“Sem uma linguagem compartilhada, nunca há a possibilidade de compartilhar qualquer riqueza. O comum da linguagem é construído apena na luta e a partir da luta.”
(Marcelo Tarì, 20 teses sobre a subversão da metrópole)
Galy Gay, quem diria, o cordato estivador irlandês da comédia Um homem é um homem, de Bertolt Brecht, saiu da Índia há exatos cem anos para comprar um peixe para sua mulher e chegou, em pleno dia 1º de maio (“quando a sirene não apita” – será mesmo?) de 2025, ao Brasil, onde se transformou no motorista de aplicativo bonachão Gesualdo Brilhante. Trata-se de uma longa viagem (desgastante, mas vivificadora) pelo espaço-tempo que somente um teatro comprometido em analisar o homem e o mundo como processos, isto é, um teatro eminentemente político, pode proporcionar.
Não nos deixemos iludir, entretanto: Brecht está em baixa, porque o “conjunto de convicções políticas, teses estéticas e procedimentos literários que formam a textura da arte [do autor] foi duramente afetado pela história recente”, conforme expõe Roberto Schwarz em seu lúcido ensaio sobre a atualidade do pensador e dramaturgo alemão, concluindo em seguida: “Não há como desconhecer os tempos mudados”. Mudam-se os tempos, é inegável, mas a vontade de o teatro contemporâneo se opor ao intensivo ritmo de precarização da vida a que vimos nos submetendo parece a mesma de um século atrás – daí talvez a necessidade de a comédia de teatro épico Um homem é um homem ter se convertido na ópera-samba-cabaré Gente é gente?!, em cartaz no Teatro Antunes Filho, do Sesc Vila Mariana, com texto de Claudia Barral e direção de Marco Antonio Rodrigues.
A opinião de que se trata de um Brecht descaracterizado, descosido não passa muito provavelmente de rabugice. Ora, de fato, foram tomadas algumas liberdades essenciais em relação à peça original, mas a dinâmica diacrônica do teatro vive delas. Tautologicamente falando, desde sempre, não? Talvez a maior das mudanças diga respeito ao destino do soldado Jip, obrigado a se fazer passar, no original alemão, por um deus ávido por dinheiro nas mãos do Bonzo Wang e que, na adaptação brasileira, vira o soldado Jeremias Leite, plenamente acolhido pelo terreiro de candomblé que ele e seus três companheiros invadem. Abrir mão de enfatizar o quanto as religiões também podem explorar a boa fé do povo e, em seu lugar, chamar a atenção para a ideia de que um terreiro de candomblé é um “espaço praticado na dimensão do encantamento do ser no mundo”, como afirma o escritor Luiz Antonio Simas, não soa como distorção da obra-matriz ou desrespeito a ela, sobretudo nas últimas décadas em que um país negro, pardo, quase-branco, vê surgir a intensa militância de uma fé evangélica, de tipo neopentecostal e sionista, cuja retórica bélica contra as religiões de matriz africana opõe à síntese máxima da ética cristã “Deus é amor” uma sentença que é pura barbárie e tirania: “O Deus de Israel acima de tudo”. O povo palestino que o diga. Pede-se, então, aos defensores estritos dos ideais brechtianos que renunciem às rabugens de pessimismo insinuadas sobre essa adaptação, que, por sua vez, ganha em lucidez política e tessitura poética quão mais livre se coloca em relação à obra original.
Atento ao poder expressivo da parábola explorada na peça escrita por Brecht entre 1924 e 1925 – a destituição da importância do homem pela marginalização planetária e sua despersonalização pela engrenagem anônima de um mundo despersonalizado, de acordo com bela síntese proposta por Anatol Rosenfeld –, o texto e a encenação de Gente é gente?! não descuidam também das novas plasticidades assumidas pela subjetividade contemporânea. O motorista de aplicativo acredita encarnar o ideal máximo da liberdade no espaço produtivo. Gozando da autonomia plena do direito de ir e vir, ele vai e volta diariamente ao sabor de um tipo de trabalhismo que é pura personificação da vontade excruciante do capital sobre os indivíduos. Ir e vir, aqui, deixa de ser um empenho de liberdade e se transforma em alienante vaivém. Frenético, vazio de sentido, que vitima o motorista antes de fazê-lo efetivamente ter a direção da vida em suas mãos.
Afirma o sociólogo Ricardo Antunes em O privilégio da servidão que o trabalho se tornou “mais desregulamentado, mais informalizado, mais intensificado, gerando uma dissociabilidade destrutiva” que procura esgarçar todos os laços de solidariedade e de ação coletiva, senão romper de vez com elas, individualizando as relações trabalhistas “em todos os espaços onde essa pragmática for possível”. Bem pacato, de bem com a vida, homem de bem, Gesualdo Brilhante, no curto espaço que percorre entre sua casa e o mercado, é interceptado por uma passageira, a quem não cabe jamais deixar de atender, e depois pelos soldados que precisam desmontá-lo e o remontar em novas vestes e atitudes. O caminho da precarização leva ao palácio do brutalismo. Profanando todas as proporções, é como se Gesualdo, orgulhoso de seu irrestrito senso de liberdade individual, saísse para atender a mais um cliente no dia a dia corrido de São Paulo e tivesse marchado rumo ao 8 de janeiro, quando foi invadir uns prédios públicos em Brasília em nome de sua famigerada liberdade política, de consciência e de expressão. Estranho percurso que sai de um espaço e chega a um tempo, solapado pela perda absoluta da dimensão de humanidade.
