Crédito, Jeffrey Isaac Greenberg 11+/Alamy
- Author, Wendy Awai-Dakroub
- Role, BBC Travel
O silêncio tomou conta do público do Estádio Edith Kanaka’ole na cidade de Hilo, no Havaí.
Um grupo de dançarinos de hula subiu ao palco e começou a se movimentar graciosamente em movimentos sincronizados. Eles entoavam mele (cânticos) e seu ritmo ilustrava uma cena de uma antiga lenda havaiana
A apresentação de hula era parte do Festival Monarca Alegre, realizado todos os anos. Mas não era um simples espetáculo. Era uma poderosa celebração da cultura havaiana, que, por muito tempo, foi proibida.
O Festival Monarca Alegre tem uma semana de duração. Este ano, ele comemorou sua 62ª edição, realizada entre 20 e 26 de abril.
O evento é chamado de “Olimpíada de Hula” e perpetua a sagrada prática centenária de dançar e cantar, preservando e retratando o idioma, a história, a religião e a cultura do arquipélago.
Todos os anos, milhares de havaianos viajam até a Ilha Grande para comparecer ao evento. E milhares de outros assistem pela TV às transmissões ao vivo da competição entre os 23 melhores hālau (grupos de hula) do Havaí.
Mas o festival é mais do que um simples concurso de hula. Suas apresentações de dança, exibições de arte e artesanato e a parada real pelo centro de Hilo são consideradas a maior exposição da cultura havaiana do mundo.
“É a semana do ano em que comemoramos por sermos havaianos, afirma a especialista em idioma e cultura havaiana Kū Kahakalau. “E tudo graças ao trabalho do rei Kalākaua.”

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Carinhosamente chamado de “O Monarca Alegre”, David La’amea Kalākaua (1836-1891) foi o último rei do Havaí.
Ele governou o reino de 1874 até sua morte, em 1891. Mas sua ascensão ao trono foi repleta de controvérsias.
Pouco depois da morte do rei Lunalilo (1835-1874), cuja família havia reinado desde 1795, o legislativo havaiano elegeu para o trono Kalākaua, um ali’i (chefe nobre) nativo, no lugar da viúva do antigo rei Kamehameha 4º (1855-1863). Lunalilo era solteiro e não tinha filhos.
A decisão gerou um intenso levante. Os apoiadores da rainha invadiram o tribunal de Honolulu, a capital havaiana.
Paralelamente, marinheiros britânicos e americanos estacionados no porto foram chamados para reprimir os combates. Kalākaua prestou juramento como novo imperador no dia seguinte.
Na época do reinado de Kalākaua, o patrimônio cultural havaiano enfrentava grandes ameaças.
Missionários cristãos começaram a chegar às ilhas em 1820. Eles levaram doenças que mataram havaianos nativos, converteram ilhéus que abandonaram sua religião politeísta tradicional e se infiltraram no sistema político, para reprimir as crenças e a cultural local.
Uma das medidas mais significativas foi proibir as apresentações públicas da hula, uma dança que os missionários consideravam “cânticos pagãos vis“.
Kalākaua procurou restaurar um sentido unificado de orgulho nacional entre os havaianos. Seu reinado marcou um período de renascimento cultural no arquipélago.
Ele viveu seguindo o lema Ho’oulu Lāhui (“Desenvolver a Nação”) e buscava retomar o Havaí para os havaianos.
Esta diretriz resultou no renascimento dos costumes tradicionais, como o idioma, a música, a arte e a medicina tradicional, que haviam sido reprimidos por muito tempo, durante a era dos seus predecessores, influenciados pelos missionários.
Uma das suas principais conquistas foi a preservação da hula. Kalākaua deixou uma frase que ficou famosa: “A hula é a linguagem do coração e, portanto, o batimento cardíaco do povo havaiano.”
Para muitas pessoas de todo o mundo, “hula” pode trazer imagens de pequenos bares, dançarinas de plástico agitando os quadris no painel do carro ou cenas que só acontecem em resorts no litoral.
Mas, muito antes de ser apropriada e transformada em mercadoria, a hula era uma dança sagrada para os nativos havaianos – uma prática ancestral, que servia de arquivo das nossas histórias, crenças e modo de vida.
Até a chegada do capitão James Cook (1728-1779), em 1778, não havia linguagem escrita no Havaí. Os antigos havaianos usavam a tradição oral e a hula para transmitir sua identidade e cultura entre as gerações.
Mesmo na época em que a prática era proibida, os havaianos dançavam a hula de forma clandestina. Eles continuaram a ensinar a dança proibida em segredo, nas cavernas e em regiões distantes.

