foram vocês que nos vestiram com trajes militares e nos obrigaram a entoar canções de guerra
foram vocês que nos prometeram um céu pacífico sobre a cabeça e quebraram a promessa.
nós não acreditamos mais em vocês.
vocês roubaram o nosso futuro, enterraram os nossos sonhos,
destruíram o que tínhamos de mais importante
o que vocês dizem em sua defesa?
Trecho de poema de Egana Djabbarova publicado na coletânea Rus bala (Ars et Vita, 2024)
Nascida na Rússia em 1992, em uma família de imigrantes azerbaijanos, Egana Djabbarova é um nome emergente da poesia contemporânea em língua russa. Na coletânea Rus bala (“criança russa”, em azeri), publicada neste ano pela editora Ars et Vita, com tradução de Maria Vragova e Prisca Agustoni, a poeta denuncia a postura imperialista da Rússia de Vladimir Putin, cujo governo hostil à população LGBT forçou-a ao exílio.
Morando em um campo de refugiados em Hamburgo, na Alemanha, a autora relata à Cult as dificuldades de escrever em tal ambiente, fazendo eco a Virginia Woolf em Um teto todo seu ao dizer que “para escrever, você precisa de uma casa”.
A poesia de Egana é movida pelo pensamento decolonial: “Minhas relações com a língua russa são complicadas, permeadas pela dinâmica imperial e colonial. Por isso, eu costumo escrever em um ‘russo não russo’: tento colocar em sentenças russas coisas que não pertencem a essa língua. Eu quero que ela reflita a minha vivência.”
Filha de imigrantes em um país que ela classifica de xenofóbico, Egana retrata uma vida fora de lugar, dividida entre as identidades russa e azerbaijana, em um corpo marcado pela experiência de uma mulher lésbica: “Acredito que eu preciso falar sobre o corpo da mulher, as vozes da mulher, o abuso e a violência doméstica. Porque se todas nos calarmos, eles vão nos destruir.”
Ela destaca a importância da memória na desconstrução de uma cultura marcada pela herança colonial, lembrando-se de escritoras como Marina Tsvetaeva e exaltando o trabalho de poetas russas contemporâneas, como Lida Yusupova e Galina Rymbu, pouco conhecidas no Brasil.
Por que você escolheu a poesia como refúgio?
Não foi uma escolha, de forma alguma. Eu comecei a escrever poemas quando eu tinha apenas 14 anos. Eu sempre amei esse tipo de comunicação, porque na poesia você existe simultaneamente em todos os tempos: não somente no presente, mas também no passado e no futuro. Descobrir isso foi a coisa mais incrível para mim. Meu primeiro contato com a poesia foi na escola, quando li Mikhail Lermontov, que me surpreendeu muito. Meu primeiro poema foi realmente engraçado, uma espécie de paródia de Lermontov, porque eu queria fazer algo tão interessante quanto o que ele tinha feito. Então eu tentei escrever e ficou horrível, mas a experiência foi muito valiosa, porque foi aí que entendi que eu gosto de me expressar dessa forma.
Você se divide entre sua identidade russa e azerbaijana. Meio fora de lugar nesses dois ambientes distintos. De que forma você se enxerga, entre essas duas culturas?
Eu nasci e cresci na Rússia, mas eu não sou russa. Meu pai é um refugiado de Nagorno-Karabakh, território entre a Armênia e o Azerbaijão que ele foi forçado a deixar por causa da guerra. Minha mãe foi criada na Geórgia, mas ela é azeri e também temos algum sangue turco na família. Então eu não sou uma garota russa, mas eu nasci lá e isso me influenciou muito porque eu escrevo em russo.
Isso é uma questão problemática para mim, pois considero que a língua russa é uma língua colonizadora. Vejo a União Soviética como um império – muitos discordam disso, mas eu enxergo alguns padrões coloniais na sua história. É uma grande tragédia para mim não conseguir escrever em azeri. Eu conheço a língua, mas, como a maioria das crianças bilíngues, apenas no nível doméstico. Consigo dizer algumas coisas ligadas ao dia a dia, mas não escrever algo difícil, como um livro.
