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- Author, Joana Rei
- Role, De Madri (Espanha) para a BBC News Brasil
A curitibana Caroline, de 37 anos, tem permissão para morar em Portugal, emprego, casa própria e noivo no país europeu. Entretanto, diante de uma nova política migratória anunciada recentemente pelo governo de lá, considera que sua “vida está em suspenso”.
A mudança que tem tirado o sono da engenheira eletrônica é o plano do governo português de dificultar o acesso ao reagrupamento familiar — a solicitação para que parentes possam viver em Portugal também — por parte dos imigrantes regularizados no país.
Caroline, que pediu para não ter o sobrenome identificado na reportagem, relata que já vinha enfrentando burocracia e lentidão para regularizar a permanência da mãe em Portugal. Agora, a nova política migratória traz ainda mais incertezas sobre o futuro.
“Em outubro do ano passado ela teve um acidente, teve de passar por várias cirurgias e ainda está em reabilitação. Tem 70 anos e não pode morar sozinha. Eu sou filha única, ela é viúva e, por isso, a única solução foi trazer ela para cá”, conta a curitibana, que vive em Portugal há cinco anos.
Apesar de ter uma vida estável no país, as incógnitas têm feito ela considerar se mudar para a Espanha, onde a empresa para a qual trabalha tem sede.
“Eu não quero sair daqui, mas se eu não conseguir reagrupar a minha mãe, fica complicado. Eu já falei para o meu noivo: ‘Será que a gente vai ter de seguir outro caminho?’. Eu tenho esperança que as coisas vão melhorar, mas se acabar com o reagrupamento, não tem jeito”, desabafa Caroline.
Na sexta-feira, o governo vai apresentar ao Parlamento as novas propostas sobre imigração, que incluem um endurecimento das regras para a realização do reagrupamento familiar.
Até recentemente, os imigrantes podiam reagrupar sua família assim que tivessem cartão de residência.
Com a nova lei, precisariam de dois anos de residência no país. Só os menores poderiam ser reagrupados estando em território português, os adultos teriam de fazer o pedido por meio do consulado de cada país.
Caso seja a provada, a mudança afetaria de forma muito significativa as famílias que imigram para Portugal. Muitas delas viajavam juntas apoiadas no visto de trabalho do pai ou da mãe e depois faziam o pedido de reagrupamento já no território. Essa possibilidade deixaria de existir.
Só seria possível a entrada de casais se os dois tivessem visto. Caso contrário, o cônjuge sem visto teria de esperar dois anos para fazer o reagrupamento familiar.
“O que o governo pretende é que a pessoa que pede o reagrupamento tenha um vínculo laboral estável no país, passados esses dois anos”, explica o secretário de Estado Adjunto da Presidência e Imigração, Rui Armindo Freitas. “O objetivo não é separar as famílias. Reconhecemos o reagrupamento familiar como uma forma de integração e um direito consagrado no espaço europeu. A nossa proposta está dentro da Diretiva Europeia”, defende.
A lei prevê duas exceções: os imigrantes com vistos de trabalho de altas qualificações ou com autorização de residência de investimento, os chamados “golden visas“, que vão poder fazer o reagrupamento assim que tiverem o cartão de residência e com o familiar já em território português.
Questionado sobre o porquê da exceção, Freitas defende que “Portugal quer continuar atraindo talento e apostando numa economia de valor acrescentado” e justifica a decisão com o fato de que “rendimentos mais altos garantem a estabilidade necessária para trazer a família no que toca à economia, habitação e condições de vida”.
Esta exceção pode ser a saída para Caroline, cuja autorização de residência se enquadra na categoria de “altas qualificações”. “Se a lei for mesmo aprovada desse jeito, para mim não muda nada, ficaria tudo igual. Mas falta saber se vai mesmo ser aprovada com essa exceção”, explica.
O mesmo não pode dizer Celso Pequeno. Ele chegou de Brasília há dois anos e ainda está à espera do seu cartão de residente, que atrasou por vários problemas nos processos burocráticos.
Sua filha e sua esposa vieram para Portugal um ano depois, e ele tinha intenção de fazer o reagrupamento familiar assim que saísse o cartão de residência, o que não seria possível com a nova lei.
“Eu só vou poder reagrupar minha filha. Minha mulher teria que ir para o Brasil e esperar dois anos para poder vir para cá. Isso não é vida”, diz Pequeno.
Caso a lei seja de fato aprovada, a família já decidiu que vai para Espanha.
“Para o Brasil a gente não volta, mas ficar aqui também não é opção. Tenho um primo na Espanha e a gente vai para lá, vende a casa que compramos aqui e recomeçamos tudo de novo, a decisão está 100% tomada. Estou só esperando sair a aprovação da lei”, explica.
Política mais restritiva
Ainda que seja aprovado nesta sexta, a proposta teria um longo caminho a percorrer até que fosse promulgada pelo Presidente da República e entrasse em vigor.
Até lá, ainda poderia sofrer mudanças, uma vez que o Governo tem minoria no Legislativo e precisa de votos de outros grupos políticos para a aprovação.
