Estava tendo uma festa no convento.
Um dançarino de break que se apresentou como O Mago dava saltos mortais; outro girava deitado de costas no chão. Havia holofotes, um rapper, dois cinegrafistas e um Chevrolet rebaixado com um sistema de som no porta-malas e o grave no talo. No meio de tudo isso estavam Marizele Rego e Marisa Neves – as freiras que se tornaram estrelas da noite para o dia – com o grupo de dançarinas de apoio vestidas a caráter, com hábito, véu e crucifixo.
Elas estavam gravando o clipe de sua nova música, “Vocação”, que explodiu desde que a primeira apareceu na TV católica cantando o refrão contagiante e fazendo beatbox enquanto a segunda dançava no ritmo, três semanas antes.
As imagens se espalharam pelo mundo, resultando em milhões de visualizações. Houve memes, imitações e apresentações em programas de entrevistas de fim de noite. No “The View”, da ABC, Whoopi Goldberg se referiu ao episódio como “‘Mudança de Hábito’ da vida real”.
E ali estavam elas, dublando no pátio do convento, tentando prolongar os 15 minutos de fama com um clipe que foi lançado em 27 de junho. Segundo as duas, Deus permitiu que viralizassem para atrair mais jovens para a Igreja, e estavam tentando cumprir a missão. “Por que algo tão simples e espontâneo assumiu uma proporção tão grande? Porque o Espírito Santo quer tocar o coração das pessoas – bom, também tem o algoritmo, claro”, afirmou Marizele, freira cantora de 46 anos que já tinha cem mil seguidores no Instagram antes de virar sensação mundial.
Tanto ela como Marisa, de 41, fazem parte de um movimento que vem ganhando força na Igreja Católica que prega o desapego, o relaxamento e a busca pelo público mais jovem onde ele está – ou seja, on-line.
De acordo com dados oficiais divulgados em junho, no Brasil, apesar de maior país católico do mundo, a instituição vem perdendo fiéis há anos. Hoje, menos de 57 por cento dos 200 milhões de habitantes se identificam como tal; há 30 anos eram 83 por cento.
Para estancar a hemorragia, está apelando para influenciadores, estrelas pop e bandas de rock. Alguns padres – musculosos, bonitões e antenados – atraem, juntos, milhões de seguidores no Instagram, entre eles Marcelo Rossi, que já se tornou um dos artistas mais vendidos do Brasil. De uns tempos para cá, até DJs começaram a tocar música eletrônica em eventos apelidados de “raves católicas”, inclusive no Cristo Redentor, em janeiro.
A iniciativa é uma extensão do movimento da Renovação Carismática Católica (RCC) e de outros grupos que há décadas querem tornar a Igreja mais acessível e envolvente, e agora estão entrando no mundo digital. Em julho, o Vaticano apoiará uma série eventos em Roma para reunir influenciadores on-line e premiar artistas. De fato, já tem quem chame o evento de “Grammy católico”.
No entanto, durante alguns dias de maio, talvez só o novo papa tenha recebido mais atenção que a dupla. Ambas pertencem à Congregação das Irmãs da Copiosa Redenção, há 35 anos estabelecida no Sul, que conta com cerca de 80 freiras e 25 irmãos religiosos dedicados à reabilitação de jovens dependentes químicos, muitas vezes usando a música e a arte para isso.
Há muito tempo a ordem cultiva uma atmosfera relativamente descontraída e voltada para as artes. O fundador, padre redentorista, era pintor prolífico; a irmã Inez Carvalho conheceu a fama por um breve período como rapper, lançando um álbum na década de 90.
Nesse dia de junho, no convento de Ponta Grossa, ouviam-se muitas risadas, em grande parte de Marizele e Marisa. “Tem seguro de vida?”, perguntou a primeira ao se sentar ao volante do carro. E quando acelerou para entrar em uma ladeira – elas estavam atrasadas para a missa –, a segunda gritou de alegria como se estivesse na montanha-russa.
As duas são de famílias de agricultores de milho e soja no Paraná, estado agrícola do Sul do país, e foram criadas em um ambiente cheio de música. Elas se conheceram em 2007, e o entrosamento se estabeleceu rapidamente. “Se eu começo a batida, ela já sai dançando”, explica Marizele.
Ela conta que aprendeu sozinha a fazer beatbox, criando para outras freiras enquanto elas cantavam. “Comecei a fazer ritmos na boca, mas nem sabia que tinha nome.
Tempos depois, perceberam que tanto o recurso como a dança hip-hop poderiam ser usados como ferramentas para aproximação das jovens nos centros de reabilitação da ordem, mesmo que muitas meninas viessem das ruas e tivesse pouco em comum com as religiosas. “Foi o que nos permitiu a aproximação e o rompimento das barreiras”, explica Marizele.
Esse carisma levou a congregação a incumbi-las de recrutar novas freiras em um momento em que há muito menos mulheres optando pela vida no convento. Nos EUA, por exemplo, o número caiu pela metade nos últimos 20 anos, chegando a 36 mil, segundo o Centro de Pesquisa Aplicada no Apostolado, organização sem fins lucrativos que estuda a Igreja. O número de padres caiu 18 por cento no mesmo período, e está em 34 mil.
Em 20 de maio, Marizele e Marisa participaram de um programa católico que promovia um retiro para atrair novas freiras. A primeira começou a cantar “Vocação”, canção que a congregação compôs anos atrás sobre o chamado de Deus, mas resolveu espichar o refrão: “Voca-ção, oh, oh, oh”.
Ao ouvir a mudança, Marisa conta que não conseguiu não dançar. Elas se levantaram e Marizele começou o beatbox. “Pelo fone de ouvido ouvi o diretor do programa, que estava atrás das câmeras, pedir ao diácono que nos entrevistava para entrar na dança também. Ele pegou o ritmo rapidinho, seguindo meus movimentos em perfeita sincronia”, completa ela.
Esse momento, resumido em um vídeo de 30 segundos, virou um sucesso estrondoso na internet: só no TikTok teve mais de 34 milhões de visualizações de acordo com a Tubular, empresa de dados das redes sociais. Os convites para entrevista, vindos de todas as partes do planeta, não demoraram a chegar.
No convento, as irmãs mais velhas perceberam ali uma ótima oportunidade. Daniely Duarte Santos, que dirige o escritório de comunicação da congregação, ligou para uma colega que estava de férias e, juntas, começaram a bombar a postagem nas redes sociais para aproveitar o interesse. Em questão de dias, mais de 50 mulheres entraram em contato, querendo se tornar freiras; normalmente, só conseguem recrutar algumas por ano.
E entraram em contato com um DJ da cidade para pedir que criasse uma faixa com a música – e entre uma entrevista e outra, Marizele gravou os vocais. O resultado, segundo ela, com baixo e sintetizador, é “techno-pop” – e disparou nas paradas de música católica do Spotify no Brasil.
Marizele e Marisa foram a vários programas de TV, fazendo beatbox e repetindo os passos de dança em todos. Gravaram o clipe, dirigido por Santos, com fone de ouvido sobre o véu; nas ruas, são paradas pelos fãs para tirar selfies. “Pedimos que rezem uma Ave-Maria por foto”, esclarece Marizele.
(Flávia Milhorance contribuiu com a reportagem)