Crédito, Instagram/@astrosarasabry
Crescendo no Egito, Sara Sabry, 29 — a primeira mulher árabe e primeira africana a ir ao espaço — não tinha um interesse especial pela vida fora da Terra.
“Quando me perguntavam o que eu queria ser, eu nunca conseguia me imaginar em nada ao meu redor”, contou à BBC News Brasil durante entrevista no Web Summit Rio, um evento de inovação e tecnologia que reúne líderes do setor, empreendedores e especialistas de diversas partes do mundo.
Parte disso, analisa hoje Sabry, foi por falta de referências com as quais pudesse se identificar.
“Quando o assunto eram astronautas, a imagem que vinha era a de um homem branco da NASA. E isso criava uma desconexão enorme. Eu não conseguia me enxergar naquela figura, nossas trajetórias são completamente diferentes. A ideia de que isso era possível nem passava pela minha cabeça”, afirma.
O interesse pelo espaço veio depois que ela, formada em engenharia mecânica e especialista em engenharia biomédica, só despertou o interesse pelo espaço depois de concluir o mestrado e começar a atuar em uma startup de tecnologia.
“Passei por uma crise existencial, cheia de perguntas sobre o mundo, sobre nós, para onde vamos e de onde viemos. Comecei a estudar astrofísica, e quanto mais eu aprendia, mais perguntas surgiam, e as teorias quase impossíveis de provar, me deixavam inquieta.”
“Como ainda não compreendemos o básico da existência? Foi aí que comecei a buscar uma resposta prática, e para mim ela estava na ideia de tornar a humanidade multiplanetária. Sou muito movida por soluções. Quando algo me intriga, preciso encontrar um caminho. Pensei: o que eu, Sara Sabry, posso fazer para contribuir com isso?”
Sabry então se aprofundou em pesquisas avançadas sobre robótica e voos espaciais tripulados, e atualmente é doutoranda em engenharia aeroespacial.
Mas ter a experiência de sair da Terra — no caso dela, cruzar a Linha de Kármán, a cerca de 100 km de altitude, considerada o começo oficial do espaço — exigia muito mais do que preparo técnico.
Quem pode se tornar astronauta?
Para se tornar uma astronauta profissional — ou seja, integrar o corpo permanente de uma agência espacial — é preciso passar por um processo seletivo rigoroso, que envolve formações específicas (como engenharia, medicina ou ciências físicas), domínio de idiomas, excelente condição física e anos de atuação em áreas de alta qualificação.
Sabry conta que, mesmo se preparando extensamente, uma barreira muito simples a colocava automaticamente fora da corrida: sua nacionalidade.
“O processo é extremamente disputado — mas existe um caminho. Há uma espécie de checklist, e se você conseguir marcar todos os itens, aumenta suas chances. Para mim, esse caminho simplesmente não existia. Não havia uma trilha a seguir.”
“Nunca poderei me inscrever na NASA a menos que eu obtenha um passaporte americano. Isso é frustrante. Eu via vagas de emprego em que eu preenchia todos os requisitos, mas aí vinha uma frase dizendo que era só para cidadãos dos EUA ou outro país específico. Uma única frase me tirava qualquer chance de competir.”

Crédito, Blue Origin
A maioria dos programas espaciais de seleção de astronautas é restrita a cidadãos dos países que mantêm suas próprias agências ou participam de acordos bilaterais.
Assim como a NASA, a ESA (Agência Espacial Europeia) só aceita candidatos dos Estados-membros.
A mesma regra se aplica a outras grandes agências, como a chinesa CNSA e a japonesa JAXA, que também limitam a participação a seus nacionais.
Países sem presença consolidada no setor aeroespacial, como o Egito, não oferecem programas formais de seleção, o que torna o acesso a essas oportunidades praticamente impossível.
Para Sabry, a falta de opções para países como o Egito reflete o padrão global do setor espacial, “que é altamente político, com o foco em tecnologias militares e em objetivos estratégicos nacionais.”
“O sistema exclui pessoas. É uma questão de interesses nacionais. Muitas tecnologias espaciais estão na lista de uso militar dos EUA desde a Guerra Fria, como o ITAR. Outros países fazem o mesmo, para proteger seus interesses, porque a tecnologia espacial pode ter uso duplo — tanto civil quanto militar.”
“Na Agência Espacial Europeia, por exemplo, a quantidade que cada país investe influencia na escolha dos astronautas. Há muitas agências espaciais — só na África existem 21 — mas elas não têm tanto investimento, então o foco é no desenvolvimento de satélites, não em enviar humanos ao espaço.”
A oportunidade de Sara Sabry sair da Terra surgiu através do Space in Humanity Citizen Astronaut Program, uma iniciativa não governamental que abre portas para pessoas de diferentes nacionalidades participarem de missões espaciais, algo raro em programas tradicionais.
Em 2022, ela foi selecionada entre mais de 4 mil candidatos de todo o mundo para integrar um dos dois únicos programas de astronautas civis, que não são ligados a governos.