A despeito de toda a atmosfera soturna e desencantada do Brasil contemporâneo para o qual aponta, Gente é gente?! faz uso de uma fonte dramatúrgica e cênica de intensa positividade, cujas águas correm paralelas às do rio da fábula e com elas constantemente se fundem: a música composta por Zeca Baleiro (também diretor musical do espetáculo) e executada, ora em playback, ora pelo próprio elenco. Trata-se de um material espesso e contundente que, às vezes festivo como uma batucada, às vezes lamentoso como um samba-canção, pontua a ação de tempos em tempos e a comenta com aquele tipo de expressividade rítmico-melódica que só a música é capaz de exercer. O compositor maranhense transita com muito empenho entre o dramatismo da ópera, o entusiasmo do samba e a irreverência do cabaré, levando Gente é gente?! às plagas de um musical eminentemente brasileiro. Com as bençãos da música pop. E da música brega. E, um pouquinho, de Chico Buarque. E de Kurt Weill também. As quinze canções do espetáculo compõem um álbum e tanto, dentre as quais Extorquir, monetizar, Matar é trabalhoso e Quem manda aqui talvez soem, pelos títulos impagáveis, mas não só por eles, da lavra de um Lamartine Babo pós-moderno, meio dark, meio camp.
Uma empreitada assim tão cheia de possibilidades políticas e estéticas naturalmente está assentada no talento de toda a equipe de criadores. A adaptação de Cláudia Barral (que contou com o dramaturgismo de Silvia Viana) não se intimida diante do “clássico” e conversa com ele de mulher latino-americana para homem europeu; a tríade composta por cenografia (a cargo de Márcio Medina), figurinos (de Cássio Brasil) e iluminação (de Gabriele Souza) investe em uma visualidade de largo espectro sensorial e simbólico, estando a serviço da caracterização de um país que, mesmo com fôlego constante para carnavalizar tudo, tem lá seus momentos de falta de ar. Todo o elenco prima por uma presencialidade fascinante e lúdica. Na condução dos solos, destacam-se a comicidade espontânea e popular de Ailton Graça (tendo por stand in Paulo Américo), o controle sobre os efeitos do humor de Dagoberto Feliz e a intensidade tragicômica de Nábia Villela (cuja voz grave e mordaz ecoa uma Nora Ney meia-irmã de Maria Alice Vergueiro). No elenco de sustentação de todo o edifício (não somente de apoio), a dupla feminina composta por Katia Naiane e Joice Jane Teixeira empenha um vigor físico e uma expressão coreográfica muito atraentes, cabendo à primeira ainda atuar nas malhas de uma comicidade hilariante. O quarteto de soldados integrado por Fernando Nitsch, Rodrigo Scarpelli, Barroso e Caio Silviano é impagável, cada um a seu modo valorizando gestos, anedotas e intenções por meio de performances absolutamente inteligentes. Em tempos de entrega irracional, há que se saudar a inteligência ocupando seu lugar de direito no palco.
Por fim, a direção de Marco Antonio Rodrigues orquestra muitíssimo bem os elementos festivos, eufóricos, dispostos em cena, organizando-os não aos moldes de um desfile algo improvisado de um bloco de carnaval e sim ao ritmo de um cortejo, animado, naturalmente, mas em cuja liturgia é preciso prestar atenção. Cortejo este nada solene, mas tingido pela atmosfera ora trágica, ora cômica, ora dramática de nossa sociabilidade atual.
As figuras apresentadas em Gente é gente?! são presenças vivas, singulares, que saúdam o teatro épico de Bertolt Brecht e pedem passagem rumo a um país que muitos de nós, sem sombra de dúvida, sentimos necessidade de debater. A definição de Walter Benjamin que serviu de título ao presente texto diz respeito a como ele caracterizou o personagem do estivador Galy Gay, em um dos famosos estudos que fez da obra de Brecht. Contradizer é a meta. Contradizer a ordem capitalista que, ubíqua, nos tocaia e encalacra, desarmando os dispositivos de fraude com os quais ela continuamente nos seduz e surpreende.
GENTE É GENTE?!
Até 4 de maio
Quarta-feira, às 15h; Quinta a sábado, às 21h; domingos e feriados, às 18h
Teatro Antunes Filho (620 lugares) – Sesc Vila Mariana
Rua Pelotas, 141 – Vila Mariana – São Paulo (SP)
Duração: 100 minutos
Classificação indicativa: 16 anos
Ingressos: R$ 70
Welington Andrade é bacharel em Artes Cênicas pela Uni-Rio, mestre e doutor em Literatura Brasileira pela USP e professor da Faculdade Cásper Líbero.