, e com grande sucesso editorial nos séculos 16 e 17, contém o que ele afirmava serem textos de autores gregos e latinos… nenhum autêntico.
No entanto, a obra “teve uma enorme influência no pensamento dos europeus entre 1498 e aproximadamente 1750” (Walter Stephens, 1979), e “perverteu as primeiras histórias de todos os países da Europa” (Anthony Grafton, 1990).
Do claro ao escuro
Desde que Johns Hopkins adquiriu a Bibliotheca Fictiva, “com quase 2.000 objetos, fizemos centenas de adições adicionais, tornando-a uma ‘biblioteca viva'”, conta Havens.
Há desde mentiras leves, como a de um romance que talvez você conheça, cujo título completo é:
“A vida e incríveis aventuras de Robinson Crusoé, de York, marinheiro, que viveu vinte e oito anos completamente sozinho numa ilha desabitada nas costas da América, perto da foz do grande rio Orinoco; tendo sido levado à costa após um naufrágio, no qual todos os homens morreram, menos ele. Com uma explicação de como, no final, ele foi incomumente libertado por piratas. Escrito por ele mesmo.”Essas últimas 4 palavras geraram um debate sobre se a obra deveria fazer parte da biblioteca, pois é obra do escritor Daniel Defoe.
Para Havens, “não passou de uma afetação literária”.
Com as histórias do Barão de Munchausen, em contraste, não houve discussão, pois são baseadas em uma pessoa real, e suas ridículas aventuras foram apresentadas como se fossem autobiográficas em vez de uma obra de ficção de Rudolph Erich Raspe.
Mas ainda estamos nos tons de branco, e quando se trata de mentiras há toda uma gama de cinzas, até chegar a algumas perigosamente escuras.
“Existem alguns enganos muito perniciosos”, diz.
“Provavelmente o mais difícil de tratar é o Protocolos dos Sábios de Sião, essencialmente um documento de teoria da conspiração profundamente antissemita que afirmava que os judeus estavam tentando dominar o mundo.”
“Foi usado pelos nazistas para justificar o genocídio e continua sendo muito relevante hoje em dia”, afirma.
“Esse é um exemplo de um engano horrível, realmente maligno em todos os sentidos.”
Desde que Johns Hopkins adquiriu a coleção, Havens e outros professores têm usado seus milhares de exemplos para ensinar aos estudantes sobre alfabetização midiática e desinformação.
Eles ajudam a aprender a detectar pistas e a ser mais cético e mais crítico com tudo o que se cruza em seu caminho, mesmo que venha de uma fonte aparentemente confiável.
Mostram que, além de se perguntar se uma mensagem é verdadeira, também vale a pena refletir sobre por que ela chegou às suas redes sociais, o que ela quer incentivar, explorar, reforçar em você, a quem interessa que você consuma essa informação.
“Recentemente, publicamos um catálogo pela Quaritch em Londres e, além disso, todos os títulos estão disponíveis online, então esta é possivelmente a coleção mais documentada e acessível do mundo.”
“É absolutamente relevante.”