15.9 C
Brasília
sábado, maio 17, 2025

Cerimônia politizada dá início ao Festival de Cannes e Quinzena dos Cineastas exibe quatro curtas brasileiros – Revista Cult

- Advertisement -spot_imgspot_img
- Advertisement -spot_imgspot_img

 

O Festival de Cannes, a mais prestigiada mostra de cinema do mundo, deu largada a sua 78ª edição ontem (dia 13) com uma cerimônia de abertura altamente politizada. Em geral marcada por tentativas falhas de divertir a plateia – e por uma cafonice incondizente com a qualidade dos filmes exibidos no evento –, a festa inauguradora do Festival deste ano foi direta e impactante. Bem mais do que o longa de abertura, aliás.

Uma das homenageadas da noite foi a presidente do júri, Juliette Binoche, que condenou os conflitos armados no mundo de hoje e lamentou o falecimento de Fatma Hassona, fotojornalista palestina que morreu no mês passado durante um ataque israelense em Gaza – ela é o tema do documentário Put your soul on your hand and walk, que será exibido em uma mostra paralela ao festival. O vencedor da Palma de Ouro honorária deste ano, Robert De Niro, recebeu o prêmio das mãos de Leonardo DiCaprio com um semblante emocionado, mas sobretudo com palavras bastante duras à administração Trump. “A arte faz medo a autocratas e fascistas”, ele disse, em seguida criticando enfaticamente a decisão do presidente dos EUA de cobrar taxas proibitivas a filmes estrangeiros exibidos em seu país.

Logo em seguida, foi exibido o filme de abertura, Partir un jour, da francesa Amélie Bonnin, uma história com ares de comédia romântica e drama familiar, em que a protagonista de vez em quando se lança em inusitados números musicais. Exibido fora de competição, o longa mostra a agridoce vida de uma chef de cozinha renomada que volta ao lugar interiorano onde nasceu depois que seu pai sofre um infarto. Não é um filme de todo ruim, mas não é em nada memorável. Configura mais uma inexplicável escolha da curadoria de Thierry Frémaux, que por algum motivo obscuro tem optado nos últimos anos por filmes sem o devido vigor para abrir um evento de tamanha estatura.

Mais sorte teve a Quinzena dos Cineastas, evento paralelo ao Festival, que foi inaugurado com Enzo, do francês Robin Campillo (de “120 Batimentos por Minuto”). É a história de um rapaz de 16 anos de família rica que refuta parte de seus privilégios burgueses e escolhe como trabalho ser pedreiro em um canteiro de obras. A família toma isso como mera fase de indefinição – e de fato é –, então não leva tão a sério a escolha do garoto. Embora se preocupe com quanto tempo isso possa durar.

Enzo não sabe o que quer na vida, mas a psicologia do personagem é importante só até certo ponto. O filme é antes uma análise da adolescência enquanto período de incertezas de natureza existencial, abrangendo também dúvidas sexuais e mesmo sobre seu posicionamento social no mundo. No caso, o protagonista descobre sentir atração por um colega de trabalho ucraniano, que se recusa a voltar a seu país para lutar na guerra contra a Rússia. Em um misto de desejo sensual com tomada de consciência política, o rapaz começa a se interessar pela guerra da Ucrânia, que passa a fazer parte de seu imaginário inclusive fetichista – ele passa a desenhar corpos masculinos segurando armas de guerra, em um reflexo de seu recém-nascido interesse geopolítico misturado a uma admiração estética pelo lado viril de um conflito bélico.

Campillo demonstra uma admirável habilidade em articular em um só personagem uma série de inquietudes muito próprias da adolescência, mas que se espraia a qualquer pessoa minimamente pensante no mundo moderno. O filme é cheio de minúcias, em tudo o que cerca o personagem – é curioso perceber, por exemplo, o quanto sua opção por abrir seu olhar para o mundo fora de sua bolha burguesa é incômoda para o seu pai esquerdista, que tem jogada em sua cara sua própria capitulação diante de um mundo liberal que fomenta o individualismo. O longa foi concebido por Laurent Cantet, que morreu antes de começar a filmar, fazendo com que seu corroteirista, Campillo, assumisse o projeto. O que ele fez com brio: o longa poderia facilmente estar na disputa pela Palma de Ouro, na mostra principal.