Apesar de ter um doutorado em literatura russa e ter me graduado do departamento de filologia russa, eu comecei a pesquisar estudos pós-coloniais e decoloniais, pois algo dentro de mim queria encontrar respostas. Quando estou na Rússia, enfrento xenofobia e racismo. Eu não me parecia com as outras crianças, eu tinha esse nome estranho, em azeri. Mas, quando vou para o Azerbaijão, também não sinto como se pertencesse àquele lugar, porque eles fazem brincadeiras e sempre dizem “você é uma criança russa – rus bala”. Por isso o livro leva esse nome, é algo que eu ouvi muito quando era criança, de todos os meus parentes azerbaijanos. Eles falavam que eu tinha um sotaque engraçado, que eu não conseguia falar azeri – não queriam me machucar, mas foi um trauma enorme. Eu não conseguia perceber quem eu era, afinal. Na Rússia, eu não sou russa. No Azerbaijão, não sou azeri. Então, quem sou eu?
Eu li Orientalismo, de Edward Said, que realmente me mudou muito, e descobri que até minhas relações com a língua russa são complicadas, permeadas pela dinâmica imperial e colonial. Por isso, eu costumo escrever em um “russo não russo”: tento colocar em sentenças russas coisas que não pertencem a essa língua. Eu quero que ela reflita a minha vivência. Como um trickster decolonial, quero colonizar a língua e colocar na literatura as pessoas que não lhe pertencem, suas línguas, suas maneiras de falar. Então, se elas falam como metade russos e metade azeris, deixe que seja. Eu quero criar um espaço seguro, peculiar para essas pessoas e para mim mesma.
Qual sua relação com a herança cultural e literária da Rússia?
É importante dizer que eu respeito a herança da cultura e da literatura russas, não acho que precisamos deletar toda essa cultura, por mais que esse território seja marcado pela dinâmica imperial, colonizadora. Mas eu fui mais afetada pela poesia russa contemporânea, principalmente pelas poetas feministas. Uma das minhas poetas mais amadas é Lida Yusupova. Ela escreveu um livro realmente assustador, chamado Verdicts [Sentenças], que foi traduzido para o inglês. É um grande poema-documentário, baseado em casos criminosos contra mulheres e pessoas queer na Rússia. A poesia de Galina Rymbu também me afetou profundamente. Ela é uma das poetas mais fortes que eu conheço escrevendo em russo hoje. Criou diversos projetos em poesia, com destaque para o Prêmio Arkadi Dragomoshchenko, que é dedicado a poetas jovens. Eu fui indicada para o prêmio duas vezes, em 2017 e 2019. Oksana Vasyakina, também é uma escritora moderna russa que eu admiro, não só sua poesia mas sua prosa também.
Na escola, crescendo, obviamente li os clássicos – Lermontov, Tchekhov, Dostoiévski e escritores do século 20, que são muito importantes porque foi um momento em que a Rússia estava enfrentando uma revolução e tantas coisas mudaram. Mas a poeta mais importante do século 20 para mim é Marina Tsvetaeva, porque eu dediquei cinco anos da minha vida à obra dela, durante o meu doutorado. Pesquisei toda a sua prosa e todos os seus poemas também. Não posso dizer que ela me influenciou em termos de estilo, mas de ótica, sim.
Sua poesia soa muito fortemente como uma denúncia ao governo de Vladimir Putin na Rússia, o que reverbera com os eventos recentes na Ucrânia e na Geórgia, por exemplo. Como você relaciona poesia e política?
Não é algo que eu planejei racionalmente. Aconteceu naturalmente, porque você não pode escapar da política. Como o feminismo já nos disse: o pessoal é político. Tudo o que está acontecendo no mundo agora me soa como uma grande tragédia e isso me entristece. Se você tem um corpo, se você é um ser humano, não pode simplesmente ignorar isso, fechar os olhos. Eu não sou uma ativista, mas esses tópicos aparecem na minha escrita pois a poesia é uma forma de empatia. Ao escrever poemas, você não pode ignorar a realidade.
