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domingo, maio 18, 2025

Tarifas são ‘analfabetismo econômico’ e Trump faz ‘one-man show’ com guerra comercial, diz Jeffrey Sachs

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Sachs, que esteve no Rio esta semana para uma palestra na PUC-Rio, ressalta que as tarifas aplicadas a outros países pelos EUA desde o início do mandato de Trump não são sequer iniciativas do governo, mas apenas do presidente, numa ‘política de one-man show‘. Ele acredita que a trégua de 90 dias anunciada recentemente com a China se tornará perpétua, porque Trump confia na memória curta do povo americano.

E chama a atenção para a combinação perversa dos interesses de bilionários da tecnologia com a ideologia libertária nos EUA, em meio uma crescente desigualdade de renda no país. Ele afirma que o combate à pobreza e à concentração de riqueza não depende apenas de políticas públicas adequadas, mas é também uma questão de visão ideológica e de ética.

O tema da sua palestra aqui (na PUC-Rio) foi desenvolvimento sustentável num mundo multipolar. Os líderes globais já perceberam a importância do meio ambiente para o crescimento econômico? Como sensibilizá-los?

As atenções do mundo estão voltadas para as crises entre as grandes potências, as guerras, os conflitos, as corridas armamentistas. E, embora vivamos em um mundo multipolar, ainda não temos uma governança adequada.

Mesmo no meu país, os Estados Unidos, a classe política ainda não assimilou os limites do poder americano e não percebeu que os EUA, sendo apenas uma entre várias potências, precisa adotar uma abordagem cooperativa.

É por isso que o presidente (Donald) Trump retirou os EUA do Acordo de Paris, saiu da OMS (Organização Mundial da Saúde), ameaça cortes importantes no orçamento da ONU. Essa é uma abordagem equivocada. Recentemente, vimos a China tentando se apresentar como uma potência respeitosa na ordem multilateral. E, também, como apoiadora do desenvolvimento sustentável.

A China pode se apresentar como um contraponto aos EUA na área ambiental?

Não acho que qualquer país isolado, mesmo um tão grande e economicamente dinâmico como a China, possa liderar o mundo. Mas a China é extremamente importante. Quando diz que defende o multilateralismo, não é apenas um slogan. Entende que seu próprio sucesso depende da paz global, de um sistema comercial ordenado, de evitar que os EUA e alguns de seus aliados se unam contra ela.

Eu não acho que a China esteja apenas fazendo relações públicas. Ela realmente apoia o sistema de direito internacional, a Carta da ONU, a Organização Mundial do Comércio e outros tratados internacionais.

E qual é o papel do Brasil na agenda ambiental, ainda mais como anfitrião da COP30 este ano?

O Brasil tem um papel único nesse novo sistema multipolar. Primeiro, Brasil e México são as duas maiores economias da região (América Latina). É também o lar da maior biodiversidade do planeta. Mas também tem divisões internas e nem mesmo a proteção da própria biodiversidade é amplamente aceita dentro do país, por causa de grupos econômicos ou grupos políticos específicos.

O fato de o Brasil, num período de 12 meses, ter sido líder do G20 (na presidência rotativa), presidir o Brics (em 2025) e ser anfitrião da COP30, é ao mesmo tempo notável e um sinal do papel único que ele exerce no cenário global.

O contexto da COP30 é o afastamento dos EUA do processo climático global. Mas, por isso mesmo, a COP30 é a primeira oportunidade para o restante do mundo dizer: “Lamentamos sua saída temporária. Isso vai custar caro, pois vocês vão ficar cada vez mais para trás, mas nós não vamos desacelerar por causa do erro de vocês.”

Imagem aérea da floresta amazônica: COP30 será oportunidade para outros países mostrarem aos EUA que não vão recuar na agenda climática, diz Sachs — Foto: Mauro Pimentel/AFP

Mas os EUA são um dos principais emissores do planeta. É possível avançar sem eles?

São o segundo em volume total. Todos os anos o público vai exigir ações de seus governos para interromper o que está se tornando inviável, extremamente perigoso, com secas ou ondas de calor sem precedentes históricos. Não tenho dúvidas de que teremos uma política voltada para a ação climática e a descarbonização. Mas a política costuma ficar 20 anos atrás da realidade.

Aqueles que agirem antes (na questão das mudanças climáticas) terão uma grande vantagem, vão ter uma base industrial adequada. Estarão mais protegidos do que os que esperarem ou forem negacionistas.

— Jeffrey Sachs

Aqueles que agirem antes terão uma grande vantagem, vão ter uma base industrial adequada. Estarão mais protegidos do que os que esperarem ou forem negacionistas.