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Como parte da política Ho’oulu Lāhui de Kalākaua, a hula passou por um ressurgimento.
A cerimônia de coroação do rei só ocorreria em 1883. Marcada pelo luxo, ela durou duas semanas.
Ela foi basicamente uma celebração da cultura nativa havaiana, com música tradicional, hula e lū’au – atividades que, antes, eram todas proibidas.
Três anos depois, para marcar o 50º aniversário do rei, os ho’opa’a (cantores) e ‘ōlapa (dançarinos) se apresentaram em público pela primeira vez em anos, em uma parada através do centro de Honolulu.
Atualmente, o Festival Monarca Alegre homenageia o orgulhoso senso de identidade havaiana revivido por Kalākaua.
“[Kalākaua] tinha profundo compromisso, orgulho e conhecimento da sua herança havaiana”, afirma Kahakalau. Ela destaca que o rei também foi a primeira pessoa a ter por escrito o Kumulipo – um cântico da criação que também inclui a genealogia da realeza havaiana.
Mas Kalākaua não se contentou apenas em reviver os costumes do Havaí. Ela queria divulgar a cultura do reino por todo o mundo.
Em 1881, o Monarca Alegre deu continuidade à gloriosa tradição havaiana de navegação por longas distâncias. Kalākaua passou 281 dias circum-navegando o globo – e se tornou o primeiro chefe de Estado a dar a volta ao mundo.
Durante sua viagem diplomática internacional, o rei foi recebido pelo imperador do Japão ao som de Hawai’i Pono’ī, o hino nacional havaiano, composto pelo próprio Kalākaua.
Ele também propôs políticas de imigração para os políticos chineses; visitou a Esfinge de Gizé com o vice-rei do Egito; foi abençoado, em Roma, pelo papa Leão 13 (1810-1903); tomou chá com a rainha Vitória (1819-1901), do Reino Unido; e viajou em um trem que foi atingido por um touro na Espanha.
Em Nova York, nos Estados Unidos, Kalākaua se encontrou com Thomas Edison (1847-1931) para discutir a possibilidade de levar a eletricidade para Honolulu.
O sonho do rei se tornou realidade em 1886. O palácio ‘Iolani, sua residência oficial, foi iluminado pelas luzes elétricas, cinco anos antes da Casa Branca. Hoje, o local é um museu e a única residência real existente nos Estados Unidos.

