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terça-feira, abril 29, 2025

Crítica | Colônia — 1ª Temporada – Plano Crítico

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“Artigo 5º da Declaração Universal dos Direitos Humanos: Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano e degradante.” – Aviso Prévio 02, mostrado logo no início de todos os episódios da primeira temporada da série.

Desumana. Pavorosa. Perversa. Essas são umas das várias adjetivações que podemos atribuir ao Hospital Colônia de Barbacena, o qual funcionou entre os anos de 1903 e de 1980, em Minas Gerais (MG), conforme apurou a brilhante jornalista Daniela Arbex em Holocausto Brasileiro: 60 mil mortos no maior hospício do Brasil, livro-reportagem lançado em 2013. Além desse material, dois documentários também foram lançados para contar as atrocidades, a saber: Em Nome da Razão – Um Filme sobre os Porões da Loucura, produzido pelo cineasta Helvécio Ratton, em 1979; e Holocausto Brasileiro, lançado em 2016, pela HBO. Já em 2021, o Canal Brasil lançou a série Colônia, a qual também foi inspirada na pesquisa profunda de Arbex. Nela, conhecemos a história ficcional de Elisa Casales de Albuquerque (Fernanda Marques), jovem de 23 anos de idade que – estando grávida de quatro meses – chegou à unidade hospitalar em janeiro de 1971, em razão de sua paixão com um jovem rapaz, chamado Pedro (Augusto Trainotti). A ida dela para o manicômio se justifica em função da sociedade patriarcal à época, pois Júlio (Henrique Schafer), o seu pai, um homem extremamente conservador, obrigou o despache da moça para aquele local horrendo por não aceitar a situação citada.

Além de Elisa, outros indivíduos da sociedade que eram considerados “indesejáveis” eram enviados para o Hospital, como  os negros, as protitutas, os homossexuais, os alcoólatras, os equizofrênicos ou qualquer outra doença relacionada ao aspecto da ausência de cuidado da saúde mental. No trem, antes da chegada ao local afastado, o grupo era amontoado em meio a fezes e a vômitos, ou seja, em um ambiente completamente insalubre para qualquer ser humano, juntamente a uma sirene ensurdecedora, com a finalidade de enlouquecer qualquer pessoa que a esteja ouvindo por muitas horas seguidas. Se formos parar para pensar, tem apenas 50 anos desde os acontecimentos estarrecedores que ocorriam na unidade hospitalar, os quais, infelizmente, foram normalizados, como as torturas física e psicológica, a ausência de comida e de bebida, os banhos de água fria com mangueira e, pior, as sessões de eletrochoque, com o objetivo de “curar” os intitulados “doentes mentais”. E de forma a retratar com maestria, segundo o criador André Ristum – em entrevistas durante o lançamento do seriado -, ele não conseguia enxergar outro formato de gravação dos episódios a não ser em preto e branco, porque “(…) a vida dessas pessoas não tinha nenhum brilho, nenhuma cor, nenhuma luz… Era, de fato, uma coisa monotemática (…), um ambiente mais soturno, desesperançoso. (…) Não consigo imaginar como seria contar ‘Colônia’ colorida. Não consigo enxergar isso. Pra mim, só tinha como ser mesmo em preto e branco, não tinha jeito (…)”, refletiu o roteirista. De fato, portanto, a ausência de cores foi algo espetacular, pois conseguiu nos conectar ainda mais à trama, naquele universo de desesperança, sem vida, sem nada, isto é, demasiadamente triste.

Além disso, a personagem-protagonista conseguiu materializar em seus trejeitos a angústia e o desespero em não querer permanecer naquele ambiente hostil. Assim como ela, conhecemos outros personagens marcantes que contribuíram para tornar o seriado impactante, como Gilberto (Arlindo Lopes), rapaz não heterossexual, que foi enviado para o local pela sua mãe por ela acreditar na errônea “cura gay”, visto que – na comcepção dela – ele estava “doente” e, por isso, precisava ser “tratado”; Dona Wanda (Rejane Faria), mulher que há anos sonha em ver o filho, contudo ele foi arrancado de seus braços logo após dar à luz ao pequeno; Valeska (Andréia Horta), prostituta que sonha em ser pedida em casamento, mas é enganada pelo seu amante, o Prefeito Genésio (Vanderlei Bernardino); e Rosana (Ana Kutner), mulher que desde a infância está nas dependências macabras do hospício e sempre atormenta os novatos. Em meio às histórias de cada um deles, o sentimento de indignação atormenta-nos o tempo inteiro, uma vez que ocorreu de fato um genocído manicomial no Brasil, e poucas pessoas conhecem essa atrocidade do século XX.