O argumento era de que podia estar em curso “a legalização suplementar de milhares de imigrantes no país”.
No documento, o partido reconhecia “que a presença dos cônjuges e dos filhos nas escolas” ajuda na integração dos imigrantes regularizados, mas defendia que isso representa “um desafio tremendo (…) para os serviços públicos que sofreram significativamente com as vagas de imigração desde 2015”.
O Chega não faz parte da coalizão de governo liderada pelo primeiro-ministro Luís Montenegro, a Aliança Democrática — composta pelo Partido Social Democrata (PSD) e pelo Centro Democrático Social (CDS) —, mas seus votos são essenciais para a aprovação da lei, e o governo vai ter de negociar com o partido, até porque o Partido Socialista já disse que votará contra.
O governo nega que a suspensão do reagrupamento familiar possa entrar em discussão.
Mas a falta de um cronograma claro e a incerteza sobre o que vai ser aprovado tem gerado apreensão nas comunidades de imigrantes, principalmente a brasileira — que, por ser a maior do país, tem sido a maior beneficiada pelo dispositivo.

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Em 2023, segundo o último relatório disponível da Agência para Integração, Migrações e Asilo (AIMA) do país, foram concedidos 328.978 títulos de residência. Desses, 147.262, mais de 44%, foram para brasileiros.
Naquele ano, 44.878 títulos foram emitidos como parte do programa de reagrupamento familiar — mas, nesse caso, não há dados específicos de nacionalidade.
“É verdade que, hoje, não há essa limitação de dois anos de residência para pedir o reagrupamento familiar, mas isso não significa que se estivesse reagrupando em menos tempo do que o que propomos agora. Temos pessoas que estão aqui há quatro anos e que nem conseguiram cartão de residência, nem conseguiram reagrupar a família”, argumenta o secretário Rui Armindo Freitas, referindo-se à saturação dos serviços de imigração, que segundo ele têm sido sobrecarregados pelos pedidos de reagrupamento.
Reagrupamento familiar já é limitado na prática, dizem brasileiros

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Enquanto o governo aponta para essa saturação dos serviços migratórios como uma das justificativas para restringir o reagrupamento familiar, brasileiros relatam sofrer na pele com essa sobrecarga burocrática — mas argumentam que dificultar esse tipo de procedimento não é a solução.
“Quando um profissional chega aqui para trabalhar, com tudo em ordem, e ele consegue trazer a família, é aí que ele se integra, trabalha bem e produz riqueza para o país”, defende Caroline.
“Já existem regras: ter casa para viver, meios de subsistência e sem antecedentes criminais. É só cumprir e ter um sistema eficiente, não é para retirar o que existe.”
A curitibana relata dificuldade para agendar procedimentos e para conseguir contato telefônico com a AIMA.
Caroline decidiu contratar uma advogada que deu entrada no processo para a mãe em 30 de março, mas ainda não houve resposta.
Os 90 dias do visto de turista da mãe já expiraram, e a idosa agora está em situação irregular.
“Tenho medo porque ela agora não está legal. Tem o processo a decorrer e não devia acontecer nada, mas tenho medo. Minha avó ainda está viva e tem 94 anos. Se acontece alguma coisa, imagina eu negar para ela ir-se despedir da sua mãe… Mas se ela sai do país nessa situação, tenho medo que depois não deixem entrar [de volta a Portugal]”, diz a engenheira.
Já Manoel Ferreira está à espera de fazer o reagrupamento familiar dos dois filhos menores desde 2022. As crianças estão em Portugal de forma irregular.
Manoel e a esposa, também brasileira, entraram no país como turistas. Ao conseguir trabalho, fizeram com sucesso a manifestação de interesse — um procedimento de regularização através do contrato de trabalho.
Ambos trabalham como cuidadores de idosos e sentem-se integrados à comunidade.
Entretanto, o cartão de residente dos dois expirou. O casal fez a renovação por três anos e espera só ter o novo documento nas mãos para fazer de novo o pedido de reagrupamento familiar.
“Só que, com essa notícia de que querem impedir o reagrupamento, a gente ficou preocupado, porque não sabemos como vai ser”, relata Manoel, apontando para a dificuldade de encontrar vagas para fazer procedimentos e para a instabilidade do site destinado a isso.
Os filhos, de 11 e 13 anos, estão na escola — mesmo em situação irregular, todas as crianças até 16 anos devem estar matriculadas em Portugal, independente do status migratório.
Mas a ausência de documentação impõe certos limites.
“Meu filho tinha uma viagem agora com a escola para a Espanha, mas eu preferi que ele não fosse por conta disso”, explica o pai.
A brasileira Ana Paula Costa, pesquisadora e vice-presidente da Casa do Brasil (organização sem fins lucrativos de apoio aos imigrantes), diz que, na prática, o reagrupamento familiar já é restrito.
“O acesso ao reagrupamento familiar já está sendo limitado porque os serviços não conseguem dar resposta”, aponta.
Ela critica que o argumento da falta de capacidade administrativa para lidar com os processos é uma “falácia”, pois o governo poderia investir em mais pessoal e tecnologia.