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“Ele conseguiu estabelecer relações importantes, fazer contatos e assinar tratados com diversos países [beneficiando nosso povo]”, segundo o kumu hula (mestre e professor de hula) Kenneth “Aloha” Victor. Ele também é o estilista da Kaulua’e, uma marca de estilo de vida e vestuário de fabricação havaiana.
Além de enviar representantes para a Europa e a Ásia, Kalākaua manteve consulados e legações em mais de 130 cidades espalhadas pelo mundo. Só no Reino Unido, o Havaí tinha 13 consulados.
De volta ao seu país, em uma era de aumento da alfabetização, Kalākaua se reuniu com na kahuna (sacerdotes) e na kapuna (idosos) tradicionais, para compilar muitas das lendas e cânticos antigos do Havaí, retratados através da hula e do mele, e escrevê-los em idioma havaiano.
Em 1888, ele deu continuidade a este trabalho, traduzindo as histórias para o inglês, pela primeira vez, no livro Legends and Myths of Hawaii (“Lendas e mitos do Havaí”, em tradução livre).
O rei costumava presentear dignatários estrangeiros com exemplares do livro, para que eles pudessem compreender melhor o Havaí, sua cultura e seu povo.
O legado
A missão de Kalākaua – de integrar o Havaí ao resto do mundo – também resultou na criação do programa Jovens Havaianos no Exterior.
Nele, o rei selecionava jovens do Havaí que ele percebesse que poderiam se tornar futuros líderes do reino e os enviava para estudar em países estrangeiros. Seus cursos incluíam medicina, direito, engenharia, línguas estrangeiras e artes.
Mais de 100 anos depois, o legado do programa ainda ressoa no arquipélago. A princesa Abigail Kawānanakoa (1926-2022), neta de um dos estudantes enviados pelo rei para o exterior, teve participação fundamental na restauração do palácio ‘Iolani e foi forte apoiadora dos direitos dos nativos havaianos até a sua morte.
Multifacetado em todos os sentidos da palavra, Kalākaua abraçou a modernidade, da mesma forma que valorizava a cultura havaiana.
Ele foi um inventor voraz, que elaborou projetos de navios à prova de tornados, torpedos em forma de peixe, tampas de garrafas vedadas e medidores de distâncias.
O rei chegou a ter um telefone instalado, que conectava o palácio ‘Iolani até seu barco-casa particular, a cerca de 1 km de distância. Ali, ele costumava promover lū’aus reais para autoridades e chefes de Estado estrangeiros.

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Atualmente, Kalākaua é muito mais para os havaianos do que apenas um homem do Renascimento.
“Quando Kalākaua viajava [para o exterior], ele promovia e divulgava nossa cultura para o mundo”, conta a especialista em cultura havaiana Ana Kon, da cidade de Hilo. “É por isso que, mais de um século depois, continuamos a homenagear seu legado até hoje, no Festival Monarca Alegre.”
Para as pessoas que não conseguem ingressos para as concorridas competições de hula do Festival Monarca Alegre, existem muitas outras oportunidades de participar das festividades.
O Auditório Cívico Afook-Chinen e os Butler Buildings, em Hilo, promovem uma vibrante feira de arte e artesanato. Ela apresenta as criações de mais de 150 artesãos locais e marcas de todo o Havaí.
“Nossa ‘moda aloha’ é uma celebração da hula”, afirma Victor, sobre suas roupas. Ele conta que que elas homenageiam o povo, os locais e os movimentos da cultura havaiana.
É claro que o legado de Kalākaua vive além do festival.
De muitas formas, cada passo de hula, cada lū’au que se reúne e cada frase do idioma havaiano é uma reminiscência do trabalho do último rei do Havaí para reviver nossos costumes no país e apresentá-los para o resto do mundo.
Os visitantes podem viver esta experiência pessoalmente no da ilha de O’ahu, que promove um lū’au tradicional havaiano em homenagem à rainha Lili’uokalani (1838-1917) – a irmã de Kalākaua, que o sucedeu até que homens de negócios brancos derrubassem o reino, em 1893.

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Em Maui, as experiências imersivas no Hotel Grand Wailea incluem E Ala E oli (cânticos) na praia pelas manhãs e aulas interativas de idioma, que ensinam aos hóspedes como pronunciar palavras em ʻŌlelo Hawai’i (a língua havaiana).
Resorts como o Outrigger Reef, na praia de Waikiki, vêm adotando uma prática de turismo regenerativo no seu Centro Cultural A’o. Eles permitem que seus hóspedes conheçam navegadores e construtores de canoas tradicionais do Havaí, que ensinam como usar as ferramentas havaianas. E, é claro, eles participam de aulas de hula.
“Tudo isso remete à doutrina [do rei Kalākaua]”, afirma Victor. “Que a hula é o batimento cardíaco do nosso povo havaiano.”