Grande sensação no festival de Cannes de 2021, quando levou a Palma de Ouro por Titane, a francesa Julia Ducournau voltou a apresentar na Croisette um novo filme calcado no horror físico. Alpha é uma história passada em uma época indeterminada, quando um estranho vírus se alastra pelo mundo. A enfermidade por ele causada gera duplo sofrimento aos adoecidos: além do perecimento biológico (seus corpos se tornam cada vez mais petrificados, como rochas), precisam enfrentar o preconceito de quem não foi infectado e tem pavor de pegar a doença.
Nesse contexto, a adolescente Alpha entra para a lista de provável infectada depois que, em uma festa em que bebeu além da conta, acorda com uma tatuagem com a inicial de seu nome no braço, feita sabe-se lá com qual agulha. Sua mãe, que é médica, se desespera e submete a garota a um teste. Seus problemas só aumentam depois que seu irmão, já contaminado e viciado em drogas pesadas, reaparece em sua casa depois de anos afastado. Entre as crises de abstinência do irmão e o sofrimento da filha com o preconceito dos coleguinhas que acham que ela pegou o vírus, a doutora enfrenta dias complicados – que, no entanto, intensificam seus laços familiares.
Ducournau ficou famosa pela enorme capacidade inventiva de seus filmes e pela pulsação com que os dirige, por mais soturnas que as tramas sejam. Muitas vezes, aquilo que seus roteiros não conseguem abarcar com desenvoltura, a cineasta contrabalanceia no fazer cinematográfico, se impondo pelo poder estético de sua obra; é uma das grandes geradoras de sensações do cinema contemporâneo.
Em Alpha, ela novamente não consegue providenciar muita coisa apenas pelo roteiro, mas lastimavelmente tampouco se mostra capaz de salvar as limitações do material na direção; não opera o milagre de elevar um filme satisfatório a partir da enorme bolha de vácuo que ela mesma estipula como estrutura.
No novo longa, a virose que petrifica o corpo das pessoas é obviamente uma alegoria de algum tema contemporâneo, mas o filme não dá o menor indicativo de alguma coisa mais definida do que essa insólita doença poderia significar. A ideia, por óbvio, é denunciar o comportamento da sociedade que não se faz de rogada diante do diferente: o exclui, sem pestanejar. Mas, até aí, não precisamos pagar um ingresso de cinema para chegar a essa grande conclusão. E a diretora não vai além disso: é como se Ducournau jogasse uma ideia qualquer para o público e terceirizasse o trabalho sujo – o espectador que encontre um sentido naquilo, se assim quiser.
Para piorar, a cineasta também parece ter perdido o instinto para o ritmo, que em sua obra anterior era bastante apurado; grande parte das sequências de Alpha são sem fôlego já de saída. A sequência da festa no começo do filme, quando fazem a tatuagem na adolescente, é tão desanimada que, quando termina, o público provavelmente já estava pensando em qualquer outra coisa extrafílmica – o que, em se tratando de uma cena ainda nos primeiros dez minutos de filme, é bastante grave.
Mas, sim: há também algumas cenas muito boas, e em vários momentos a diretora promove a atmosfera que mescla tensão e humor que caracterizam seus melhores trabalhos. Mas não bastam para escamotear a sensação de que Alpha revela uma artista em notável crise criativa.
Também exibido em competição nesta terça, Un simple accident marca o retorno de um dos grandes cineastas em atividade, o iraniano Jafar Panahi, à briga pela Palma de Ouro. Vencedor do prêmio de melhor roteiro em 2018, por 3 faces, o diretor apresenta mais uma vez uma obra com um subtexto de crítica ao extremismo religioso e ao autoritarismo do governo do Irã, muito embora durante grande parte do filme o tom seja de comédia, com toques de absurdo.
A história começa em um carro (como de hábito no cinema iraniano), quando um homem atropela e mata um cão selvagem na estrada. Logo depois, seu carro tem problemas no motor, enguiçando perto de onde trabalha Vahid, um homem traumatizado pelas torturas que sofreu há alguns anos, quando foi preso por protestar publicamente exigindo melhores salários.
