“A pele é o lugar onde o sujeito encontra o mundo. Ao envelhecer, ela se torna um lugar da memória gravada no corpo”, explica o fotógrafo Rafael Medina sobre a proposta da exposição que inaugura hoje (30) no Museu da Diversidade Sexual. Com o título “O mais profundo é a pele”, a mostra retrata pessoas da comunidade LGBT+ com mais de 60 anos através de fotografias.
O título parte de uma frase do poeta francês Paul Valéry para descrever o encontro entre um corpo e o mundo. Em análise do filósofo Gilles Deleuze, a contradição entre a superficialidade da pele e a profundidade proposta pela frase-poema ganha novos contornos: a pele também é o lugar onde a vida interior se manifesta. Nas palavras de Medina, ela representa a “fisicalidade da memória”.
A memória, para o curador André Fischer, é justamente o que foi negado à comunidade LGBT+ até aqui, o que resultou no apagamento de sua história e de seus personagens. “O nosso envelhecimento tem aparecido nos últimos tempos porque a nossa comunidade está envelhecendo pela primeira vez. Ela era invisível até pouco tempo atrás,” ele conta, relembrando a violência a que estavam frequentemente sujeitos membros da comunidade dentro e fora de casa.
Ao ressaltar a importância da representação do envelhecimento de pessoas LGBT+, o curador lembra ainda a tragédia do surto de HIV entre as décadas de 1980 e 1990 no Brasil: “Todos estamos envelhecendo, mas uma especificamente na geração que hoje chega aos 60 anos é que se trata de uma geração de sobreviventes. Elas passaram pela catástrofe da AIDS, quando muitos perderam pessoas próximas. É preciso, nesse momento, celebrar a vida.”
Para ele, assim como para Rafael Medina, o objetivo da exposição é construir referências e eternizar pessoas cujas trajetórias ajudam a contar a história e a evolução do movimento LGBT+ no Brasil. Nesse sentido, nomes como Gretta Star, Leo Moreira e a drag queen Mama Darling integram o leque de fotografados. Mas existe também algo de pessoal movendo o esforço do artista e do curador.
Enquanto homem gay, Fisher encara a questão do envelhecimento no espelho: “Eu estou nesse processo, me aproximando dos 60 anos. É uma reflexão que uma hora chega, não dá mais para adiar.” Diretor de Comunicação da Parada do Orgulho LGBT+ de São Paulo, ele também traz o tema para as ruas: com o tema “Envelhecer LGBT+: Memória, Resistência e Futuro”, o evento acontece no dia 22 de junho, na Avenida Paulista.
Medina, por outro lado, começou a perceber a questão não em si mesmo, mas ao seu redor. Enquanto fotografava as boates da cena clubber de Berlim, percebeu que pessoas com mais de 50 anos ainda ocupavam aqueles ambientes, que ele classifica como “um espaço importante para a comunidade queer pois é onde eu consigo ser livre, me expressar, usar a roupa que eu quero e reconhecer pessoas como eu”.
Seu choque foi perceber que, no Brasil, isso era muito diferente, a ponto de se ver, aos 32 anos, sendo chamado pelos amigos de “a cacura do rolê”, termo que diz respeito a homens gays mais velhos. A brincadeira ganha contornos reais quando Medina entende que, no Brasil, pessoas mais velhas paravam de ocupar espaços importantes para a comunidade LGBT+. “Parecia que elas eram empurradas para fora daquele espaço, que não pertencia mais a elas.”
A visão do envelhecimento do homem gay enquanto decadência se reforçava na literatura, lembra o fotógrafo ao citar livros como A morte em Veneza, de Thomas Mann, Queer, de William Burroughs, e O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde. O objetivo de suas fotografias é, portanto, desafiar essa imagem criada por uma sociedade obcecada pela juventude. “Eu queria retratar uma maneira de envelhecer para além da ideia de fim da vida, quando não é mais possível sonhar ou amar”, ele conta.
Além das fotografias, a exposição conta com relatos em vídeo em que personagens fotografados contam as experiências de vida que os levaram até o momento do retrato. Entre histórias de violência e perda, se destaca a vitalidade que os entrevistados expressam, “se apaixonando, realizando sonhos e vivendo ativamente”, define o fotógrafo.
A exposição “O mais profundo é a pele” é gratuita e fica em exibição no Museu da Diversidade Sexual, dentro do Metrô República, em São Paulo, até 31 de agosto.