Morreu nesta sexta-feira (28), no Rio, a acadêmica, escritora, pesquisadora, professora emérita da UFRJ e imortal da ABL Heloisa Teixeira, de 85 anos. A informação foi confirmada pela Academia Brasileira de Letras e pela editora de seus livros.
Heloisa Teixeira foi uma intelectual de atividade intensa e simultânea no magistério, na pesquisa acadêmica e na literatura.
A partir do foco maior nas interações de cultura e política, centrava sua atuação nas questões de gênero, relações étnicas e culturas marginalizadas. Também se interessava, nesses campos, por questões sugeridas pelo contexto econômico, político e cultural dos processos de globalização e desenvolvimento tecnológico.
Era professora emérita de teoria da cultura na Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde criou a Coordenação Interdisciplinar de Estudos Contemporâneos (CIEC). Na Faculdade de Letras, dirigiu o Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC), uma linha de pesquisa pós-doutoral do departamento de ciência da literatura. Foi professora visitante nas universidades Stanford, Berkeley, Browne e de Nova York. Também foi membro do Conselho Curador da Fundação Roberto Marinho entre 2012 e 2023.
A criação da Universidade das Quebradas, sua iniciativa de maior visibilidade, veio em resposta ao seu entendimento de cultura como um “recurso de desenvolvimento” e seus possíveis usos em favelas e outras comunidades periféricas de baixa renda.
“O investimento em cultura é prioritário para o fortalecimento da fibra social e, consequentemente, para o desenvolvimento político e econômico”, escreveu no artigo “Cultura, recurso para o desenvolvimento” (2011). “Em seus vários e diversificados usos, tanto no mercado global quanto como forma de negociação ou resistência, a cultura tornou-se efetivamente um recurso para a melhoria sócio-política, para a formação de quadros e geração de renda, para o gerenciamento de conflitos, para a construção da experiência cidadã.”
Formou-se em Letras Clássicas pela PUC-Rio. Na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), fez mestrado (com dissertação sobre a leitura de “Macunaima”, de Mario de Andrade, no filme de Joaquim Pedro) e doutorou-se em literatura brasileira (sua tese foi publicada no livro “Impressões de Viagem – CPC, Vanguarda e Desbunde, 1960/1970”). Em pós-doutorado, fez estágio de estudo e pesquisa sobre sociologia da cultura na Universidade Columbia, em Nova York.
No final dos anos 1960 e depois, dedicou-se à identificação e interpretação de “microtendências e seu cruzamento com a política no campo da cultura”, que começavam a se manifestar fora das correntes tradicionais e reconhecidas da criação cultural. Era o princípio de um variado movimento de rebeldia nos tempos mais acres da ditadura militar, que marcaria a cultura da década seguinte.
“Consolidou assim sua vocação absolutamente notável, talvez sua característica definidora por excelência: a de antena captadora daquilo que estava brotando e ninguém via”, disse Ana Maria Machado no discurso de recepção de Heloisa como integrante da Academia Brasileira de Letras, em 28 de julho de 2023. Levava a campo assim, “sua sensibilidade para cruzar fronteiras com naturalidade, de olho nas frestas e no que se esgueirava pelas brechas, seu faro fino de pesquisadora imersa no real”.
Inconformada com a rigidez dos métodos de ensino, que considerava insuficientes para a apreensão crítica da realidade cultural em movimento, levou os alunos para o debate em espaços externos à Universidade – literalmente, na rua, como nos encontros temáticos que promovia numa butique de Ipanema, espécie de “point” de interessados na chamada contracultura.
A inovadora alternativa pedagógica inspirava-se num “desejo enorme de mudar a universidade, de decolonizar a universidade, de usar, ainda que de forma marginal, o enorme capital que a universidade tem”, disse no livro “Explosão Feminista – Arte, Cultura, Política e Universidade” (2018). Por isso, “nunca” se interessou pela atividade acadêmica tradicional. “Senti, desde muito cedo, como missão intelectual, pesquisar e abrir espaço para novas vozes, novos saberes e novas políticas. Meu trabalho com mulheres, especialmente na década de 1980, foi parte importante dessa tarefa.”
Considerava-se uma militante feminista “feita na academia”, adepta da agenda múltipla da “terceira onda” do feminismo.
[A terceira onda do feminismo é a da interseccionalidade ideológica, ramificada em lutas anti-sexistas, anti-racistas, anti-capitalistas, anti-homofóbicas, decolonialistas e ecofeministas. A primeira onda pautava-se pela temática da cidadania e a segunda, pela da sexualidade. O ativismo digital define a quarta onda, já em desenvolvimento]
Escreveu sobre o assunto nos livros “Explosão Feminista” (2018) e “Feminista, Eu? – Literatura, Cinema Novo, MPB” (2022). Reunindo ensaios seus e de outras autoras, organizou antologias como “Tendências e Impasses – O Feminismo como Crítica da Cultura” (1994), “Pensamento Feminista – Conceitos Fundamentais” (2019), “Pensamento Feminista Brasileiro – Formação e Contexto” (2019), “Pensamento Feminista Hoje – Perspectivas Decoloniais” (2020), “Interseccionalidades – Pioneiras do Feminismo Negro Brasileiro” (2020).