A colonização e a guerra também são temas centrais. Soa como um livro que não diz respeito apenas à guerra na Rússia, mas à guerra em geral, às guerras coloniais que assolam territórios como a Palestina hoje. Como e por que escrever poesia em meio à guerra?
Você está completamente certa, não é só sobre o que está acontecendo na Rússia agora, mas em geral. A guerra é fortemente ligada à colonialidade. E é muito importante dizer que colonialidade e colonização não são iguais. De uma forma, sim, às vezes a guerra é igual à colonização, quando um governo quer ter a terra de outro. Mas ela está sempre ligada à colonialidade. Isto é, a norma que foi estabelecida em sociedade, na cultura, na vida cotidiana, em nosso ser, é pautada pela visão colonial.
Por exemplo, o que nós costumamos ver como bonito, especialmente quando falamos de mulheres, é ditado por essa norma colonial. Muito frequentemente, uma mulher bonita é igual a uma mulher branca, de cabelo e olhos claros. É por conta das colonizações e da colonialidade que essas normas ainda se aplicam hoje. Eu morei em Taiwan por um ano e fiquei chocada com a quantidade de produtos de beleza com elementos de clareamento de pele. O que eu estou dizendo é que todas essas normas – o que nós definimos como bonito, valioso, bom e ruim – estão cheias de colonialidade.
As guerras estão conectadas a isso. Toda guerra é uma maneira de dizer, “nós somos pessoas boas e essas são ruins, então, precisamos destruí-las”. Eu não consigo entender essa lógica, é como um círculo vicioso de violência que nunca parou. Isso é o que me preocupa muito, não apenas em relação à Rússia, mas também à Palestina: como as pessoas querem fazer guerras outra vez, querem matar um ao outro. Uma das razões dessa continuidade é porque ninguém trabalhou com memórias, trauma, herança colonial e como isso afeta a cultura.
Hoje você vive em um campo de refugiados na Alemanha. Como tem sido escrever e viver nesse novo país?
Eu moro em uma casa-contêiner em um campo de refugiados em Hamburgo. Nossos vizinhos são refugiados iranianos. É bem deprimente, para ser sincera. Uma coisa é quando você lê sobre a experiência dos refugiados no conforto da sua casa, cercado de seus privilégios. Outra coisa é quando você está realmente vivendo isso – é tudo tão traumático. Todas as coisas que você criou, todo o seu capital simbólico, a carreira que você fez no seu país natal, tudo é igual a zero. Aqui, você não é ninguém. Você é um refugiado, e ninguém se importa com o que você estava fazendo ou quem você era antes. Todo dia, morando em um campo de refugiados, eu me sinto menos e menos humana. Eu não consigo escrever, porque, para escrever, você precisa de uma casa. Em uma casa-contêiner você tem uma conexão internet muito fraca e uma mesa muito pequena, onde você está aprendendo alemão, jantando e tentando escrever ao mesmo tempo. Você vai se sentindo como algo menor e menor, nem mesmo um ser humano. Você é um objeto dentro de um contêiner e parece que está sendo transportado como um escravo, colocado nesse espaço pequeno e sendo entregue a outro país.
Uma das minhas poetas favoritas, Nourbese Philip, tem um ciclo extraordinário que se chama Zong!, que é dedicado a escravos que foram mortos pela tripulação do navio que os transportava. Ela criou um grande poema-documentário sobre essa tragédia. Naquela época, de acordo com as leis, os escravos não eram seres humanos, eles eram equivalentes a objetos. Quando você é colocado em um lugar como esse, um ambiente estéril, você sente que está perdendo sua subjetividade, seu direito de falar, sua voz. Isso me mata.
Você gostaria de voltar para a Rússia?
Não, obviamente. Eu não me sinto segura lá, então eu não posso voltar. Isso é uma coisa muito importante sobre o exilado, que as pessoas não entendem. Há todo esse discurso de ódio mas as pessoas não percebem uma coisa muito simples: ninguém se torna refugiado ou escapa de algo se não for perigoso. Ninguém deixa sua casa e as pessoas que ama e vai embora um dia. Só se faz isso quando é perigoso.