O único filme exibido até o momento na disputa pelo prêmio máximo veio da Alemanha. Sound of falling, da cineasta Mascha Schilinski, é uma obra austera, mostrando ao longo de um século várias gerações de uma mesma família em seu convívio em uma mesma casa, em um vilarejo alemão. O filme é de um rigor visual extremo, com um tino para a composição de imagens e para a aplicação de sons bastante apurado; é um longa quase hipnótico em seu poder imagético.

Mas a cineasta não facilita a vida do espectador: faz idas e vindas temporais, e por muito tempo o público não consegue compreender qual a relação entre as personagens e sequer qual o interesse da diretora em concatenar essas histórias tão diferentes em uma mesma narrativa. O longa sustenta a atenção por esse senso de mistério, mas a partir do momento em que o filme se torna mais decifrável em suas intenções de unir essas gerações a partir da experiência feminina – pelo pensamento de garotas ou adolescentes de cada época –, ele também perde grande parte do seu interesse. Torna-se redundante, e apesar do poder estético, as imagens levam o espectador à exaustão. Nota-se, no entanto, que Schilinski, é uma voz bastante autêntica.

Vale mencionar, também, um momento de prestígio ao nosso cinema neste começo de Festival. A Quinzena exibiu quatro curtas codirigidos por brasileiros, no projeto Factory des Cinéastes. Sob supervisão de Karim Aïnouz, um grupo de novos diretores (entre eles, quatro brasileiros) conceberam e filmaram curtas que servirão de material-base para quatro longas-metragens, já com garantia de produção.

O primeiro a ser exibido, Ponto cego, de Luciana Vieira e Marcel Beltrán, mostra as dificuldades pelas quais um grupo de mulheres passa em sua rotina de trabalho no porto de Fortaleza. Precisam enfrentar olhares maliciosos, falas grosseiras e mesmo abuso sexual por parte de colegas homens. O segundo curta, A vaqueira, a dançarina e o porco, de Stella Carneiro e Ary Zara, é uma trama delirante em que duas mulheres se apaixonam, mas precisam enfrentar a violência dos homens que as rodeiam. Nesta espécie de western spaghetti urbano e lésbico, os cineastas apostam em um estilo exagerado, com cores berrantes e violência estilizada. São os dois melhores curtas e também os que mais aparentam ter chances de verdadeiramente gerar longas promissores.

O terceiro curta, Como ler o vento, de Bernardo Abinader e Sharon Hakim, fala de uma curandeira que tenta passar seus conhecimentos a uma discípula antes de sua morte, que não deve tardar. E o quarto é A fera do mangue, de Wara e Sivan Noam Shimon, que se passa em um tempo histórico incerto, em que uma mulher tenta se vingar de uma figura masculina opressora, nem que para isso precise mutilar seu próprio corpo. São dois filmes com elementos de cinema fantástico e que falam de forças esotéricas, mas cujas histórias parecem se bastar já no próprio curta – é difícil imaginar como as duas tramas poderiam sobreviver em uma metragem mais longa.

De qualquer forma, todos os quatro curtas, distintos entre si como são, inserem a questão feminina no holofote, sempre em enfoques bastante pessoais. Mostram o quanto os jovens cineastas do nosso país se preocupam com temas relativos a gênero e à força da mulher, o que não deixa de ser o reflexo de uma sociedade que ainda tem muitas contas a acertar com o machismo sob o qual foi estruturada.

 



[Fonte Original]

- Advertisement -spot_imgspot_img

Destaques

- Advertisement -spot_img

Últimas Notícias

- Advertisement -spot_img