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sábado, maio 17, 2025

Harvard, Columbia e o imperativo da dissidência  – Revista Cult

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Nos anos 1980, numa Espanha já sem Franco, um eminente filósofo, Javier Muguerza, formulou um conceito chamado “imperativo da dissidência”. Uma filosofia fermentada por suas leituras de Kant, pelos processos históricos de um franquismo de 40 anos e pelo caráter universalista do autor em que o “não”, permitido a todos, era o eixo central. Essa negação nasce da imperiosa necessidade de recusar-se a obedecer uma norma que, embora legal, não é respeitável do ponto de vista ético. Em outras palavras, o “não” sustentado por uma ética seria superior a qualquer argumento jurídico ou político determinado por um documento assinado por uma autoridade. Em oposição ao consenso, que aquiesce e considera “correto” seguir as leis, independentemente de suas implicações, a dissensão expõe as razões do protesto contra as instâncias de poder.

Embora o filósofo tenha dedicado a sua reflexão ao individualismo ético, o direito à desobediência poderia ser aplicado a situações coletivas, especialmente quando autocracias e outras formas de governo desarrazoadas impõem decretos que ferem, de alguma forma, os direitos humanos, a moral ou liberdade dos indivíduos.

As noções de dissidência e consenso de Muguerza são nosso ponto de partida para analisar os recentes acontecimentos envolvendo o atual presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, e as prestigiadas instituições da “Ivy League”, composta por oito universidades, entre elas Harvard e Columbia, célebres por sua excelência acadêmica.

Antes de analisar o cenário atual, é importante pontuar que, na sua primeira gestão, Trump já investia contra as universidades, como afirma a artista e ativista chilena radicada em Nova York Cecilia Vicuña. Em A palavra e o fio (Iluminuras), a artista destaca que Trump e seus aliados, naquele momento, “seguiam as ordens dos Chicago Boys [jovens economistas chilenos formados nos EUA com proeminência durante a ditadura de Pinochet]” . Segundo Vicuña, um dos objetivos dos Chicago Boys era a destruição da educação pública. Essa ideia ideia viria dos anos 1949 e 1950 e foi se propagando pelas Américas. Assim, a educação foi empobrecendo, sendo eliminada, com áreas específicas recebendo ataques mais agressivos, como é o caso das humanas, num empenho quase missionário contra o pensamento crítico. A possibilidade humana de compreender, de explorar é esfacelada por uma agenda de extermínio do conhecimento “no mais profundo do ser”, como alerta Vicuña.

Neste segundo mandato, Trump foi mais radical: impôs à Universidade de Columbia um corte orçamentário de US$ 400 milhões e a suspensão de outros subsídios sob a alegação de antissemitismo. Membros da instituição haviam participado das manifestações em defesa da Palestina, pedindo ao governo estadunidense que retirasse seu apoio a Israel na guerra contra o Hamas. Na mesma toada, a Casa Branca acusou os estudantes de serem woke lefties (“esquerdistas despertos”) dispostos a “promover o terrorismo e difamar as forças armadas”.

Num primeiro momento e sem grandes questionamentos, a Universidade de Columbia sucumbiu às decisões de Donald Trump. Num ato de “consenso” racional, aceitou as regras de um governo eleito democraticamente e concordou em se ajustar às imposições. No entanto, levantamos aqui um ponto: a intervenção na academia não condiz com um Estado Democrático de Direito. Umberto Eco, em sua palestra “Fascismo Eterno” – proferida em Columbia, ironicamente, em 25 de abril de 1995 –, declarou que a suspeita em relação ao mundo intelectual sempre foi um sintoma de “Ur-Fascismo”. Para exemplificar, Eco recorda o modo como Goebbels, o infame Ministro de Propaganda na Alemanha nazista, chamava artistas e pensadores: “porcos intelectuais”, “cabeças-ocas” e “esnobes radicais”. O segundo sintoma de Ur-Fascismo, para Eco, residiria na impossibilidade de desacordo com líderes políticos, visto como “traição antipatriótica”.