Os que agirem antes serão os líderes industriais e exportarão as soluções para os demais. Hoje, a China está levando essa agenda extremamente a sério, por isso se tornou o principal fornecedor global de veículos elétricos, de energia solar, de turbinas eólicas.

Está desempenhando um papel de liderança em todas as tecnologias verdes: em hidrogênio, transporte marítimo de emissão zero, trens elétricos de alta velocidade. E os EUA, com seu negacionismo, estão ficando para trás.

Então, eu recomendaria a qualquer governo: esteja à frente da curva. Só para mencionar um exemplo óbvio, o Brasil é o principal fornecedor mundial de biocombustíveis e será o principal fornecedor mundial de combustível de aviação com emissão zero no futuro. É um grande negócio para o Brasil.

As mudanças climáticas têm profundos efeitos sobre a pobreza. O senhor ajudou a redigir os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio. Mas, desde então, a desigualdade de renda no mundo cresceu muito. Como avançar mais?

A pobreza extrema está diminuindo acentuadamente no mundo. Eu disse em 2005 que a pobreza extrema poderia ser eliminada até 2025. A China conseguiu. Grande parte dos países pobres não conseguiu, em parte porque não houve um esforço global organizado. Ainda podemos fazer isso, se essa for a escolha. Nem é necessário heroísmo para acabar com a pobreza extrema em um mundo tão rico como o nosso.

Já quando se trata de desigualdade, é outra questão. Pode-se ter uma sociedade desigual onde não há pobreza extrema, mas há enormes lacunas entre o topo e a base da distribuição de renda e riqueza. Os EUA são um exemplo disso. Temos pobreza, mas é uma pobreza relativa.

A sociedade americana é muito dura, muito injusta, frequentemente ainda marcada pelo racismo e por outras barreiras. E isso gera uma grande desigualdade. Basicamente, a medida mais importante para lidar com a desigualdade é a educação de qualidade. O segundo ponto é a provisão adequada de infraestrutura, água, saneamento, energia, habitação social, nutrição.

O terceiro fator é ideológico. Existe uma ideia, geralmente promovida por pessoas ricas e poderosas, de que o máximo que o governo deve fazer é não se meter na vida dos outros, manter os impostos baixos e, se alguém ainda for pobre, a culpa é dele mesmo. Essa é uma ideologia muito forte nos EUA. E tem muitos seguidores no Brasil.

Nos EUA, chamamos isso de libertarianismo. É uma abordagem extremamente falha para a vida em sociedade, que se baseia num modelo econômico falso. É uma ideia cruel e geralmente serve como manto para que os ricos e poderosos evitem suas responsabilidades morais com o restante da sociedade.

Mas é uma corrente política muito poderosa, porque muita gente rica gosta da ideia de que não tem nenhuma responsabilidade. Mas precisamos de uma orientação ética adequada. Em um exemplo famoso do ensino social da Igreja Católica, o bispo Ambrósio de Milão, por volta de 380 d.C., disse: “Quando um rico dá ao pobre, ele não está dando algo ao pobre, está apenas devolvendo o que pertence ao pobre”, porque é um ensinamento básico da Igreja que todos devem ter o suficiente, já que a terra é para todos. Isso é o oposto do libertarianismo.

No libertarianismo, se o rico dá ao pobre, está sendo explorado pelo pobre. Muitos ricos nos EUA, e alguns no Brasil, pensam assim. É a filosofia egoísta de pessoas ricas.

— Jeffrey Sachs

No libertarianismo, se o rico dá ao pobre, o rico está sendo explorado pelo pobre. Muitos ricos nos EUA (e alguns no Brasil) pensam assim, e essa é uma visão errada de vida. É uma filosofia egoísta de pessoas ricas. Tivemos até uma romancista horrível chamada Ayn Rand, que escreveu livros que fizeram sucesso nos EUA e pregavam que não se deve ajudar os pobres, que quem ajuda está dando algo a alguém indigno, que ela chamava de taker.

Segundo ela, o mundo é feito de makers (quem faz) e takers (quem toma). O governo tem um papel central na redução das desigualdades, mas nossas ideias também têm um papel muito importante. Precisamos de uma orientação ética adequada.

