Entre os diretores com filmes na disputa pela Palma de Ouro deste ano, talvez nenhum seja tão conhecido pelo grande público como o estadunidense Wes Anderson. Com sua estética enfeitada, em filmes multicoloridos e repletos de astros do primeiro time de Hollywood, seu cinema se cristalizou em uma estética facilmente reconhecível. E seu novo longa, The Phoenician Scheme, mais uma vez traz todos os elementos identificáveis em sua filmografia.
A trama se passa na década de 1950, quando um grande industrial, Zsa-Zsa Korda, escapa mais uma vez de uma das diversas tentativas de assassinato que seus inimigos costumeiramente armam para ele. No caso, sobrevive a um acidente com o seu avião particular – é um homem milionário e inescrupuloso, que tem desafetos tanto pela forma desonesta de aumentar sua riqueza quanto pela própria rivalidade com outros endinheirados. Ele sabe que sua morte é por demais desejada, e desviar dela já faz parte de sua rotina.
Após sobreviver ao desastre aéreo, porém, ele decide cuidar de como seu império financeiro será mantido. Escolhe deixar toda a sua herança para a sua única filha mulher, Lisl, que leva uma vida distante do luxo do pai, enclausurada em um convento, onde é freira.
Lisl atende ao chamado paterno e vai visitá-lo, e apesar de rejeitar inicialmente o dinheiro que ele planeja deixar para ela, aceita acompanhá-lo em uma viagem aventureira, em que o pai quer encontrar alguns de seus parceiros comerciais, na tentativa de que botem mais dinheiro em seus investimentos. Planeja, ao mesmo tempo, fazer a filha entrar em contato com um tio, que ele acredita ter assassinado sua ex-mulher e mãe de Lisl.
É claro que tudo é uma grande desculpa para Anderson fazer o cinema de casa de bonecas que tanto fascina os seus fãs, desta vez tendo por intenção primordial mostrar que mesmo um sujeito cheio de defeitos como Korda também tem, lá no fundo, um coração. O convívio com a filha de valores diametralmente opostos aos dele o tornará uma pessoa menos ruim, e o foco do longa está na reaproximação entre eles.
O filme é bem mais solto, leve – e tolo – que a obra anterior que Anderson apresentou em Cannes, Asteroid City, de 2023. Mas essa falta de ambição em termos de moral da história o torna menos afetado, mais caloroso; apesar do roteiro mais infantilizado e da rasura do material, é uma obra mais cativante, menos presunçosa que parte da filmografia mais recente do diretor. Mas é cinema para quem não exige muita coisa dessa forma de arte.
O enorme elenco é capitaneado por Benício Del Toro, que tem uma atuação segura, eficiente, embora sem grande criatividade. Ele faz uma boa dupla com Mia Threapleton, no papel de sua filha religiosa – o fato de a personagem não ser interpretada por uma grande estrela dá ao filme uma qualidade mais humana, mais próxima do espectador, o que é bastante saudável para o filme. Entre os demais nomes estelares, em papéis de menos destaque na trama, estão Tom Hanks, Bryan Cranston, Scarlett Johansson, Michael Cera, Riz Ahmed, Benedict Cumberbatch e, para não perder o hábito, Bill Murray.
No dia seguinte à presença marcante do Brasil no tapete vermelho, com O agente secreto, de Kleber Mendonça Filho, outro longa nacional teve estreia planetária no festival, embora fora da disputa pela Palma de Ouro. Para Vigo me Voy!, de Lírio Ferreira e Karen Harley, homenageia o cineasta Cacá Diegues, morto há três meses, aos 84 anos.
A escolha para a data de exibição não foi à toa: nesta segunda, dia 19, Diegues comemoraria seu 85º aniversário. O longa se concentra na trajetória artística do diretor, com pouca ênfase a sua vida pessoal, a partir de imagens de arquivo com entrevistas com Diegues entrecortados com vídeos caseiros mais recentes do cineasta e trechos de alguns de seus principais filmes.
Assim, o longa revisita filmes que o tornaram um dos expoentes do cinema brasileiro no exterior – só do Festival de Cannes, por exemplo, Diegues participou 12 vezes, fosse como diretor, produtor ou jurado. Seu longa de estreia, Ganga Zumba, foi logo exibido no festival, na mostra paralela Semana da Crítica, em 1964. Era o ápice do Cinema Novo, cujo programa, segundo o próprio cineasta relembraria aos risos anos mais tarde, “era mudar a história do cinema, do Brasil e do planeta”.
O documentário não se preocupa tanto com didatismo; grande parte dos trechos com falas de Diegues surgem descontextualizados, assim como não existe um fio condutor definido – embora, no geral, a ordem cronológica dos filmes de Diegues tenda a nortear a concatenação dos vários blocos do filme.
O termo Para Vigo Me Voy! é uma referência a uma fala do personagem de José Wilker, naquele que talvez seja o filme mais lembrado de Diegues: Bye Bye Brasil, de 1979. Que é o filme que mais recebe destaque na obra, junto com Xica da Silva, de 1976 e, surpreendentemente, Chuvas de verão, de 1978, um de seus longas mais delicados (fala sobre o amor na terceira idade), mas que não costuma ser lembrado como merecia.
Eis aí um dos pontos fortes do filme: atém-se ao que de mais relevante Cacá Diegues fez, ressaltando, por exemplo, o destaque que deu para a questão do negro brasileiro (ainda que sua representação racial tenha recebido diversas críticas) ou a paixão que tinha pela música brasileira, presente em vários de seus filmes. Assim, obras menores, como Um trem para as estrelas, de 1987, ou O grande circo místico, de 2018, surgem no filme praticamente apenas mencionadas. O que importa aos diretores é o que o diretor fez e que verdadeiramente deixou marcas.
Há alguns trechos muito interessantes, como imagens de arquivo de uma coletiva de imprensa de Quilombo, de 1984, quando o diretor foi duramente questionado por uma jornalista sobre a pretensa representação idealizada do negro brasileiro – sendo que, ali mesmo, naquela sala, um homem africano logo tratou de rebatê-la, saindo em defesa do filme e da forma como aborda a questão racial. Ou quando mostra o próprio diretor explicando sua visão sobre as “patrulhas ideológicas”, termo que ele mesmo cunhou e que se tornou de amplo uso pela imprensa e pela intelectualidade brasileira. “Todo discurso que se baseia em uma só verdade acaba sendo um discurso totalitário”, ele dizia. Fala que, como se nota, continua extremamente atual.