De novo na confrontação de padrões estabelecidos na produção de conhecimento, criou o projeto de extensão Laboratório de Tecnologias Sociais Universidade das Quebradas, um espaço de pesquisa dentro do Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC) [“quebrada” sendo lugar-bairro da periferia urbana, ou de pertencimento próprio de alguém que ali viveu].
A Universidade das Quebradas foi pensada para proporcionar um ambiente de compartilhamento de saberes e práticas de criação e produção de conhecimento, articulando experiências culturais e intelectuais produzidas dentro e fora da academia, cada parte se inteirando do que a outra faz. Reuniam-se assim, em torno de propósitos interativos, professores, pesquisadores e alunos da universidade, intelectuais, artistas, ativistas e produtores culturais das regiões periféricas e favelas do Rio de Janeiro que já tivessem um trabalho relativamente consolidado.
As atividades do PACC levaram à criação de dois outros laboratórios, também com amparo financeiro do CNPq e da Faperj. O Laboratório da Palavra seria aberto à pesquisa, seminários, palestras e oficinas em todo o chamado ecossistema do livro, ou seja, do autor ao leitor, passando por criação, revisão (e os demais processos da produção editorial impressa e digital) tradução, crítica, recepção, bibliotecas, livrarias, “e-commerce”.
O Laboratório Mulher e Universidade serviria como espaço de articulação interdisciplinar para os estudos de gênero. Criado por iniciativa de professoras doutoras da UFRJ vindas de diferentes campos de saber e disciplinas, como letras, filosofia, sociologia, história da ciência, comunicação, visava agregar pesquisadores, professores, alunos de pós -graduação, graduação, artistas e ativistas de dentro e de fora da UFRJ em grupos de pesquisa, debates e documentação.
Entre os livros que Heloisa escreveu ou organizou, além dos dedicados a temas do feminismo, estão “26 Poetas Hoje” (1975), “Macunaíma, da Literatura ao Cinema” (1978), “Pós-Modernismo e Política” (1992), “Quando o Brasil Era Moderno – Guia Poético do Rio de Janeiro” (2000), “Asdrúbal Trouxe o Trombone – Memórias de Uma Trupe Solitária de Comediantes que Abalou os Anos 70” (2012), “Enter – Antologia Digital”, “Escolhas, Uma Autobiografia Intelectual”, “Patrulhas Ideológicas: Arte e Engajamento em Debate”.
Sua posse na ABL reuniu artistas, escritores, mulheres trans, artistas, uma banda feminina tocando samba. O que estava por trás disso, aquela espécie de manifesto?, perguntou a jornalista Flávia Oliveira em entrevista na Bienal do Livro do Rio de Janeiro, em setembro de 2023.
Significava que “a Academia não é uma torre de marfim, é um lugar da cidade toda”, respondeu Heloisa. “Vamos habitá-la. A Academia tem um simbolismo muito importante. É a mais alta patente, a coisa mais respeitada, a coisa mais legitimada das letras da cultura brasileira. Então por que não pode ser de todos?”
Sobre ideias que levava para a ABL, disse que tinha sugerido ao presidente, Merval Pereira, a criação de um curso de formação de escritores, principalmente da periferia. “Autores da periferia estão sendo traduzidos em todo o mundo, estão ganhando prêmios. Estão trazendo um universo novo. O que significam essas vidas? Seus sonhos, suas alegrias? Essas pessoas têm o direito de fazer sua própria literatura. A formação de mais e mais escritores só pode ser um ganho para a academia e para a literatura brasileira.”
Em 2023, anunciou que abandonava o sobrenome Buarque de Hollanda, do primeiro marido, o advogado e galerista Luiz Buarque de Hollanda (também foi casada com o fotógrafo e documentarista João Paulo Horta), e passaria a adotar o Teixeira, de sua mãe. Homenageava uma mulher cuja “potência feminina foi oprimida pela cultura patriarcal”, disse em entrevista ao jornal “O Globo” em julho daquele ano. “Quando comecei a olhar as mulheres mais de perto [como ativista do feminismo], falei: “O que eu estou fazendo com essa roupa, com esse sobrenome que não é meu?”.
Tatuou o novo nome nas costas. “Tudo do feminismo atual passa pelo corpo, e o meu novo nome está no meu corpo, junto com a família.” Fez a primeira tatuagem em 1979, até chegar a 11. Várias são desenho dos netos.
Nasceu em Ribeirão Preto (SP), em 26 de julho de 1939.