Crédito, Divulgação/Paris Filmes
- Author, Tom Cardoso
- Role, De São Paulo para a BBC News Brasil
A celeuma é antiga e voltou à pauta após a estreia de Homem com H, cinebiografia do cantor Ney Matogrosso, dirigida por Esmir Filho.
Ney foi instado a responder, de novo, à mesma pergunta durante a divulgação do filme: quem foram os primeiros a se apresentar com os rostos cobertos com maquiagem, os roqueiros do Kiss ou o Secos e Molhados, grupo do qual foi líder?
O cantor brasileiro, desta vez, não entrou na provocação. Só deixou claro que não copiou grupo nenhum, mesmo porque nem conhecia a banda de hard rock americana.
Como já contou anteriormente o cantor brasileiro, na década de 1970 ele estava mais interessado, por exemplo, no kabuki — o teatro japonês conhecido por suas performances estilizadas, maquiagem elaborada e trajes coloridos.
“Eu comecei [a maquiar o rosto] porque ouvi dizer que artista não podia andar na rua, que artista não tinha privacidade. Eu só tinha 31 anos, eu não queria abrir mão da minha privacidade. Baseado no kabuki, eu fui num lugar lá que vendiam as maquiagens brancas e pretas, e eu fiz uma cara para mim baseada neles. Só que eles faziam maquiagens muito coloridas, e a minha eu fazia de preto e branco só”, contou Ney Matogrosso ao jornal Correio Braziliense em 2016.
Uma década antes dos Secos Molhados e do Kiss adotarem o uso de maquiagem, artistas como David Bowie e Alice Cooper já haviam sido vistos no palco com os rostos pintados.
Era o caso também da banda The Crazy of Arthur Brown, liderada pelo cantor londrino Arthur Brown no fim dos anos 1960. Esquisitão, o vocalista apresentava-se nu e maquiado em alguns shows, além de usar um capacete de metal que pegava fogo.
‘Não tenho ideia de quem sejam’

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Mas nenhum desses artistas e grupos ficaram tão associados ao uso de máscaras quanto os Secos e Molhados e o Kiss.
Aliás, os dois contribuíram para a polêmica, com declarações venenosas nas últimas décadas sugerindo que o plágio veio do outro lado.
Em 2006, em entrevista ao Canal Brasil, Ney declarou: “Fomos ao México [em 1974]. Dois empresários americanos quiseram me levar para os EUA. (…) Inclusive, disseram que minha imagem era boa, mas que o som tinha que ser mais pesado. Eu não ia mudar nosso som por causa disso. Uns seis meses depois, começou o Kiss, com uma maquiagem como a nossa e um som mais pesado”.
Das poucas vezes que falaram sobre o assunto, Gene Simmons e Paul Stanley, os dois fundadores do Kiss, desdenharam do grupo brasileiro.
“Nunca ouvimos falar nessa tal banda. Não temos ideia do que seja ou de que tocam”, declarou Paul Stanley em 1994, em coletiva de imprensa.
Gene Simmons, também em coletiva, debochou: “Conheço essa lenda. Já ouvimos falar dessa história. Não é verdade. Muitas pessoas acreditam nisso, mas também há muitas pessoas que acreditam em discos voadores, não?”
Jogada de marketing?

