Black Doves é uma produção britânica da Sister e Noisy Bear para o Netflix que segue a ciência testada e comprovada dos britânicos desde tempos imemoriais de como fazer temporadas curtas de séries que entregam tudo o que precisam entregar no tempo disponível, utilizando cada minuto para construir personagens complexos que são inafastavelmente os destaques da obra. O thriller de espionagem criado por Joe Barton e estrelado por Keira Knightley como Helen Webb, uma espiã profundamente infiltrada no governo britânico, e Ben Whishaw como Sam Young, um “homem do gatilho” – ou assassino – contratado pela enigmática Reed (Sarah Lancashire), chefe de Helen, para protegê-la a todo custo poderia muito facilmente ser uma produção da BBC ou da Sky, o que, de imediato já é um atestado de sua alta qualidade.
Na história, Jason Davies (Andrew Koji, o Ah Sahm da criminosamente cancelada série Warrior e que, aqui, infelizmente, faz apenas uma ponta), amante de Helen e por quem ela se apaixonara, é misteriosamente assassinado e ela, sofrendo, parte para investigar e se vingar com a ajuda de seu amigo de longa e assassino de aluguel Sam, que há muito estava exilado na Itália e só volta por causa dela. Helen, por sua vez, é uma dona de casa devidamente casada com Wallace Webb (Andrew Buchan), Ministro da Defesa britânico que é potencial candidato a Primeiro Ministro em futuro próximo, tendo com ele dois filhos, tudo como parte de seu verdadeiro trabalho, que é espionar o governo para uma agência privada de espionagem comandada por Reed que vende as informações para quem pagar mais. Seu caso extraconjungal, claro, é um perigo para sua fachada ilibada e seu desejo de vingança pode por tudo a perder, especialmente porque ela também passa a ser alvo da organização que matou Jason.
O trabalho investigativo de Helen e as bem coreografadas, violentas e sanguinolentas sequências de ação que se originam daí, com direito a um particularmente mortal, mas sempre impassível Sam, são como bônus na série, ou seja, muito claramente não são o objetivo central do desenvolvimento narrativo, já que o foco da criação de Barton repousa mesmo em Helen e Sam tanto separadamente quanto juntos, com os dois formando um par improvável, mas que é ao mesmo tempo irresistível. Sam, que é homossexual, subverte o estereótipo do “amigo gay” justamente por ser um assassino eficiente, mas com seu próprio código de honra que lhe causou um grande problema no passado, que, porém, mantém vivo seu lado humano, sua devoção por Helen e o amor que ainda sente por Michael (Omari Douglas), namorado que teve que deixar para trás quando precisou fugir do Reino Unido. Além disso, Sam é um personagem completo, que não se define por sua conexão com Helen e a série faz questão de desenvolvê-lo das duas maneiras, ou seja, ao mesmo tempo de forma independente e ligada à protagonista, com Winshaw dando um show de interpretação multifacetada que chega a ser desconcertantemente autocontida e sutil.
E o mesmo vale para Helen. Não é sua relação com Sam que a define, assim como não é apenas o amor que sente por Jason ou por seus filhos e o afeto que sente pelo marido, ou mesmo sua profissão escusa. Ou, pelo menos, ela não é definida por um desses aspectos, mas sim pela amálgama de todos eles, guardando um passado traumatizante que poucos conhecem e que é refrescantemente trazido à tona com diálogos precisos e econômicos e não com flashbacks cansativos. Além disso, seu trabalho de espionagem é essencialmente clássico, ou seja, o de infiltração pura, de agente adormecido há muitos e muitos anos vivendo uma vida que não é a dela – ou, sob vários aspectos, que ela criou para ela – e não como James Bond ou algo do gênero que vive de pancadaria e tiroteios. Essa pegada, por si só, já faz de Black Doves algo diferente do usual, mesmo que, no final das contas e em regime de exceção, Helen precise recorrer aos citados extremos, claro. Isso funciona dentro da narrativa e funciona para Keira Knightley, pois eu não consigo vê-la como “heroína de ação” no sentido puro, mas sim alguém que fornece peso dramático para uma personagem inteligente e repleta de nuances e cuja lealdade parece existir de maneira absoluta somente em relação a muito poucos.
Apesar de a história ganhar bom desenvolvimento, elementos complicadores e também sequências caóticas de ação, algo amplificado a partir do momento em que duas jovens assassinas entram na mistura, o roteiro falha na forma como é feita a introdução do “grande vilão” – na verdade, uma organização vilanesca -, pois isso acontece muito tardiamente na temporada e como uma revelação que não tem significado algum dentro do que foi apresentado antes, como um nome desconhecido jogado em meio a uma conversa. Há pelo menos tempo de membros dessa organização aparecerem para materializarem a ameaça, uma delas vivida por ninguém menos do que Tracey Ullman, o que leva ao momento climático e também anticlimático e cria a deixa para ao já em produção segundo ano (mas o primeiro tem bom fechamento e funciona “solto”).
Black Doves, apesar de derrapar na supostamente grande revelação, incluindo aí a forma um tanto quanto decepcionante como as peças finais são encaixadas no epílogo, não têm nem mais, nem menos do que o necessário ou, parafraseando um certo mago da Terra-Média, tem exatamente o quanto precisa ter para ser uma série redonda e fundamentalmente britânica que funciona muito bem tanto quanto thriller de ação e espionagem, quanto como um excelente estudo de personagens. Por mais séries assim!
Black Doves – 1ª Temporada (Idem – Reino Unido, 05 de dezembro de 2024)
Criação: Joe Barton
Direção: Alex Gabassi
Roteiro: Joe Barton, Lisa Gunning
Elenco: Keira Knightley, Ben Whishaw, Sarah Lancashire, Andrew Buchan, Andrew Koji, Omari Douglas, Sam Troughton, Ella Lily Hyland, Isabella Wei, Adam Silver, Nathan Stewart-Jarrett, Hannah Khalique-Brown, Thomas Coombes, Lizzie Hopley, Agnes O’Casey, Tai Yin Chan, Charlotte Rice-Foley, Taylor Sullivan, Molly Chesworth, Ken Nwosu, Kathryn Hunter, Gabrielle Creevy, Paapa Essiedu, Luther Ford, Adeel Akhtar, Tracey Ullman, Finn Bennett, Dan Li
Duração: 326 min. (seis episódios)