Ademais, além da comida em meio aos ratos, as baratas e as fezes, os pacientes eram submetidos a tomarem comprimidos em cima de comprimidos para serem “acalmados”, em uma espécie de “lavagem cerebral”, com a intenção de eles não se rebelarem com os funcionários do Hospital Colônia, como os agressivos enfermeiros Ramires (Marco Bravo) e Juraci (Augusto Madeira). Por falar neles, a dupla representava a sociedade vigente da época: patriarcal, preconceituosa e racista. Essa última característica vimos materializada na cena em que o personagem Raimundo (Bukassa Kabengele) foi levado para uma sessão de tortura com eletrochoque, tendo um pano inserido na boca dele para abafar os gritos. Me desculpem pelo trocadilho, mas a cena é de fato chocante! Ele ficou “petrificado” em poucos segundos e, logo em seguida, o homem perdeu a percepção de lugar, de sentimento e de se sentir realmente um ser humano, em um nítido olhar vago. Somente por meio do carinho entre os internos é que eles conseguiram suportar na medida do possível aquela realidade tão avassaladora.

Somado a isso, vale ressaltar o grande comércio de corpos abatidos e vendidos para a pesquisa, inclusive para universidades públicas brasileiras, as quais recebiam os “indesejáveis” na vida real para serem manuseados nas aulas de anatomia, por exemplo. Virou uma lucratividade para o Colônia, estabelecimento hospitalar que precisava manter as portas abertas para continuar perpetuando as maldades e as atrocidades bárbaras diárias para com os pacientes. Por falar neles novamente, tivemos duas mortes trágicas: a de Valeska, que levou um tiro nas costas durante a infrutífera tentativa de fuga na horta; e a de Gilberto, o qual morreu literalmente de frio por ter dormido do lado de fora em meio ao sereno da noite. Para piorar, Elisa também passou por sessões de eletrochoque, impactando a vida da moça em cenas angustiantes, de cortar o coração. Como consequência, a moça acabou perdendo o bebê em seu ventre materno, juntamente ao fato de ficar perambulando e conversando sozinha pelos corredores. É um sofrimento diário e inacabável. É uma atrocidade normalizada por médicos, enfermeiros, policiais, gestores, parentes… A sociedade como um todo banalizou e naturalizou a violência manicomial.

No final, com a ajuda da enfermeira Laura (Naruna Costa), a jovem Elisa consegue finalmente sair do Hospital em uma eletrizante cena de fuga, com direito de a nossa protagonista fingir estar morta em meio aos sacos de pano com corpos empilhados e ao extremo odor fétido. Destaque para o momento de luta e de resistência da protagonista com o enfermeiro Juraci, o qual não conseguiu impedi-la de machucá-lo com a cruz e, ainda por cima, fugiu, conseguindo, dessa forma, chegar à fazenda de sua família. No episódio derradeiro, então, somos surpreendidos, assim como os pais de Elisa, com o retorno da jovem, com ela apontando uma espingarda para eles e dizendo: “Oi, pai!”. E, desse modo, o décimo episódio da primeira temporada de Colônia finaliza, fazendo-nos pensar em diversas teorias para uma segunda temporada, a qual – apesar de ter sido confirmada – ainda não foi divulgada uma data de estreia.