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É relativamente fácil desmontar a tese de plágio de ambos os lados, basta se ater ao histórico das duas bandas e como elas se formaram.
O Secos e Molhados nasceu três anos antes do Kiss, em 1970, o que não assegura nenhuma vantagem no debate. Até porque os primeiros a se apresentarem com o rosto pintado de branco foram Simmons e Stanley, quando ainda formavam o obscuro grupo Wicked Lester.
Mas é muito improvável que uma banda do circuito alternativo novaiorquino tenha servido de inspiração para os Secos e Molhados.
Os brasileiros podem usar a seu favor o fato de que foram os primeiros a fazer sucesso em grande escala com o rosto pintado de branco — e, portanto, com grande visibilidade, ficaram mais suscetíveis a plágios.
Os americanos podem rebater, alegando que foram vistos no palco, pela primeira vez usando maquiagem, em março de 1973, três meses antes do lançamento do álbum Secos e Molhados, o célebre disco em que os brasileiros aparecem na capa com os rostos pintados, servidos em bandejas de prata.
As datas, portanto, não servem para esclarecer nada, só para colocar mais pontos de interrogação na história. Tudo começa a ficar menos nebuloso quando se entende melhor as motivações, o contexto político e influências culturais vividos por cada uma das duas bandas.
Formado em Nova York, o Kiss se tornou uma das bandas mais cultuadas e carismáticas da cena rock. As performances de Paul Stanley, Gene Simmons, Ace Frehley e Peter Criss combinavam rock de qualidade com efeitos pirotécnicos, uma marca do grupo, que vendeu mais de 100 milhões de discos.
O Kiss dava uma grande importância ao marketing, na melhor forma de promover a banda — e por isso manteve oculta por anos a verdadeira identidade de seus integrantes.
Isso só foi possível porque todos eles se apresentavam com o rosto pintado de branco.
Cada um representava um personagem. Stanley era Starchild, o artista que sonhava em ser uma estrela rock — e por isso era visto no palco com uma estrela pintada em torno do olho direito.
Simmons encarnava Demon, fã de filmes de terror, sempre fazendo cara de mau.
Ace Frehley, o guitarrista, louco por ficção científica, aparecia com uma maquiagem futurista, no papel de Space Ace.
Por fim, o baterista Peter Criss, amante de felinos, virava o homem-gato Catman.
Em 2022, o Kiss fez uma turnê de despedida dos palcos, que passou pelo Brasil.
Barra pesada

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Enquanto os roqueiros americanos brincavam de história em quadrinhos, aqui no Brasil os Secos Molhados viviam numa realidade totalmente diferente.
Ainda mais este grupo, cuja atitude ousada e perfomática chamava a atenção, assim como seu sucesso — o disco de estreia vendeu cerca de 300 mil cópias, um verdadeiro feito na época para uma banda até então desconhecida.
No ano seguinte, o Secos e Molhados saiu em turnê pelo Brasil, lotando teatros e o ginásio do Maracanãzinho, no Rio de Janeiro (RJ).
“Ninguém nunca tinha cantado e vestido do jeito que eu me vestia. Ninguém tinha cantado com o rosto escondido como eu. Pintar o rosto era uma forma de me poupar do desprazer de não andar na rua, porque diziam que artista não andava na rua. Como é que eu ia perder o direito de andar na rua com 31 anos de idade?”, disse Ney em entrevista ao programa Conversa com Bial, em abril deste ano.
Os integrantes do Secos e Molhados, como muitos artistas de sua geração, foram fichados pelo Dops, órgão de repressão da ditadura. E vigiados de perto.
“Volta e meia, eu botava a cara para fora da janela e via dois agentes à paisana dentro de um [carro] Dodge Dart com um binóculo”, lembrou Gerson Konrad.
Já Ney chegou a receber cartas anônimas com ameaças de morte.
Em 1974, a banda brasileira gravou mais um LP, mas Ney Matogrosso, por divergências com os outros dois integrantes, João Ricardo e Gerson Conrad, desligou-se do grupo e partiu para a carreira solo, assim como João Ricardo.
Os Secos e Molhados voltaram a se reunir outras vezes, com formações diferentes, mas sem o mesmo sucesso.
Polêmica sem fim
Polêmicas e lendas à parte, nada parece ter importância diante da genialidade de duas das mais celebradas bandas da história da música, que certamente fariam o mesmo sucesso maquiados ou de cara limpa.
Recentemente, Oswaldo Vecchione, líder da banda Made in Brazil, foi às redes sociais trazer um novo capítulo para o “buchicho” sobre os rostos pintados.
Ele contou que a banda brasileira de rock havia se apresentado assim em… 1969!
“A gente sempre usou maquiagem em show. Para surpresa nossa, o Secos e Molhados fez três programas do Papo Pop com a gente e nunca usaram maquiagem. Quando saiu o disco deles, pô, um ‘tava’ usando maquiagem que parecia a do Cornélius, outro ‘tava ‘ usando maquiagem que parecia a do meu irmão, outro ‘tava’ usando uma maquiagem que parecia a minha. Foi uma surpresa, né? Foi uma coisa assim, meio estranha”.
Vai começar tudo de novo.