Além do conflito com a própria essência acadêmica de “livre pensamento” e compromisso social, Columbia ainda se via no impasse financeiro para a manutenção de departamentos e centros de pesquisa repletos de estudantes estrangeiros. O fato é que não é possível negociar o fluxo do conhecimento, mas como manter a estrutura dessas instituições e permitir que as pesquisas prossigam sem dinheiro em caixa? Como garantir o orçamento necessário das universidades sem colocar em risco sua autonomia? Cabe acrescentar que cortes orçamentários não impactam apenas a comunidade acadêmica. Os custos de desestruturar uma universidade repercutem em toda a sociedade, já que muitas instituições de ensino superior abrigam clusters de pesquisa de onde surgem descobertas que beneficiam milhões de pessoas.

O alvo seguinte de Trump foi Harvard. Contudo, diferentemente de  Columbia, Harvard rejeitou as exigências do governo e preferiu perder mais de 2 bilhões de dólares do que a sua reputação. Aqui há um ponto interessante: talvez Harvard tenha feito ainda mais do que defender os pilares da academia e suas contribuições para a sociedade: trouxe a dissidência, algo “novo” para os estadunidenses destas gerações, que viam o desacordo desde um panorama longínquo, em figuras de outros países como Alexei Navalny, Mandela ou Gandhi, como explicam Julia Angwin e Ami Fields-Meyer para o The New Yorker.

Dissentir é (ou deveria ser) um ato imanente à academia. Além de ser um sinal de modernidade e de pluralidade de perspectivas, a dissidência é um instrumento da ciência e é também imanente à natureza. Os processos evolutivos não existiriam sem a entropia, a mutação e a impermanência, elementos essenciais do ciclo que mantém a vida. Nesse sentido, o conservadorismo e a oposição ao progresso são, dentro de uma concepção biológica, sociológica e política, antinaturais.

A postura firme de Harvard inspirou Columbia, que voltou atrás e agora busca negociar e dialogar com o governo. Ainda tenta através do “consenso”, isto é, do contrato social, do comunitarismo, do acato a lei – legal, mas não ética – chegar a um acordo. Mas o consenso, neste caso, não pode ser visto como o respeito a um decreto, mas como um sinal de medo, evidência de que estamos reféns do Ur-Fascismo, como afirmou Eco.

Esse aspecto torna-se ainda mais evidente no imbróglio entre o comandante-chefe estadunidense e essas grandes universidades. Trump parece ter um objetivo maior, o de criar instabilidade e medo, que são capazes de paralisar e impedir a livre reflexão. A escolha dos alvos também não é à toa, o que está acontecendo com Harvard e Columbia serviria de exemplo para outras instituições de ensino sem o prestígio delas, portanto, muito mais vulneráveis.

O cenário estadunidense e o imperativo da dissidência de Muguerza podem trazer reflexões para outros países. Inclusive o nosso.

Ainda que os sistemas tenham diferenças importantes, o que acontece nos Estados Unidos ressoa no Brasil, como já havia alertado Vicuña em 2018. Por aqui, as universidades públicas, que sempre foram referência na área de ensino e pesquisa, passaram a ser mal vistas depois que o regime de cotas permitiu que estudantes de outras classes sociais e de outras etnias entrassem em um campo até então exclusivo da elite branca: a formação acadêmica especializada. A proliferação de universidades privadas e cursos de formação no ambiente corporativo permitiram que estudantes mais abastados pudessem se formar longe da miscigenação racial e econômica das instituições públicas, e esse parece ser um critério de escolha importante no Brasil. Vale destacar ainda que as universidades privadas são um negócio rentável para seus donos e sócios. Portanto, como negócio, o lucro financeiro é importante, talvez mais do que a pesquisa, o ensino e a extensão, como comprovam as muitas avaliações do Ministério da Educação e Cultura (MEC). Claro que não fazemos uma generalização. Há grandes instituições de ensino privadas em nosso país, entre elas, as tradicionais Pontifícias Universidades Católicas (PUC), a Fundação Getúlio Vargas (FGV), entre muitas outras, que também são destacadas pelo MEC.

De todo modo, cortar orçamento de instituições de ensino é uma forma de fazê-las morrer à míngua, ou seja, de permitir que tenham uma morte lenta, sem que seja necessária nenhuma atitude radical por parte do governo.