Será que finalmente Júlio perdoará a filha? Elisa conseguirá salvar os seus amigos do Hospital? E as denúncias às autoridades competentes serão feitas? Onde está Raimundo, outro paciente que fugiu ao lado de Elisa? Para nos deixar ainda mais apreensivos com os novos episódios, fomos impactados com Juraci deitado no chão mexendo os dedos após a luta na rua. Aparentemente, ele não morreu e, com certeza, vai querer se vingar pelos atos da garota. Por enquanto ainda não temos respostas, todavia temos a certeza de que o seriado – embora tenha apresentado uma história extremamente triste e revoltante – conseguiu promover a reflexão para com os telespectadores, de modo que não tenhamos mais a intenção de repetir essa barbárie tão desastrosa enquanto seres humanos. Ninguém merece ser tratado pior do que lixo, e, justamente por isso, André Ristum e equipe conseguiram de forma brilhante nos emocionar com toda a trama de Elisa. Enfim, profundidade, amizade, força, resiliência e emoção estiveram presentes ao longo dos 10 episódios exemplares da primeira temporada de Colônia.

Portanto, percebe-se que a verdadeira loucura está na maldade humana dos “normais”, e não naqueles que foram de forma errônea considerados “indesejáveis” – homossexuais, alcoólatras, grávidas foram do casamento, prostitutas, por exemplo – perante à sociedade. Apesar de ter ocorrido uma reforma psiquiátrica no Brasil, juntamente à Luta Antimanicomial, ainda como sociedade precisamos avançar muitos anos-luz à frente do combate às diversas formas de violência e de desumanidade. Para vocês terem uma ideia, de tão degradante e negativo que foi essa ocorrência, o município de Barbacena, em Minas Gerais (MG) – localidade onde encontra-se o verdadeiro e já desativado Hospital Colônia – ficou conhecido como a “Cidade dos Loucos” pelo médico e escritor João Guimarães Rosa, no conto Sorôco, sua mãe, sua filha, de 1947, em virtude de ser um verdadeiro purgatório da vida real. Hoje, o endereço dá espaço ao Museu da Loucura, inaugurado em 1996, de forma a registrar essa memória genocida, em que os poucos sobreviventes recebem indenização do Estado, inclusive, conforme está escrito na obra-base. Dessa maneira, Colônia incomoda e muito: não é um conteúdo fácil de ser consumido, afinal de contas a série comprova que os verdadeiros “loucos” são os homens considerados “normais”. Eles são os verdadeiros monstros, que, por razões distorcidas e maldosas, praticaram uma violência exacerbada em cima de indivíduos vulneráveis e inocentes. É chocante: há 50 anos estávamos “fritando” pessoas em uma unidade hospitalar, sendo o procedimento considerado “exemplar”. É absurdo e imperdoável.

Em novembro de 2023, o seriado ganhou um filme intitulado Ninguém Sai Vivo Daqui, também contando a mesma história de Elisa, mas com promessas de ter uma inédita perspectiva. No entanto, para a minha frustração, a obra audiovisual mencionada foi transformada em uma espécie de “colcha de retalhos” da série-base, já que as cenas foram brutalmente recortadas e montadas de forma apressada e sem sentido. Não sei se ele merece uma Crítica aqui, no Plano Crítico, porque, embora seja um material super convidativo, o resultado final não é nada emocionante, e sim decepcionante. Inclusive, pelas notícias divulgadas, o longa iria apresentar cenas inéditas, porém isso não foi exibido, nem ao menos nas cenas pós-créditos. Foi uma verdadeira frustração! Espero que isso seja corrigido na segunda temporada, a qual, apesar do desastroso filme, estou com uma expectativa positiva.

Colônia – 1ª Temporada (Brasil, 2021)
Criação: André Ristum
Direção: André Ristum
Roteiro: André Ristum, Daniela Arbex, Rita Glória Curvo
Elenco: Fernanda Marques, Augusto Madeira, Augusto Trainotti, Andréia Horta, Rejane Faria, Arlindo Lopes, Naruna Costa, Samuel de Assis, Henrique Schafer, Bukassa Kabengele, Aury Porto, Marco Bravo, Marcelo Laham, Paulo Américo, Maria do Carmo Soares, Lílian de Lima, Anna Kutner, Rafaela Mandelli, Teka Romualdo, Eduardo Moscovis
Duração: 10 episódios



[Fonte Original]

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