Bilionários do setor de tecnologia, como Mark Zuckerberg, Jeff Bezos e Elon Musk, acompanham a posse de Donald Trump, no Capitólio: aproximação do Vale do Silício com ideologia libertária é ruim, diz Sachs: "Eles combinam riqueza com falta de empatia e de responsabilidade social"" — Foto: Julia Demaree Nikhinson / POOL / AFP
Bilionários do setor de tecnologia, como Mark Zuckerberg, Jeff Bezos e Elon Musk, acompanham a posse de Donald Trump, no Capitólio: aproximação do Vale do Silício com ideologia libertária é ruim, diz Sachs: “Eles combinam riqueza com falta de empatia e de responsabilidade social”” — Foto: Julia Demaree Nikhinson / POOL / AFP

Temos visto um aumento da concentração de renda com o surgimento de novas tecnologias, como a inteligência artificial (IA). E muitos desses bilionários hoje são próximos ao governo Trump. Qual é o peso da tecnologia no aumento da desigualdade?

As novas tecnologias são uma faca de dois gumes. De um lado, podemos usá-las para melhorar o acesso à educação, na melhoria dos serviços de saúde, educação, serviços públicos, na redução da corrupção, entre outras coisas. Mas elas também podem aumentar ainda mais a desigualdade. Obviamente, muitas pessoas perderão seus empregos atuais porque a IA irá substituí-los.

Então, se tivermos apenas IA, mas não tivermos uma visão política e ideológica de que todos devem se beneficiar, essa tecnologia pode realmente aumentar ainda mais a desigualdade. Muitos líderes do setor de tecnologia nos EUA, incluindo vários próximos a Trump, são libertários.

Ou seja, são muito ricos e dizem que não têm responsabilidade com ninguém. Eles combinam riqueza com falta de empatia e de responsabilidade social.

Isso é uma combinação muito ruim, mas é uma parte muito poderosa do cenário político americano atualmente. Nem todos os ricos são assim. Bill Gates, por exemplo, acumulou cerca de US$ 150 bilhões em patrimônio e anunciou na semana passada que vai doar tudo, encerrar sua fundação e gastar essa vasta fortuna para tentar acabar com a pobreza.

Essa é uma intenção muito nobre e notável. Tivemos outros filantropos assim. Andrew Carnegie foi um deles nos EUA. Ele dizia que, se uma pessoa rica morre rica, isso é uma desgraça — porque ela deveria ter doado sua fortuna.

Portanto, a resposta para sua pergunta é que temos um desafio de políticas públicas para lidar com a desigualdade e a pobreza. Mas também temos um desafio ético, de criar sociedades em que as pessoas se responsabilizem umas pelas outras, com a ideia de que a sociedade não prosperará se grupos significativos forem deixados para trás. Precisamos combinar soluções técnicas com uma abordagem ética.

EUA e China negociaram esta semana uma trégua nas tarifas. É possível vislumbrar o fim da guerra comercial?

Pensem em 20 de janeiro de 2025, pouco antes de Donald Trump assumir a presidência: não havia guerra comercial. A guerra comercial foi criada pelo presidente dos EUA. Nem foi uma criação do governo americano, mas de uma única pessoa, porque Trump emitiu um decreto presidencial invocando poderes de emergência para isso. Isso é importante porque não devemos considerar a guerra comercial como algo normal, inevitável ou um fato da natureza.

As justificativas de Trump para essas tarifas eram economicamente analfabetas.

— Jeffrey Sachs

Por exemplo, a ideia equivocada de que o déficit comercial dos EUA era resultado das práticas injustas de outros países, quando, na realidade, o déficit comercial americano resulta de uma baixa taxa de poupança da população americana e de grandes déficits orçamentários, que levam a altos níveis de consumo e, consequentemente, à importação de muitos produtos.

Então, o diagnóstico de Trump era falso — e levou a uma política equivocada. Ele deu outras justificativas, como punir a China, reindustrializar os EUA etc. Nenhuma delas se sustenta. Quando Trump lançou essa política tarifária, especialmente as chamadas tarifas recíprocas, os mercados ao redor do mundo despencaram. E os EUA caíram ainda mais que os outros.

Quando esse sinal de mercado ocorreu, Trump cancelou ou adiou quase todas as tarifas recíprocas, exceto as contra a China, que respondeu imediatamente com tarifas igualmente altas. Então, o que tivemos quase desde o início foi uma reversão americana, porque a política não fazia sentido.

O resumo é: a política tarifária de Trump foi uma política de one-man show, baseada em ideias econômicas falsas, rejeitada pelos mercados e que agora foi quase totalmente suspensa, exceto por uma tarifa universal de 10%.

Se você me perguntar o que vai acontecer após 90 dias, minha aposta é que nunca mais ouviremos falar disso. Foi uma política equivocada, e Trump depende sempre da memória curta do povo americano.

[Fonte Original]

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