Nos Estados Unidos, Harvard, depois de não ceder aos caprichos do governo Trump, ganhou apoio da sociedade e de ex-alunos, que passaram a fazer doações para a instituição. No Brasil, as universidades não ganham doações desinteressadas; muitas empresas, principalmente – ou sobretudo – na área tecnológica, investem algum dinheiro em pesquisas que elas determinam previamente que devam ser feitas. A crise orçamentária das universidades públicas é tão grande que Roberto Medronho, reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFSC), decidiu pedir ajuda ao “setor produtivo e à sociedade em geral” para manter a instituição funcionando. O Estado vai delegando assim à iniciativa privada um setor que sempre (mesmo na época da ditadura militar) era subsidiado por ele. O dinheiro “economizado” está sendo investido onde?

E é exatamente nesse ponto que a dissidência muguerziana se faz urgente. Não há chantageador sem um chantageado que aceite a pressão ou o “consenso”. Acrescente-se a isso o fato de que muitas universidades mundo afora também se descuidaram em alguns aspectos, abrindo flancos para a fragilização do sistema escolar e sua destruição paulatina sem que haja um mentor explícito.

O primeiro deles foi seu encastelamento. A falta de diálogo direto com a sociedade permitiu que manobras políticas e jogos de poder pintassem o quadro do meio acadêmico como produtor de “marxistas culturais”, consumidores de drogas recreativas e outras fake news já conhecidas.

O segundo ponto fraco está na política do publish or perish (“publique ou morra”), mas sem uma real inovação, especialmente nos departamentos de ciências humanas. Artigos “reciclados” em série, repetição de teorias que já foram rebatidas há décadas e o debate de assuntos que não estabelecem pontes concretas com a realidade vigente são os produtos mais nocivos que as próprias instituições podem gerar para si e sua comunidade.

Por fim, o efeito Kodak. A famosa empresa de tecnologias de imagem era líder nas câmeras analógicas, mas não se preparou para o mundo digital de forma adequada. Como resultado, acabou perdendo a liderança para as concorrentes mais ágeis. No mundo acadêmico, o fenômeno Kodak é visível: a repetição e o receio de sair do “consenso” se transformaram em armadilhas perigosas, das quais é cada vez mais complicado sair. Nas universidades, não basta sair do “analógico para o digital”, não é um passe de mágica, é preciso seguir refletindo sobre essas e outras mudanças.

O fato é que as universidades se tornaram o lado mais fraco nesta nova configuração mundial regida tão somente pelo capital financeiro e não mais pelo intelectual. O resultado do recente projeto de Jeff Bezos, que levou cinco celebridades para dar um passeio no “espaço”, é a prova disso: não é preciso formação nem de anos de pesquisa e treinamento para dar uma voltinha na nave espacial de um dos homens mais ricos do mundo. Quando essas mulheres retornaram, elas foram intituladas astronautas por alguns. As celebridades não questionaram o título. Vende-se assim a ideia de que formação não é mais necessária e de que se pode ser o que bem entender, desde que se tenha dinheiro para pagar.

Nunca houve tantos influencers e mentores com legiões de seguidores. Todos sabem tudo e podem falar sobre tudo, convence aquele que apresenta a melhor performance, já que o público parece não estar mais tão interessado em ir a fundo em assunto nenhum. A quantidade de seguidores é um novo critério de avaliação.

Isso não significa que a academia deva transformar o professor em tiktoker ou num Senhor Castelo, personagem do conto O homem que sabia javanês, de Lima Barreto, que dizia falar uma língua e conhecer uma cultura que ele desconhecia por completo. No meio desse campo minado, sem tempo para reflexão e em busca de um lugar ao sol, há professores que acabam se dizendo especialistas em temas da moda os quais podem lhe render (essa é a palavra mágica) bolsas de pesquisa, convites e viagens. Isso é ceder ao “consenso”. É necessário dissentir – não se sujeitar ao que pode ser legal, mas não ético – para revitalizar a academia, eliminando a tríade que fragiliza o sistema. Se não houver o imperativo da dissidência, quem irá para o espaço é a educação.

 

Dirce Waltrick do Amarante é professora da UFSC, tradutora, escritora e ensaísta

Fedra Rodríguez é especialista em comunicação, tradutora, escritora e palestrante



[Fonte Original]

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