Cannes recebeu nesta quarta-feira a atriz protagonista de um filme que não disputa nenhum prêmio, mas que foi uma das presenças mais festejadas até o momento entre as estrelas a passarem pela Croisette: Jodie Foster. A americana veio promover Vie Privée, dirigido por Rebecca Zlotowski, em que interpreta uma psiquiatra que tenta descobrir detalhes sobre a morte de uma paciente, que pode ter sido assassinada. O grande detalhe é que, no longa, Foster fala em francês, com pouquíssimo sotaque (na juventude, ela morou um tempo na França, então domina o idioma).
O filme é uma comédia com toques dramáticos bastante bem-sucedida, em que Foster divide cena com nomes de peso do cinema gaulês, como Daniel Auteuil, Matthieu Amalric e Virginie Efira. Sua personagem, Lilian, é uma terapeuta americana radicada na França que começa a demonstrar vulnerabilidade ao descobrir que uma de suas analisandas tirou a própria vida. Mas como a paciente nunca demonstrou ímpetos suicidas, Lilian passa a suspeitar de que alguém a matou – talvez a própria filha da morta, que age estranhamente após o ocorrido.
Atordoada e mais emotiva que de hábito, Lilian vai atrás da ajuda de uma terapeuta esotérica, que tem pinta de charlatã, mas que se revela capaz de fazer com que a psiquiatra, apesar de agnóstica e pragmática, se entregue a um tratamento não muito científico e faça uma viagem ao próprio passado. Em uma de suas regressões, percebe que, em outra vida, foi uma musicista que viveu um romance com uma mulher, que provavelmente era a tal paciente suicida, também em outra encarnação.
Sim, é uma bobagem despretensiosa, que não prega alguma doutrina religiosa – assim como também não condena nenhuma. É sobretudo um filme sobre uma mulher que (re)descobre aspectos sobre si mesma que andavam escondidos ou adormecidos. E, acima de tudo, uma oportunidade de permitir a Foster ter mais um grande momento em sua bela trajetória artística.
Na competição pela Palma de Ouro, o italiano Mario Martone levou à Croisette a história da escritora Goliarda Sapienza, narrada em Fuori, que traz Valeria Golino em uma de suas melhores performances da carreira. Sapienza escreveu seu livro mais conhecido, “L’arte dela Gioia”, em 1976, mas só conseguiu publicá-lo em 1994, dois anos antes de morrer, aos 72. Mas a obra só teria o devido reconhecimento e seria publicada integralmente no fim dos anos 2000, quando seu nome ressurgiu do esquecimento e se tornou um dos mais celebrados nas letras da Itália do fim do século 20.
O longa se passa em 1980, ano em que Sapienza saiu da prisão, onde ficou um tempo encarcerada devido a roubo e revenda de joias – que ela havia subtraído de uma de suas ex-amantes, em um impulso de chamar sua atenção e afrontá-la. O filme intercala imagens do período logo posterior a sua liberdade, quando Sapienza estava quebrada e procurando qualquer trabalho, com trechos dos tempos em que ela estava na cadeia, onde travou amizade com uma moça mais jovem, Roberta, detida por envolvimento com grupos de esquerda subversivos.
Sapienza tinha uma personalidade muito peculiar: apesar da inteligência brilhante e de um inegável talento com as letras, no dia a dia era avoada, talvez sonhadora demais, e muitas vezes tinha atitudes inesperadas. Quando batia papo com alguém, sempre surgia com perguntas que não tinham muita relação com o assunto da conversa, o que a tornava uma mulher ao mesmo tempo indecifrável e engraçada. Martone não tem uma preocupação específica em desvendar o íntimo da escritora ou de trazer à tona as motivações para seus comportamentos inusitados. Em geral, apenas mostra-a da forma como ela era, ressaltando sua generosidade e a compreensão que tinha diante das fraquezas dos outros, duas de suas grandes marcas, para além do lado distraído.
A certo ponto, ela diz uma frase que disserta sobre sua essência: “Nunca me senti tão livre na vida como nos tempos da cadeia”. Afinal, ali, quando interagia com as presidiárias, Sapienza podia ser quem era sem medo de ser julgada equivocadamente. E atrás das grades ela cria uma relação especificamente forte com Roberta, que a toma como uma figura materna. Em vários momentos, o filme as mostra trocando beijos, até na boca, mas esse gesto denota menos sexualidade aflorada do que afeto entre amigas – são apenas duas pessoas desgarradas que se amam e não têm pudores socialmente impostos; fazendo isso estão, sobretudo, demonstrando uma à outra o quanto sentem afeição mútua. É um belo filme, que se vale das excelentes performances de Golino e de Matilda De Angelis, no papel de Roberta.
Igualmente na briga pela Palma, Romería é mais um mergulho da catalã Carla Simón em uma história que fala sobre laços familiares. A cineasta ficou conhecida quando venceu o Urso de Ouro, no Festival de Berlim de 2022, com Alcarràs.
Desta vez, a trama é menos solar, ainda que tenha muitas paisagens filmadas sob o Sol no belo mar da Galicia, no norte da Espanha. É a história de Marina, uma jovem órfã de pai e mãe que, ao completar 18 anos, decide fazer uma visita aos parentes do lado paterno para buscar um documento sobre o pai, que morreu quando ela ainda era muito pequena, e conhecer melhor os familiares.
Ela parte para Vigo, onde conhece tios, primos e os avós. A cada dia, ela entra em contato com uma nova informação sobre o pai, que morreu em decorrência de problemas causados pelo vírus HIV, em 1992. Usuário de heroína, ele teve uma vida bastante agitada com sua mãe (que também morreria em decorrência da Aids), até que as complicações devido ao uso de drogas e às doenças oportunistas fizeram a então pequena Marina ter pouco convívio com ambos, conhecendo sobretudo a mãe por meio de um diário escrito por ela.
Simón faz com que Marina descubra as coisas aos poucos, percebendo que sua família paterna tem aspectos odiosos. O filme tem um ritmo próprio, meio atravancado no começo, mas que se impõe, sobretudo depois de uma festa em que Marina sofre humilhações diante daquela gente que tem o mesmo sangue, mas que não é a real família da jovem. O longa é sobre o amadurecimento dessa recém-adulta que é repentinamente jogada aos leões, mas que consegue domá-los. Ao se reconectar com os pais, preenche uma lacuna afetiva, mas igualmente aprende a não repetir as tolices juvenis que eles cometeram. Uma jornada bastante proveitosa, como se percebe.
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