“Não são só os serviços de imigração que estão assim. Toda a administração pública de Portugal tem falta de pessoal e não é por isso que se eliminam os direitos das pessoas”, defende, caraterizando como “perverso” e “desumano” o plano de limitar o reagrupamento familiar.
A pesquisadora afirma que “se é certo que a diretiva europeia permite estabelecer um prazo de residência de até dois anos para fazer o reagrupamento”, por outro lado “há recomendações para facilitar e desburocratizar o processo”.
Ana Paula Costa lamenta que o governo português tenha escolhido “dar passos atrás numa legislação que era muito positiva”.
Nacionalidade e visto para procura de trabalho

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O reagrupamento familiar não é a única política de imigração que o governo pretende modificar.
A lei que será apresentada no Parlamento pretende restringir também o visto para procura de trabalho, limitando seu acesso a “candidatos com elevadas qualificações”.
Na prática, essa medida pode reduzir o número de pedidos de visto para Portugal, uma vez que o visto para trabalho é o mais procurado nos consulados com mais demanda, como é o caso do Brasil.
Segundo o Ministério dos Negócios Estrangeiros, em 2024 foram concedidos 32.000 vistos de trabalho pela rede consular portuguesa — 40% deles, cerca de 13.000, a cidadãos brasileiros.
A lei de estrangeiros em vigor define como “atividade altamente qualificada aquela cujo exercício requer competências técnicas especializadas ou de carácter excepcional e, consequentemente, uma qualificação adequada para o respectivo exercício, designadamente de ensino superior”.
A nova proposta do governo não diz o que entende por “altas qualificações”, definição que será especificada mais à frente pelos responsáveis da área de educação, trabalho e migrações.
Segundo dados de junho de 2024 do Banco de Portugal, os brasileiros lideravam entre os trabalhadores estrangeiros de todos os setores, menos agricultura e pesca, onde predominam indianos, nepaleses e bengalis.
Há mais de 200 mil trabalhadores brasileiros inscritos na Segurança Social — ou seja, são pessoas que têm trabalhos formais.
“É contraditório Portugal restringir esse tipo de visto quando continua a ter falta de mão de obra em todos os setores. Além disso, o visto de procura de trabalho tem uma regra clara: as pessoas podem ficar aqui meio ano com esse visto e, se encontrarem trabalho, podem permanecer e pedir o título de residência”, ressalta Ana Paula Costa.
Freitas acredita que “Portugal não vai perder competitividade para atrair trabalhadores menos qualificados” e defende que até agora “o país tinha criado expectativas para essas pessoas que depois não era capaz de cumprir”, demorando os processos por falta de planejamento.
“Agora vamos ter um Estado funcionando, dando respostas adequadas e integrando as pessoas com dignidade”, insiste.
Outra das mudanças é a “revisão da lei da nacionalidade, alargando o tempo mínimo de residência e presença efetiva em território nacional, eliminando a possibilidade de a permanência ilegal ser considerada para efeitos de contagem desse tempo, e assegurando que quem adquire a nacionalidade portuguesa tenha uma relação efetiva e uma integração de sucesso no país”.
Até agora, era preciso permanecer no país pelo menos cinco anos para poder pedir a nacionalidade. Na nova lei, esse tempo vai ser de sete anos para os imigrantes de países de língua portuguesa e de dez anos para aqueles dos demais.
Nesse caso, os brasileiros também estariam entre os grupos mais afetados. Segundo dados do Ministério da Justiça, entre 2010 e 2023, mais de 400 mil brasileiros obtiveram a nacionalidade portuguesa.
Caroline cumpriu os cinco anos de residência em Portugal em fevereiro. “Como já se falava da possibilidade de mudança, eu aproveitei que fui ao Brasil buscar a minha mãe, pedi todos os documentos e dei entrada no processo de pedir a nacionalidade no final de março. Foi sorte”, conta.
A engenheira considera que essas mudanças na lei podem trazer consequências negativas para o país.
“Eu entendo que Portugal quer ter mais controle no perfil das pessoas que entram no país. Mas o profissional que quer vir fazer sua vida aqui, se integrar na comunidade, contribuir para a sociedade, precisa de previsibilidade. E agora a ideia que passa é que nesse país, as regras estão mudando a toda a hora e isso deixa as pessoas com o pé atrás”, explica.
Além disso, o governo quer mudar a lei também para a atribuição de nacionalidade às crianças nascidas em Portugal. Elas tinham direito à nacionalidade se um dos pais residisse no país há um ano, mas agora o prazo será de três anos.
A proposta inclui ainda a possibilidade de retirar a nacionalidade de imigrantes com dupla nacionalidade que, num prazo de dez anos depois da naturalização, sejam “condenados por crimes de elevada gravidade” a penas de prisão efetiva de cinco anos ou mais.
Alguns analistas põem em dúvida a constitucionalidade dessa norma, mas Freitas afirma que ela está “garantida” segundo suas avaliações e que essa decisão “nunca será administrativa, mas sempre aplicada por um juiz”.