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quinta-feira, abril 24, 2025

Frestas do confinamento – Revista Cult

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Rio de Janeiro, manhã de um dia qualquer na pandemia. A pé, a caminho do ateliê, Antonio Manuel percorre as ruas de Laranjeiras, na zona sul do Rio de Janeiro, enquanto para nas três grandes bancas do bairro. Ali, ele lê notícias penduradas antes de seguir o trajeto. “Esse é um dos meus prazeres do dia”, conta o artista plástico de 77 anos.

No ateliê, jornais, empilhados, começam a formar uma quase escultura. Ao folhear as páginas, Antonio Manuel então esquadrinha o emaranhado de letras e imagens impressas para encontrar uma palavra, uma frase, um rosto. Lança um papel sobre as páginas, cobre-o de tinta para então reencontrar o essencial. “Como uma espécie de cirurgia com as mãos, como um bisturi, vou abrindo e revelando a imagem e o texto”, explica.

O resultado dessa intervenção está no livro Incontornáveis (BEĨ editora), que será lançado no dia 4 de abril em São Paulo, durante a SP-Arte. No volume, bilíngue, os experimentos recentes dialogam com obras e performances que marcaram a carreira do artista. Com 208 páginas, o livro tem ainda textos inéditos dos curadores Ana Maria Maia – que também participa do lançamento, em conversa com o autor – e Paulo Venancio Filho, além do ensaio “O galo dos ovos de ouro”, escrito por Décio Pignatari, em 1973, para a exposição “De 0 às 24 horas nas bancas de jornais”.

Nos recortes à mão, sobressaem manchetes e chamadas sobre vacinas, quarentenas, dados de saúde, ladeados pelas imagens de gente confinada, em máscaras e roupas de proteção – no vocabulário e no estuário de imagens próprias da maior crise sanitária do último século. A turbulência política global, com a ascensão mundial da extrema direita, também está no recorte de Antonio Manuel. Na história escrita pelos jornais, estão impressos o negacionismo científico, o desprezo à cultura, a crise ambiental e a corrosão da democracia.

Entre as fotografias e os textos que sublinham o recolhimento compulsório da Covid-19, há espaço para tributos – como a Luis Buñuel e a João Gilberto –, além de experimentos abstratos ou surreais, como uma provocação que remete à metamorfose kafkiana em um fragmento de textos. Restos de notícias, palavras recobertas de tinta – ou reveladas pelas cores e pelos recortes do papel – comentam, aprofundam e se associam a registros da trajetória de Antonio Manuel ao longo de mais de cinco décadas de carreira.

“O corpo gráfico é o corpo da vida”, diz o artista, nascido em Portugal em 1947, e que chegou menino ao Brasil, aos 6 anos. “Gráfica, vida, corpo – para mim, estão todos em uma mesma poética.” O fascínio pela palavra impressa dos jornais é antigo. Desde seus primeiros trabalhos nos anos 1960, Antonio Manuel faz arte do impresso – como em “Urnas quentes”, feito com jornais e matrizes, ou “Clandestinas”, quando usou o maquinário e as páginas do popular O Dia para reinventar notícias em uma época marcada pela censura. Os jornais criados pelo artista chegaram a ser vendidos em bancas de jornal como exemplares comuns.

“Queria criar um novo meio para mostrar o trabalho de arte, querendo já romper com instituições, galerias, com o sistema de mercado. Esse era o meu viés”, conta Antonio Manuel, cuja trajetória é marcada pela insubmissão e pela afronta à censura. Em uma de suas mais expressivas provocações, quando o 19º Salão Nacional de Arte Moderna, em 1970, recusou o trabalho “O corpo é a obra”, o artista, em protesto, desceu nu as escadas do MAM do Rio de Janeiro.

A passagem aberta nos papéis monocromáticos de Incontornáveis que cobrem os jornais lembram, como o próprio artista ressalta, os muros quebrados de “Ocupações/Descobertas”, exibidos na Bienal de Veneza, em 2015. “Prestem bem atenção ao rasgo” – escreve Paulo Venancio Filho no livro –, “ele não vai desapontar, sua minúcia deliberadamente calculada, a praticamente infalível maestria dos dedos e a inaudita operação cirúrgica estética expõem a beleza e o desenho límpido da incisão”.

Para a nova série, Antonio Manuel partiu da entropia da informação, perdida no sem-fim de palavras, para chegar ao recorte preciso. “O ato criador começa como um caos”, afirma o artista. “Nesse caos, vem a copidescagem”, diz Antonio Manuel, referindo-se ao jargão jornalístico para revisão de textos. “De forma poética, ela limpa a situação para focar no elemento de arte.”

Primeiro, foram dois textos curtos que, riscados, transformaram-se em espécie de versos sobre a venda de “baratas premium”. Dali, o corte do bisturi daria origem aos cerca de 70 trabalhos de Incontornáveis. “O absurdo estava ali, como o absurdo que estávamos vivendo com a pandemia”, lembra o artista. Como contraponto à morbidez das notícias, pintou sobre os jornais cores vivas e brilhantes em esmalte sintético, que contrastavam com a crueza cinzenta dos textos. “Os trabalhos nasceram dessa vontade de fazer algo que pudesse reagir a essa situação e de que a arte pudesse ser, como diz Mário Pedrosa, a alegria de criar e de viver.”

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[Fonte Original]

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