Depois das ótimas preparações de A Paz de Deus, o terceiro arco de Chip Zdarsky com o Demolidor é uma progressão madura dos conflitos apresentados anteriormente, trazendo novamente abordagens dramáticas sobre moralidade, mudança, penitência e culpa para a jornada tortuosa do herói titular. Mais uma vez, o texto foca mais em questões particulares de Matt, ainda hesitante em suas ações e enferrujado com o tempo “aposentado”, algo bem exemplificado na caótica sequência de luta envolvendo alguns policiais corruptos, um Demolidor impostor e Foggy Nelson – caramba, como é bom o retorno de Marco Checchetto aqui, que tem uma construção de cenas e de diagramações meticulosas em torno do uso de poderes do Matt, sempre com cuidado geográfico e de montagem para transpor como o protagonista “enxerga” as lutas.
A participação de Elektra se revela, de início, uma versão atualizada de Stick, servindo como guia para o retorno à forma de Matt – que segue recusando o manto do Demolidor. Achei a presença da assassina meio deslocada e conveniente, aparecendo para treinar o protagonista quando ele mais precisa, mas gradualmente entendi melhor o direcionamento narrativo, com a personagem convidando a história para uma tentação antiga do Demolidor ganhando espaço mais uma vez em sua vida, para bem ou para mal. Isso fica claro no final do arco, em que o herói, ironicamente, está em busca de controle até ver a situação escorregando por seus dedos depois de um beijo de Elektra, que parece trazer o personagem de volta para erros do passado.
Ao longo das críticas dessa run do Zdarsky, tenho percebido alguns comentários críticos à essa reciclagem temática do autor, mas, apesar de entender a falta de novidade do volume até aqui (mais à frente falo disso), penso que o trabalho tem sido fiel à mitologia e aos tópicos recorrentes do personagem. E é interessantíssimo o paralelo com Fisk, que segue em conflito com seu novo papel e seus impulsos violentos, algo exemplificado na soberba sequência do prefeito na casa da família mais rica do mundo, se submetendo a seus instintos primais. A participação de Wesley aqui é notável, com mais um trabalho cuidadoso com diagramações, montando a trajetória do ajudante do Rei do Crime até a cena do assassinato com um nível de intensidade, frieza e objetividade que ficam bem exemplificadas na obra.
Mas nem só de passado vive o texto de Zdarsky, que traz alguns caminhos diferentes para a trama de crime. O que inicialmente parecia e ainda superficialmente é uma narrativa sobre uma guerra de gangues em Hell’s Kitchen pelo trono deixado por Fisk, ganha alguns contornos inesperados sobre as verdadeiras figuras no poder. O sistema é algo que já foi abordado em outras histórias do Homem Sem Medo, algo que vemos aqui na ótima trama de Cole e seu conflito sobre lei e justiça; certo e errado, que persegue Matt há décadas, valendo destacar os diálogos e a construção do ótimo bloco na cafeteria – a participação rápida do Homem-Aranha também agrega à jornada do policial. Mas o que chama a atenção é o antagonismo do texto, seja em Matt (junto de Elektra) concentrando seus esforços em descobrir de onde veio as ordens do alto escalão, e menos na família Libris ou no Coruja, seja com a ainda mais instigante trajetória de Fisk, saindo da sua bolha para entender, de várias formas humilhantes para ele, o que verdadeiramente é controle e influência.
É raro vermos histórias urbanas da Marvel ou da DC irem para esses caminhos de explorar a raiz dos problemas sociais, saindo das ruas, das Gotham’s e Hell’s Kitchen’s, saindo até do campo dos colarinhos brancos (fantoches aqui), para chegar no 1% do 1%. Não sei se Zdarsky vai se aprofundar completamente nisso, mas espero que sim, porque é onde sua trama chama a atenção para algo diferente no cânone, principalmente com o arco de Fisk, vulnerável e encurralado como poucas vezes visto antes. Fora disso, o autor ainda equilibra muitos pratos, com a jornada pessoal de Matt, numa mistura de culpa católica (sem falar da descoberta da sua identidade pelo irmão do criminoso que ele matou), gradual autocontrole, problemas de personalidade e a linha solta com Mindy; a participação suspeita de Elektra e suas reais motivações; o conflito da sucessão entre as gangues da cidade; e a subtrama de Cole nesse tumulto todo. É muita coisa, com diferentes graus de qualidade, mas tudo interconectado no que pode se tornar uma narrativa ainda mais rica nos próximos arcos.
Demolidor: Atravessando o Inferno (Daredevil: Through Hell) — EUA, junho a outubro de 2019
Contendo: Daredevil – Vol.6 #11 a 15
No Brasil: Demolidor 3ª Série – n°3 (Panini, dezembro de 2020)
Roteiro: Chip Zdarsky
Arte: Marco Checchetto, Francesco Mobili
Cores: Nolan Woodard, Rachelle Rosenberg
Letras: Clayton Cowles
Editoria: Devin Lewis, Nick Lowe, C.B. Cebulski, Danny Khazem
Editora: Marvel Comics
112 páginas