Camiseta da Mulher-Maravilha e tranças maria-chiquinha no cabelo. Assim, uma menina de 11 anos encara a câmera do celular com desenvoltura para mostrar algo pouco comum para a idade: centenas de produtos beleza dispostos em sua penteadeira. Populares no TikTok, os vídeos de skincare (cuidado com a pele, em inglês) não têm uma faixa etária específica, atingindo todos os públicos. Um estudo inédito desenvolvido por cientistas da Northwestern University, nos Estados Unidos, e publicado nesta segunda-feira pela revista Pediatrics mostra que esse tipo de conteúdo expõe crianças e adolescentes a combinações prejudiciais à saúde.
Os pesquisadores criaram uma conta na plataforma, simulando que teriam 13 anos, e examinaram cem vídeos populares voltados ao público jovem. A partir disso, reuniram dados demográficos dos influenciadores, além de quantificarem e tipificarem os tipos de produtos usados por eles e custo de tudo isso. Em seguida, criaram uma lista dos seus ingredientes ativos e inativos. A descoberta assusta: meninas de 7 a 18 anos estão usando em média seis cosméticos diferentes no rosto, sendo que algumas chegam a mais de uma dúzia.
Entre as publicações mais vistas, circulavam em média 11 ingredientes ativos potencialmente irritantes, o que colocava as criadoras de conteúdo em risco de desenvolver irritação na pele, sensibilidade ao sol e uma alergia cutânea conhecida como dermatite alérgica de contato. Evidências anteriores, segundo os especialistas, mostraram que o desenvolvimento dessa alergia pode limitar os tipos de sabonetes, xampus e outros produtos que os usuários podem aplicar pelo resto da vida.
— Esse alto risco de irritação veio tanto do uso de vários ingredientes ativos ao mesmo tempo, como os hidroxiácidos, quanto da aplicação repetida do mesmo sem saber, uma vez que foi encontrado em três, quatro, cinco produtos diferentes — explica a dermatologista e pesquisadora Molly Hales, uma das autoras do estudo.
Mais de um produto por minuto
Em um dos vídeos analisados na amostra, uma criadora de conteúdo aplicou 10 produtos em seu rosto em seis minutos. À medida que passava os produtos, começou a expressar desconforto e ardor e, nos últimos minutos, desenvolveu uma “reação cutânea visível”, como detalhou a médica Tara Lagu, responsável por supervisionar a turma de pesquisadores da Northwestern. Os cientistas ainda alertam que apenas 26% dos regimes de cuidados durante o dia incluíam protetor solar, tido como um dos itens mais importantes para qualquer idade.
— O uso indiscriminado de produtos dermatológicos contendo ácidos e outros ativos, como vitamina C e niacinamida, por jovens representa um risco à saúde da pele. Nessa faixa etária, a pele é naturalmente mais sensível e reativa, em especial a da face, tornando-se mais vulnerável aos efeitos adversos desses compostos. Quando utilizados sem orientação adequada, esses produtos podem comprometer a integridade da barreira cutânea, levando a sintomas como ressecamento, descamação, vermelhidão, ardor e queimação — detalha a dermatologista Paula Fujioka.
Além dos danos causados na pele, a rotina de skincare de adolescentes custa em média US$ 168 (R$ 945, na cotação atual), que os autores estimam durar cerca de um mês, dependendo do tamanho dos produtos. Em alguns casos, o estudo avalia que os tratamentos diários custam mais de US$ 500 (R$ 2.790, aproximadamente).
Apesar de ter sido diagnosticada nos EUA, essa tendência também repercute por aqui. A menina vestida com a roupa da super-heroína da Marvel, por exemplo, é brasileira. E a cena em que ela enumera os infinitos produtos que possui foi compartilhada pela mãe, que se diz orgulhosa da vaidade da filha, com mais de 80 mil visualizações no TikTok e ilustrando essa tendência preocupante. Nos consultórios pelo país, os médicos já percebem o aumento de casos ligados aos tratamentos excessivos, muitas vezes com produtos inadequados para a idade, e orientados por um influenciador.
— O skincare deveria começar apenas na adolescência, com o surgimentos das primeiras acnes, e baseado apenas em produtos simples, como sabonetes adequados para a higienização da pele, protetor solar e hidratante — orienta Jandrei Rogério Markus, presidente do Departamento Científico de Dermatologia da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP).
Para ele, o excesso de informações “desnecessárias” arrisca ainda a saúde mental dos jovens:
— O consumo de conteúdos para beleza, e até mesmo para a saúde, nas redes sociais, por crianças e adolescentes preocupa. Os pais devem monitorar e tentar criar um senso crítico nos filhos, com diálogo aberto, para que eles possam diferenciar o que deve ou não ser levado em conta e tenham autoestima e consciência de que os padrões de beleza não são fixos — alerta.
Padrões estéticos e ‘viés racial’
De acordo com o estudo, havia também uma “linguagem racial preferencial e codificada”, em alguns casos, que realmente enfatizava uma pele “mais clara e brilhante”. Sem contar nas “associações reais entre o uso desses regimes e o consumismo”, constatadas por Tara. Os pesquisadores concluíram que esses vídeos oferecem pouco ou nenhum benefício para o público a que se destinam. Além disso, dada a forma como os algoritmos funcionam, é quase impossível para os pais ou pediatras acompanhar exatamente o que as crianças ou adolescentes estão vendo. Os perigos realmente ultrapassam os danos à pele.
— É problemático mostrar meninas dedicando tanto tempo e atenção à pele — disse Hales — Estamos estabelecendo um padrão muito alto para essas meninas. A busca pela saúde se tornou uma espécie de virtude em nossa sociedade, mas o ideal de saúde também está muito envolvido nos ideais de beleza, magreza e branquitude. O aspecto insidioso dos ‘cuidados com a pele’ é que eles afirmam ser sobre saúde.