Crédito, Ramsey Cardy/Web Summit via Sportsfile
O voo que levou Sara Sabry ao espaço foi a missão NS-22, realizada em parceria com a Blue Origin, empresa do bilionário Jeff Bezos, criador e maior acionista da Amazon.
A decolagem aconteceu no dia 4 de agosto de 2022, e o voo teve duração de cerca de 10 minutos e 20 segundos. Foi uma missão suborbital — ou seja, a nave ultrapassou a linha de Kármán (limite convencional do espaço, a 100 km da Terra), mas sem entrar em órbita, retornando pouco depois à superfície.
Além de Sabry, participaram da missão Mário Ferreira, primeiro português a ir ao espaço; Vanessa O’Brien, exploradora britânico-americana que se tornou a primeira mulher a completar a chamada Trifeta Extrema dos Exploradores — chegar ao ponto mais profundo do oceano (Challenger Deep), escalar o Monte Everest e voar ao espaço; e Coby Cotton, um dos fundadores do canal americano de YouTube Dude Perfect, cuja passagem foi patrocinada pela MoonDAO, uma organização autônoma descentralizada que busca democratizar o acesso ao espaço.
A missão é semelhante à que levou recentemente a cantora Katy Perry ao espaço, o que levantou debates nas redes sociais sobre o papel de celebridades em voos espaciais. A reportagem questionou Sabry se ela via nisso um benefício — por atrair atenção, interesse público e possíveis investimentos — ou uma forma de tirar espaço de quem trabalha com pesquisa.
Sabry preferiu não comentar diretamente o tema, mas disse condenar os ataques recebidos por Katy Perry, referindo-se aos inúmeros comentários negativos direcionados à cantora nas redes sociais.
‘Todos os seres humanos deveriam experimentar isso’
Sabry diz que foi ao espaço com o objetivo de analisar um fenômeno chamado “efeito orbital”, que é o que acontece com o cérebro quando você vê a Terra do espaço.
“Minha primeira realização foi que não existe uma separação real entre a Terra e o espaço. Quando você está dentro do foguete e ele começa a subir em alta velocidade, o céu vai mudando de azul claro para azul escuro, depois roxo e, finalmente, preto. Não há uma sensação física que diga que você está no espaço. Você percebe que não há separação — é tão perto. “
“Foi um choque perceber que esse não é o lugar distante que olhamos do céu achando ser outro mundo. Na verdade, ele está conectado com a Terra. Isso mudou muita coisa pra mim — só essa realização já me transformou.”
Para a astronauta, a imagem mais marcante foi ver uma linha azul muito fina, incrivelmente brilhante, ao lado da escuridão mais intensa que já havia experimentado.
“Essa linha azul é a nossa atmosfera — a única coisa que nos protege. Isso fica com você pra sempre. Acho que todos os seres humanos deveriam experimentar isso. Evoluímos por milhares de anos, e agora me parece óbvio que o próximo passo é enxergar a Terra do espaço.”
“Não faz o menor sentido que algo como a cor da sua pele, o país onde você nasceu, seu passaporte ou seus recursos financeiros sejam os únicos fatores que determinam se você pode ou não ir ao espaço. Isso é, pra mim, a coisa mais injusta do mundo. É absurdo.”
Sabry defende que qualquer pessoa que quiser deveria ter ao menos um caminho com chances claras para ter a experiência de sair da Terra. Quando questionada se achava que isso poderia ser sustentável, ela respondeu positivamente.
“Já temos a tecnologia. Pense nisso: o avião que me trouxe aqui para o Rio de Janeiro, com 11 horas de voo, emitiu toneladas de carbono. Já o foguete que mudou a minha vida não emitiu carbono. É um voo suborbital, ou seja, atinge altitudes de cerca de 106 ou 107 km. Isso já é suficiente para ver a Terra do espaço e até para realizar pesquisas.”
O foguete usado no voo funciona a partir de uma reação entre oxigênio líquido e hidrogênio, que libera uma grande quantidade de calor — o suficiente para impulsionar a nave até o espaço. Essa reação é considerada limpa, já que seu único subproduto é vapor d’água.
No entanto, como explica a própria astronauta, ainda é preciso estudar melhor os impactos desse vapor em altitudes tão elevadas, onde a atmosfera é muito fina. Nessas camadas altas, o ar é rarefeito e não consegue trazer o vapor de volta com facilidade, fazendo com que ele permaneça lá por mais tempo. Os efeitos disso no clima e no ambiente ainda não são totalmente conhecidos.
A reportagem também perguntou a Sabry se, diante dos inúmeros desafios sociais enfrentados hoje no mundo, como desigualdade, pobreza e crise climática, fazia sentido investir milhões na democratização do acesso ao espaço.
Ela respondeu que acredita que o problema não seja dinheiro ou tecnologia, mas sim a forma como os sistemas estão organizados. “Mesmo que você interrompesse completamente os investimentos em exploração espacial, isso não resolveria nada, a menos que enfrentássemos de fato as causas estruturais dessas desigualdades, como a corrupção e a má gestão.”
Sabry defende que a pesquisa espacial é uma aliada na solução de problemas aqui na Terra.
“Tecnologias desenvolvidas para missões já geraram avanços em saúde, agricultura e monitoramento ambiental. Um exemplo é o estudo da perda óssea em astronautas, que ajudou no tratamento da osteoporose. Também vieram do espaço melhorias em transplantes cardíacos, no entendimento do sistema vestibular e ocular, além de inovações como a espuma de memória.”

Crédito, Blue Origin
Hoje, Sara Sabry atua na D-Space Initiative, organização sem fins lucrativos que ela fundou com a proposta de ampliar o acesso à pesquisa espacial. Segundo Sabry, o projeto já treinou mais de 300 pessoas de mais de 60 países, oferecendo capacitação e materiais educacionais.
Ela também criou a Strive, uma empresa voltada a testar tecnologias espaciais de próxima geração em ambientes extremos da Terra — como regiões polares e áreas submersas — com o objetivo de desenvolver soluções úteis tanto para futuras missões fora do planeta quanto para desafios ambientais atuais.
“Queremos garantir que o futuro da exploração espacial seja inclusivo, sustentável e acessível — não apenas para poucos privilegiados, mas para todos no mundo.”