Warsan Shire é uma poeta somali, criada em Londres, que escreveu Home, um poema brilhante sobre a experiência do refugiado, em que ela diz “no one leaves home unless/ home is the mouth of a shark” [ninguém sai de casa a não ser que a casa seja a boca de um tubarão].
Claro, naqueles minutos de desespero, quando você está exausta, sentindo que nunca vai achar uma casa ou ser feliz novamente, surge aquela vontade de voltar, mas ainda não posso fazer isso. Eu não acho que eu deveria voltar, mas também não sinto que pertenço a este lugar. Então estou nessa vala estranha, entre um mundo e outro, sem me ajustar a nenhum deles.
Você se sente segura para falar sobre o governo e a política russa, agora que você não está mais lá?
Eu ainda não me sinto segura, porque a minha família mora lá e eu me preocupo muito com eles. É por isso que eu tento não ser muito radical, sinto alguma responsabilidade por eles. Eu sei o quanto eles também sofreram e o tanto de estresse que eu lhes causei, então eu tento ser gentil porque eles são, na verdade, quem me protege. Eu não acho que você pode mais estar seguro em lugar algum. É como se todos os dias você sentisse que não há mais segurança, especialmente enquanto mulher.
O corpo é um tema central na sua poesia. E é um corpo feminino, marcado por essa vivência específica. Qual o lugar do feminismo na poesia?
Agora, quando você me pergunta se eu me sinto segura para falar sobre a Rússia, eu percebo que não, especialmente olhando para o que está acontecendo lá no nível da lei. Nos últimos meses, o governo de Putin passou uma quantidade absurda de leis contra as mulheres. Está ficando mais difícil fazer um aborto na Rússia. Ativistas feministas estão sendo perseguidas. Não é mais seguro falar sobre feminismo e sobre essas mudanças na lei.
O país foi berço de muitas ativistas que mudaram a vida das mulheres no mundo inteiro. A Rússia foi pioneira na criação de universidades para mulheres, além de ser a primeira nação a permitir o aborto em todas as circunstâncias. Agora, vendo como todas essas coisas estão piorando, fico tão triste.
Acredito que eu preciso falar sobre o corpo da mulher, as vozes da mulher, o abuso e a violência doméstica. Porque se todas nos calarmos, eles vão nos destruir. Como você pode não apoiar os direitos humanos básicos? Ser mulher é também uma experiência de ser oprimida, alguém cujos direitos e cuja voz estão sempre tentando roubar de você. Então eu acredito que é uma das partes mais essenciais da minha poesia, falar sobre isso.
O amor e a sexualidade permeiam sua escrita e sua vivência enquanto mulher lésbica. Como eles influenciam sua escrita?
O amor tem um papel importante em meus poemas. Talvez não enquanto tema, porque eu não tenho tantos poemas de amor, mas enquanto estado, uma maneira de olhar para o mundo. Quando as pessoas vão para guerra, quando todos estão sofrendo e o seu mundo é destruído diante de seus olhos, a única coisa que se pode fazer é preservar sua humanidade, e o que garante isso é a habilidade de amar. Escrever poemas e crônicas é uma forma de expressar o meu amor. A arte é uma forma de empatia. Você não pode criar algo significativo se não sente amor – e não apenas às pessoas.
Ao mesmo tempo, a minha sexualidade também me afetou muito. Na Rússia, eu pertencia a um grupo de minorias discriminadas. Meus amigos costumavam fazer piadas, dizendo que eu sou uma “oprimida de terceiro grau” – não-russa, mulher e queer. Eu estava vendo muitas coisas ruins acontecendo com amigos da comunidade LGBT. Pessoas homofóbicas estavam me escrevendo ameaças, essa foi uma das razões pelas quais eu fugi do país. Hoje, com a aprovação das últimas leis anti-LGBT, se você é uma pessoa queer, você pode ser presa. É claro que isso afetou a minha poesia, porque diz respeito ao meu corpo. Meus poemas estão conectados com a forma como eu sinto o mundo e eu não posso separar uma coisa da outra.