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sábado, maio 17, 2025

A Lésbica não existe. Inventa. Ex-siste. – Revista Cult

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Encontro Ocupa Sapatão, no Dia Nacional da Visibilidade Lésbica, no Rio de Janeiro, 2018 (Fernando Frazão/Agência Brasil)

 

Partimos pela via da negação. De onde surge a dissidência, se produz deslocamento e uma fenda no sentido prescrito do referente que se anuncia como universal: a heterossexualidade compulsória.

Assim nascem os errantes corpos desejantes. A dissidência lésbica, solitária em sua aparição na pólis, narrada de fora dela mesma sob o céu da invisibilidade.

Diziam-nos sem eira e à beira do abismo da diferença, marcada pelo insistente apagamento lésbico. Mulheres que se juntavam para viver suas vidas longe do holofote vigilante guardião da heteronormatividade. Seguiram rastros para poder se coletivizar. Se o silenciamento faz parte da história lésbica, também faz o burburinho. E este aos poucos se torna barulho. Os encontros cada vez mais sonoros em bares, ruas, salões, trens, textos, cartas, pinturas rompem com o isolamento. E o barulho, ao se articular, pode se tornar discurso.

Ao se reconhecerem como sujeitos que têm algo a dizer, as lésbicas fundaram uma discursividade própria. Daí, derivou, na década de 1970, o processo de autonomização política do movimento lésbico e a fundação de organizações como o Goiunes Rouges, na França, o coletivo Combahee River, nos Estados-Unidos e o GALF (Grupo Ação Lésbica Feminista), no Brasil. As consequências para o movimento feminista e as ciências sociais foram inúmeras. Mas, ainda hoje, teria o discurso lésbico algo a dizer à psicanálise? É possível existir uma discursividade lésbica na psicanálise?

É a partir dessa pergunta que se organiza o coletivo Travessias Lésbicas, um grupo de trabalho e pesquisa sobre as intersecções entre lesbianidades e psicanálise. Unidas pela proposta imagética de sair do isolamento da Ilha de Lesbos para povoar o continente fálico da psicanálise, abandonamos o murmúrio quase inaudível produzido pela fala de quem se vê como única, para do apagamento fazermos surgir palavra. Sem recair em um lugar identitário de não reconhecimento das diferenças, cansadas de ser absorvidas pelo véu da camuflagem e suas consequências – a invisibilidade e o silenciamento – e, sobretudo, somando o tom e o timbre de vozes desejantes de atravessar barreiras e fazer eco, nos unimos em torno da aposta de que as lésbicas têm uma posição possível de enunciação.

Com vocês, as apartadas da norma, na borda entre a insubmissão e o desinteresse pelos códigos de um relacionamento heteronormativo, na fronteira do que se lê como fora do campo semântico da sexualidade, situam-se as lésbicas. Não orbitam a figura de um homem como ordenador porque não se referenciam necessariamente por esse modo de laço. Eis um não lugar pouco conveniente com a estética hétero-patriarcal. A ex-sistência sapatão como possibilidade de leitura em dupla função: desmonte de um binarismo homem-mulher que parece se sustentar há tempos sob uma lógica de guerra e aniquilamento onde só existe lugar para o Um maiúsculo com vestes de universal. E, uma reinvenção da ordem. Uma reordenação?

O “pensamento lésbico” de Monique Wittig surge como via de ruptura desse suposto sujeito universal. A lésbica recusa o papel esperado de uma mulher. Quantas mulheres lésbicas já não foram interrogadas: “Será que essa é uma mulher?”. Isso produz deformação no pacto implícito na divisão dos papéis de gênero. Se, a partir de uma leitura materialista, uma mulher só se define a partir de sua relação social com um homem, para Wittig “as lésbicas não são mulheres” (1980, p. 67). O pensamento hétero e outros ensaios, desdobra em desmonte o argumento imaginário sobre um essencialismo que se sustenta em argumentos biológicos. As consequências disso nos interessam.

Não nos interessa a definição de mulher oferecida pelo regime hétero-patriarcal. A proposta de Wittig é que a lésbica tem outra função. Um deslocamento, um trânsito da centralidade do referente heteronormativo como ponto de partida, um operador que redireciona o binarismo, do qual não é possível sair sem entrar. Que dele sejam inventadas outras coisas, parta-se para outras destinações. Negar a referência do par binário. Produzir novos desdobramentos ao significante mulher para ocupá-lo a partir de posições polissêmicas.

Que possam escutar: “a lésbica é uma via de rasura” (Adriana Azevedo, 2022). Isso possibilita outras formas de se posicionar diante da lógica binária que normatiza o sexo e o gênero. Daí deriva que a lesbianidade não está fixada na cisgeneridade, não se limita a uma prática sexual, nem se trata meramente de uma identidade política. Mas, sim, de uma ética de habitar o mundo.

