A volta de Mefisto à saga texiana, agora não mais como ilusionista e espião mexicano, mas como um feiticeiro sobrenatural, é algo que carrega tanto potencial simbólico quanto fragilidades estruturais. Em O Diabólico Mefisto (história também conhecida pelos títulos O Filho do Fogo – tradução literal do nome do arco em italiano: Il Figlio del Fuoco –, A Mesa dos Esqueletos e Tex Contra Mefisto), Gianluigi Bonelli reinveste no vilão menor lá de O Espião Mefisto, dando-lhe peso mítico e transfigurando-o em encarnação do mal: um vilão que ultrapassa os limites da política fronteiriça e se transforma numa força metafísica. Contudo, essa ascensão carece de fundamentos narrativos sólidos: a falta de explicações sobre o retorno de Mefisto e a origem de seus poderes mágicos faz com que ele pareça uma conveniência narrativa –mais conceitual do que orgânico. Isso não compromete fatalmente a obra, já que há muitos outros aspectos interessantes a se considerar, mas é algo que o leitor certamente notará.
A primeira metade da narrativa tem um ritmo ágil, bem pessimista e ligado ao ponto de vista dos vilões. Vemos os navajos tombando aos montes sob as flechas envenenadas dos Hualapai (dominados por Mefisto, visto por eles como “filho do fogo”); Kit e Carson sendo sequestrados e Tex entrando numa caçada repleta de emboscadas das quais ele e alguns de seus navajos escapam por pouco. O autor constrói um clima de desespero onde a geografia hostil (o planalto Mammoth, as corredeiras do Colorado) torna-se extensão da realidade sitiada do protagonista. Os desenhos de Galep amplificam essa claustrofobia: os Hualapais, retratados como silhuetas fantasmagóricas, parecem brotar das rochas, ecoando o imaginário colonial do “índio como espectro”, mas num contexto em que conseguimos entender o porquê da representação (que sim, aqui, é legítima). Quando a trama chega ao confronto final, no templo subterrâneo, a história perde fôlego, mas abre as portas para uma segunda parte muito mais interessante, pois se aproxima bem mais da linha de perseguição e investigação que tanto apreciamos nas histórias de Tex.
Galleppini cria boas sequências de ação, especialmente na segunda parte do arco. Se, inicialmente, o ataque aos navajos era uma coreografia de sombras e sangue, onde cada flecha trazia a morte; na segunda parte, há muito mais dinâmica de aventura e possibilidades de movimento e enfrentamento entre os personagens. Gosto dessas duas abordagens visuais, mas, considerando a narrativa, ainda privilegio o segundo momento do enredo, quando Mefisto (que adota o nome de Dr. Anatas) hipnotiza Carson e Kit e os força a praticar diversos crimes, enquanto Tex e Tigre fazem uma corrida contra o tempo para resgatá-los. Não sou muito fã da abordagem visual para o covil de Mefisto, com sua estética mesoamericana reciclada em pulp-western, porque essa escolha não diz nada sobre as práticas mágicas do vilão e muito menos sobre a cultura dos Hualapais, mas, como não há tantas cenas nesse ambiente, é possível aceitar a concepção sem grandes problemas.
O arco esboça, mas não aprofunda, questões sobre livre-arbítrio e determinismo. Ao hipnotizar Kit e Carson, Mefisto não apenas os corrompe, mas os transforma em extensões de sua própria vontade (somada a um grande desejo de vingança contra Tex), levantando dilemas éticos que Bonelli explora bem ao modo da aventura, mas não consegue finalizar da melhor forma. A resolução abrupta de todo o conflito e a ausência de uma consciência pesada ou crítica da dupla vitimada pelo controle mental deixam um buraco na narrativa. Tex, por sua vez, permanece em sua moralidade inabalável, conseguindo sua vitória, mas deixando o corpo de Mefisto “perdido” após a queda, algo que eu tenho dificuldade de aceitar, pois não entendo como Águia da Noite e Jack Tigre desprezariam a oportunidade de investigar e checar onde estava o cadáver do feiticeiro (e sim, eu entendo a questão do recurso narrativo para continuidade, o que não significa que ele seja bom).
O Diabólico Mefisto traz uma boa tensão claustrofóbica, ótimas cenas de fuga dos mocinhos e vitória inicial dos vilões, um bom enredo com um sequestro que dura toda a trama, e a reinvenção mitológica de Mefisto. Infelizmente, não consegue juntar alguns pedaços importantes para um encerramento digno do miolo da narrativa… construindo um diálogo mais amplo dos hipnotizados e dando um final menos patético para o grande feiticeiro. É válido, porém, considerar que esta história cria, em Mefisto, o grande vilão de Tex, com uma aura mística e elementos de vingança, planos mirabolantes e grande escopo de vitória do lado do bandido que, com os anos, se tornaria um clássico na saga do Águia da Noite.
O Diabólico Mefisto (O Filho do Fogo) – Il figlio del fuoco: La gola della morte / Il ponte tragico (Itália, dezembro de 1958)
Publicação original: Tex Striscia, Serie Mefisto (21ª serie) #1/23
Roteiro: Gianluigi Bonelli
Arte: Aurelio Galleppini
Capas originais: Aurelio Galleppini
Edição lida para esta crítica: Tex Edição Histórica #24 (Editora Globo, junho de 1997)
245 páginas