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quinta-feira, abril 24, 2025

Novas formas de contar e a pulsante paisagem sonora em “Carlabê” – Revista Cult

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Páginas e páginas já foram escritas dando o atestado de óbito do romance como o conhecemos. Para a causa mortis, os diagnósticos são os mais variados, indo de fórmulas saturadas a temas esgotados, passando pelo excesso de autocentrismo, por um lado, e pela exagerada preocupação social, por outro. E, no entanto, esse lépido moribundo segue por aí, ainda que mal das pernas, insistindo em uma produção, ao menos no caso do Brasil, variada, diletante, nem sempre perfeita, mas com resultados interessantíssimos – e, muitas vezes, fundamentais para que seja possível pensar numa identidade nacional.

Carlabê, segundo romance da mineira Isabela Noronha, é uma prova de que há meios de se reinventar, sim, o romance, tanto por um uso inovador da linguagem quanto por focar em um tema que costumava estar distante da atenção literária. Mais do que isso, é também um tijolo importante na construção contínua de uma ideia de Brasil tão absurdamente plural que, se tem se renovado com representações fundamentais do interior, como Torto arado e Mata doce, dos baianos Itamar Vieira Junior e Luciany Aparecida, e de A cabeça do santo, da cearense Socorro Acioli, também dá lugar a livros urbanos fundamentais, como Os supridores, do gaúcho José Falero, e O céu para os bastardos, da paulista Lilia Guerra.

A partir de uma sinopse aparentemente simples, um tanto misteriosa, mas cujos fios vão se desenrolar de um jeito não apenas surpreendente, como também polifônico – expressão que pode mesmo ser lida de forma literal –, Isabela Noronha traz uma novidade. A sinopse, cruamente falando: um corpo encontrado na calçada de uma rua no centro de São Paulo desperta o interesse de um jovem repórter, que, ao interrogar a vizinhança, conhece Saramara, personagem devastadoramente comum, moradora do prédio em frente. Ela passa a tentar convencer o repórter de que o corpo não é de Carlabê, amiga e ex-moradora da casa, cujo destino não sabemos – Saramara tampouco sabe. E o encontro entre os dois, diálogo exclusivamente registrado como uma transcrição de áudio, é o fio condutor do livro, que será entremeado por trechos de um improvável diário de Carlabê.

Saramara fala muito, e bem, e se desdobrará nas páginas seguintes como narradora, mas não por uma via convencional: a narração se dará pela transcrição do áudio que o repórter grava ao longo das páginas, e o livro é um longo monólogo escrito na linguagem truncada da fala, cheio de piscadelas, ironias e interrupções, e ainda rubricas dignas de um Tempos modernos em versão texto – freadas, buzinas, construção civil, máquinas, a paisagem sonora da selva na pedra. O livro é ruidoso como o centro de São Paulo, e o movimento de incorporar isso talvez seja a dor e a delícia do romance, porque há novidade, é claro, e ela entra nos sentidos com muita destreza da voz da escritora, mas também pode ser cansativo, porque parece sempre empacar o rumo da história. Importante notar que a autora sabe muito bem o que faz, e o faz muito bem, mas talvez seja um inevitável cansaço de paulistano lidar com os ruídos sobrepostos, numa metalinguagem quase tétrica. O mérito, parece-me, é justamente esse de tecer o palco da história pelos fragmentos e do espanto sucessivamente reiterado com essa cidade que não para e não perdoa, e não poupa ninguém da sua barulhenta agonia.

Evidenciados o engenho do livro – a narrativa paralela entre a transcrição do áudio e o diário de Carlabê – e a forte chancela de intimidade que esses dois recursos são – um pelo jorro que é a linguagem oral, outro pela intimidade máxima que é a linguagem do diário –, é preciso dizer que há uns tropeços no enredo. Não entendemos muito bem por que tamanho empenho de Saramara em convencer o repórter de que o corpo não é de Carlabê, se ninguém perguntou. Ela mesma levanta a dúvida, ela mesma se aferra a dirimi-la. Justo. Que seja a negação de Saramara de compreender o risco que a amiga corre. E é preciso dizer que entre Carlabê e Saramara há uma ligação ao mesmo tempo sutil e voraz, que é o próprio núcleo do livro. Um afeto gigantesco, com admiração, cuidado, alguns laivos de paixão, pequenas doses de pena. Humano, demasiado humano. Mas se pelo discurso de Saramara a relação é recíproca, isso transparece menos no diário de Carlabê, guardado com cuidado pela amiga, e que, pingado em pequenas doses ao longo do livro vai revelando uma história triste, solitária e misteriosamente silenciosa, em meio ao trânsito de São Paulo.

Nesse duplo registro de narrativas não convencionais – transcrição e diário –, o romance se desenrola sem nenhum outro narrador, sem mediação, puro contato imediato. E isso é o céu e o inferno da obra. Na construção desse relato de buscas sobrepostas – a do repórter por uma história, a de Saramara por Carlabê, a de Carlabê por um sentido na vida –, o romance ganha ares de mistério, mas um mistério rastaquera, comezinho, como aparentemente são os milhares de destinos deitados nas esquinas das grandes cidades.

Com algumas inverossimilhanças – algum repórter, de fato, passaria o dia falando com uma mulher que não tem exatamente nada a dizer sobre um corpo sobre o qual não se sabe nada, jogado no meio da rua no centro de São Paulo? Houvesse tal repórter iluminado, passaria ele o dia inteiro sem falar nenhuma frase? Detalhes, é verdade, licença poética, ou o que quer que seja. Mas, na mistura entre algo tão formalmente “real” (é um áudio gravado, com todas as intercorrências possíveis), estranha que essas perguntas não sejam minimamente respondidas.

Nada disso atrapalha, contudo, o frescor de um romance escrito em busca de uma nova forma (outra busca, veja só). Carlabê é um livro que investiga, ainda que as investigações não necessariamente cheguem a algum lugar. O que fica, límpido e vivo, é o espanto com a cidade, com as pessoas, e a sensação gritante de que sempre há mais por trás da paisagem humana que vemos todos os dias. E nesse sentimento vibrante, entendemos que o romance segue vivo.

Ana Lima Cecilio é formada em filosofia pela USP e trabalha há mais de 20 anos no mercado editorial como editora e livreira. Atualmente, é curadora da Flip – Festa Literária Internacional de Paraty

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