Vahid reconhece o motorista: foi justamente o sujeito que o torturou impiedosamente no passado, deixando sequelas físicas até hoje. Ele decide sequestrá-lo e enterrá-lo vivo, como modo de se vingar. Mas precisa ter certeza de que o homem que tem como refém é mesmo seu antigo carrasco, e assim ele pede a ajuda de uma fotógrafa, também torturada, mas que não está segura de que o sujeito é mesmo o torturador. O roteiro se desdobra em situações improváveis e cômicas, e por fim o público vê em cena, dentro de um furgão, Vahid, a fotógrafa, o sequestrado, um rapaz afeito a resolver tudo na base do grito ou da violência, uma mulher vestida de noiva e um sujeito que não faz ideia do está acontecendo.
Como se percebe, Panahi faz um filme mais solto do que de hábito, com grande parte da duração em registro abertamente humorístico. Talvez tenha escolhido esse tratamento para que o longa não se tornasse por demais carregado. Sua história fala sobre um conflito entre “nós” e “eles”, ou seja: como nós podemos agir diante de quem não teve dúvidas na hora de ser cruel e injusto conosco? Pagar na mesma moeda seria uma vingança legítima? Ou apenas algo que nos rebaixaria à desumanidade de quem nos fez mal?
O humanismo de Panahi é sempre muito comovente: é o que torna seu cinema tão especial. Mas ele não consegue modular muito bem as cenas humorísticas – em vez de tornar seu filme uma narrativa menos solene a partir da comicidade, acaba por diluir o conteúdo. No trecho final, ele recobra a sobriedade, e a questão da ética na vingança ressurge com força. A cena final é magnífica – Panahi, aliás, tem talento especial para selar seus filmes. Mas, verdade seja dita: o filme como um todo não está à altura do que o trecho final deve solidificar na cabeça das pessoas. Um grande final nem sempre significa a conclusão de um grande filme.
O melhor longa do dia foi mesmo Eagles of the Republic, do sueco-egípcio Tarik Saleh. Trabalhando em registros distintos dentro do mesmo filme, entre a comédia leve, o melodrama familiar e o thriller político, o longa acompanha a história de George Fahmy, um ator algo canastrão, mas muito popular no Egito, que é requisitado pelas altas cúpulas do país para interpretar o atual presidente, Abdel Fattah el-Sisi, em um filme de propaganda sobre o autocrata.
Fahmy não se interessa por política, mas sabe que o ditador está longe de ser o homem heroico que o roteiro quer vender, então se recusa a fazer o filme. Porém, o governo o pressiona, ameaçando prender seu filho, então o ator cede e aceita filmar.
À medida em que começa a lidar com lideranças de seu país, Fahmy começa a desfrutar das benesses de quem tem poder, e até a gostar disso. Quando ele se dá conta de que se meteu mais do que deveria com o atual governo, já é tarde demais: está envolvido até o pescoço em uma perigosa engrenagem.
O filme nem sempre funciona bem na primeira parte, porque Saleh (como Panahi, aliás) parece não ter muito senso para o timing cômico – edita as cenas em momentos inapropriados. Mas o diretor tem diante de sua câmera o excelente ator Fares Fares, que tem uma presença invariavelmente marcante e consegue levar o filme nas costas quando o longa não se sustenta por si só. A história evolui cautelosamente rumo ao suspense político, e dali em diante Saleh passa a dominar o filme com um excepcional talento, na mesma tradição do vigor narrativo que Costa-Gavras apresentava em seus longas dos anos 1970.
O filme termina muito maior do que começou, e trava um curioso diálogo com o Two prosecutors, de Sergei Loznitsa, em sua reflexão sobre o quanto um cidadão sozinho, mesmo amparado pela lei (o procurador de Two prosecutors) ou pelo seu apelo popular (o astro de cinema de Eagles) não tem a menor chance diante de um Estado autoritário e corrompido.