Na criação de existências e novas formas de viver, a cada uma, soma-se sem subtrair no apagamento de uma identidade. Mais uma, e mais uma outra e assim se faz uma corrente que passa ao plural de uma a uma e se anuncia em sigla: Um L pra chamar de lésbica! um L de laço e de lastro. Um laço que nos enoda em nós.

Há-divirtam-se vigilantes de plantão. Que busquem o que vêem em seus espelhos rachados: aquilo que outrora foi invisibilizado, retorna do recalcado freudiano ao divã sapatão.

O privado outrora fadado à loucura do enclausuramento, torna-se público e político num êxtimo gesto de dizer-se corpo.

De torcer o referente da fundação, giro de desnortear a bússola e inversão de paradigma. Um outro léxico? Diz-léxico!

Corpos de outros efeitos produzem outros feitos. Código logo ex-sisto. Afinal, ao final, um corpo que não se sustenta de cogito cartesiano.

Corpos de palavras se fitam há tempos pendurados na precariedade da ordenação simbólica imaginarizada de um sistema de códigos que opera a heteronormatividade.

Das fanchas, das entendidas, das caminhoneiras, das rachas, das sapas, das sapatrans, das loucas, das freiras insubmetidas e sobreviventes ao desejo de se fazerem outros rumos.

Uma lésbica se pergunta, não sem o desejo de sair da invisibilidade. E se, ao invés de nos submetermos à ganância de gritar insistentemente “eu existo”, também considerarmos que “aquilo que não existe” pode produzir efeitos tão disruptivos ou até mais do que os objetos empíricos, visíveis e falicizáveis? Se ao invés de nos irritarmos tremendamente com a pergunta “vocês que são lésbicas, como transam?”, dermos risadas mulherizadas diante daquele que nunca imaginou um encontro entre corpos sem a existência de um pau?

Se aprendermos a nos regozijar com a ausência de localidade de encontrar um bar de lésbica, por ora, isso significar nosso apagamento; mas ora isso significar que nosso encontro permanece fora do mapa e que de vez em quando é maravilhoso não ser encontrada e capturada pelas bússolas que se mostram em qualquer google maps? Ainda assim, mesmo com esse regozijo de ser esquecida, de poder se divertir num laço onde a bússola perde a sua verificação, dizer de si, em praça pública se faz necessário, para que o apagamento não continue sendo a métrica da vez.

Por que será que a jovem homossexual foi a única nomeada, nos casos freudianos, pela sua orientação sexual e não pelo seu nome próprio (fictício que seja)? Ou ainda, porque Freud ficou tão cego em perceber que a jovem Dora estava muito mais interessada em ter notícias sobre o que é uma mulher do que em beijar a boca do Sr. K? Porque tantas experiências sapatão são contadas na perspectiva heterossexual como se fosse apenas uma questão de lógica discursiva e não do encontro entre duas mulheres, algo que muda toda a pista de aterrissagem, nos exigindo outros elementos para poder ler uma vivência que vai muito além de “com quem você se deita”? bell hooks não cansou de dizer que o feminismo tinha algo a aprender com as lésbicas, porque elas não perdiam tanto tempo se queixando de homens, por não estarem com a lupa concentrada neles. O que muda, numa experiência de mundo, onde o Homem não é o centro da Terra?

Esse é um convite para que as vozes lésbicas se imponham a partir dos seus enredos: suas formas de amar, trabalhar, dizer, escrever e escutar. Ser única não nos interessa, mesmo que estejamos interessadas na singularidade de uma a uma. O que mais nos interessa é esse laço produzido pelo rastro de cada uma e que nos dá lastro.

 

Anna Cecília Fernandes é psicóloga formada pela UFMG. Especialista em saúde mental pela PUC-MINAS. Psicoterapeuta de abordagem psicanalítica, dedicada ao estudo e à promoção da saúde mental da população LGBTQIAPN+. Entusiasta de uma Psicanálise viva, em constante diálogo com a pluralidade de saberes e sujeitos

Bárbara Cristina Souza Barbosa é psicanalista, mestre em psicologia clínica pela USP, membro do Laboratório de Psicanálise, Sociedade e Política (PSOPOL), doutoranda em psicologia clínica na USP e docente no Instituto Gerar

Flávia Ripoli Martins é psicanalista, psicóloga e mestre em psicologia clínica pela PUC-SP. Autora de Histórias da margem: lésbicas, gays e os primeiros psicanalistas (Blucher, 2023)

Joana Manassés Penteado é psicanalista, mestre em psicologia social pela PUC-SP e integrante do AGE (ambulatório de generidades) IP- USP



[Fonte Original]

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