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segunda-feira, julho 14, 2025

Crítica | Um Dia Maldito (Dylan Dog #21) – Plano Crítico

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O barulho de um motor corta o silêncio de uma estrada italiana, e uma encarnação da morte, vestida com a máscara de um motociclista dos anos 1940, avança decidida, comprando e recolhendo os materiais que usará para sua vingança assassina. Em Um Dia Maldito, Tiziano Sclavi e Marcello Toninelli (em sua primeira contribuição para a série) constroem um giallo utilizando o horror físico para examinar uma sociedade marcada por privilégios, irresponsabilidades e negligências. Hazel Dove vive atormentada por visões violentas e carrega um pressentimento sombrio, como se soubesse que um ato do passado (que ela ainda não identifica qual) a tornou alvo de um destino inevitável. A trama, ancorada num evento banal — uma garrafa lançada de um avião particular por um grupo de ricaços embriagados, se divertindo –, desdobra-se em uma teia de vingança que conecta o trauma individual de um jovem às falhas coletivas dos burgueses irresponsáveis, questionando os limites da responsabilidade e da justiça com as próprias mãos. Com uma atmosfera densa, a história mergulha nas sombras da psique humana, onde a culpa, o ódio e a repetição da violência compulsiva moldam o perseguidor e a vida das vítimas.

O texto é um pequeno quebra-cabeça investigativo. Cada crime é meticulosamente planejado e reflete a fúria de um jovem que perdeu algo que amava. A figura do motociclista mascarado pinta uma presença quase mítica aqui, um aparente “espectro da Segunda Guerra Mundial” que cobra dívidas do presente. Visualmente, ele é uma síntese perfeita do estranho no familiar, uma personificação da morte que habita a modernidade. Os assassinatos, variando em complexidade e crueldade, são absurdas e hipnotizantes — a cena do homem que “se transforma num balão humano” e explode é um exemplo genial de como o exagero pode ser narrativamente funcional, equilibrando o choque com a lógica interna do giallo. É a minha morte favorita da edição, por sinal. E a história não se contenta em apenas entreter com o horror sanguinolento; ela dialoga com uma sociedade onde a opulência de uma classe encobre (ou tem dinheiro para pagar & apagar) suas irresponsabilidades. O fato-gerador que conhecemos, por flashback, já na reta final do quadrinho, mostra como gestos inconsequentes podem reverberar em consequências devastadoras para todos os envolvidos, principalmente quando não temos como saber a reação, a longo prazo, das vítimas de nossas escolhas ou impulsos.

A ausência temporária de Dylan Dog, com a sugestão pouco convincente de sua morte num acidente aéreo, cria um vazio que enfraquece o roteiro, forçando um luto que não se integra bem ao enredo. O leitor, ciente de que o protagonista está são e salvo, atravessa as páginas com um sentimento de reticência, o que dilui a tensão em favor de uma resolução previsível, já que o Detetive do Pesadelo retorna subitamente, como um Deus Ex Machina, para salvar sua cliente de ser esmagada pelo teto da mansão. Ainda bem que os autores compensam isso no desfecho, com um encaminhamento cru (mas também súbito) que subverte as expectativas. Sem recorrer a explicações sobrenaturais, Um Dia Maldito encontra seu horror na realidade: o sobrevivente de um crime de classe, movido por uma dor que a sociedade prefere ignorar, sai pelo Reino Unido matando todos os responsáveis (diretos e indiretos) pela morte de sua namorada. De certa forma, essa escolha narrativa transforma a aventura numa parábola moral.

O que torna Um Dia Maldito memorável é sua capacidade de tecer reflexões éticas sem sacrificar a fluidez e a potência do thriller. Quem, numa sociedade, tem o privilégio de esquecer (ou de ignorar as consequências de seus atos) e quem é obrigado a carregar o fardo da memória, da dor, da perda? Existem várias camadas em debate, e todas elas bem organizadas na sequência de crimes. Os roteiristas sugerem que a justiça, quando tomada pelas próprias mãos, pode se tornar tão destrutiva quanto a injustiça que busca reparar. A história confronta as tensões e embala todas elas numa investigação que parece não avançar, enquanto a morte atinge pessoas diferentes, em lugares diferentes do país. Ao final, a moto e a figura misteriosa do assassino (gosto muito dessa elaboração visual de Giuseppe Montanari e Ernesto Grassani) são um lembrete dos “pecados do passado” que voltam, após a fermentação do tempo, exigindo um acerto de contas. É um bom estudo sobre como as ações, por menores que pareçam, interferem no destino de todos. Uma narrativa que equilibra horror e algumas camadas de crítica social, indo além do sangue e enxergando as cicatrizes que a indiferença deixa no mundo… até que alguém simplesmente escolhe não mais ignorar.

Um Dia Maldito (Dylan Dog #21: Giorno maledetto) — Itália, junho de 1988
Roteiro: Tiziano Sclavi, Marcello Toninelli
Arte: Giuseppe Montanari, Ernesto Grassani
Capa: Claudio Villa
No Brasil: Dylan Dog 1ª Série – n° 8 — Mythos, maio de 2003
100 páginas



[Fonte Original]

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