Em Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, a protagonista da aventura dorme e sonha que cai na toca de um coelho. No fundo dessa toca, há um mundo obtuso, fundamentado sobre regras completamente diferentes daquelas que Alice conhece. O modo como os moradores desse estranho lugar falam, pensam e agem é, aos olhos da visitante, absurdo. Ao tentar contra-argumentar com eles, a menina é censurada, ou recebe uma resposta disparatada e praticamente ininteligível.
O sonho é, na verdade, um pesadelo. Não há diálogo possível nesse novo mundo. As coisas estão determinadas em cláusula pétrea e ninguém parece ter vontade de refletir, de mudar ou sequer de entender o outro. Acrescente-se a essa construção incoerente, uma Rainha detentora de total poder, e, portanto, temida pelos súditos, cuja máxima é “Cortem-lhe a cabeça!”.
O pavor dos habitantes da toca do coelho os levaria a um estado letárgico que os impediria de perceber a insensatez de sua monarca e posicionar-se contra seu despotismo. Tudo gira em torno dela, não se sabe ao certo como chegou ao poder, mas ninguém ousa questionar nada que ela diga sob o risco de perder a cabeça.
Desde o início do pós-pandemia, em 2022, nosso entorno parece ter se transformado em um paralelo do universo com o que Alice travou contato. As mazelas sociais e políticas das últimas décadas já tensionaram o tecido civilizatório, e a crise sanitária instaurada pela Covid-19 foi um dos primeiros fios cortados pelas Parcas.
Em 1919, Sándor Ferenczi já alertava para o fato de que psicanalistas estariam preparados para lidar com neuroses individuais, mas não para a psicose coletiva, especialmente em tempos de crise aguda. Franco “Bifo” Berardi resgata o conceito de Ferenczi e vai além ao afirmar que nos encontramos, hoje, num ponto crítico, imersos em uma psicose em massa, sem ferramentas teóricas, terapêuticas e até sem vontade para tratá-las. A potência moderna, exaurida, sempre foi uma ilusão do governo do caos, destaca Bifo em Asfixia (2020, Ubu, tradução de Humberto do Amaral).
Trata-se de uma ilusão certamente construída pelas instâncias de poder. Como Beatty explica a Montag em Fahrenheit 451, de Ray Bradbury (2012, tradução de Cid Knipel): “Se não quer um homem politicamente infeliz, não lhe dê os dois lados de uma questão para resolver; dê-lhe apenas um. Melhor ainda, não lhe dê nenhum”. A estratégia, como ele mesmo conclui, é fazer a sociedade eleger um governo ineficiente e despótico à agitação de um povo que se preocupa com isso. O objetivo final, nas palavras de Beatty, é simplesmente: “Paz, Montag”.
Por isso, nesse terreno fértil ganham força os “regentes” semelhantes à Rainha de Copas que não atuam apenas como comandantes de nações, mas pessoas em diversas esferas que detêm o poder, e contra os quais tememos nos posicionar. Ou a quem talvez nem desejemos ou saibamos fazer qualquer objeção ou oposição.
A prova disso é que diante das atuais guerras, atrocidades e incongruências, pouco tomamos as ruas, nem pintamos cartazes ou fazemos vigílias. Se fazemos, não se transformam em mudanças reais por falta de lastro. O ativismo virtual floresceu graças à comodidade e ao individualismo, mas também uma boa parcela deve ser creditada ao cansaço. Cabe destacar que o ativismo virtual é importante e tem levantado questões urgentes, mas é preciso ir além. Outro legado pandêmico: víamos de casa o terror e não podíamos agir. Assim, nos tornamos engessados emocionalmente, escorregando para o individualismo e a autoproteção no melhor estilo “acho melhor não” de Bartleby. O mundo desaba e a pulsão coletiva inexiste.
Diante da nossa indiferença e dependência virtual, os “imperadores do mundo”, ao ver suas rosas brancas e não vermelhas, lançam seus decretos “Taxem-lhes os produtos!”, escorados em notícias falsas e maquiagens políticas. Alguns buscam dialogar com os tiranos ou fazer resistência, mas telefonemas, cúpulas e encontros, quando acontecem, são tão nonsense quanto o “chá maluco” do qual Alice participou com a Lebre de Março e o Caxinguelê, que poderiam representar aqui dois sujeitos absurdos do entourage de autoridades contemporâneas:
“Tome um pouco de vinho”, disse a Lebre de Março num tom animador.
Alice correu os olhos pela mesa toda, mas ali não havia nada além de chá. “Não vejo nenhum vinho”, observou.
“Não há nenhum”, confirmou a Lebre de Março.
(Todos os fragmentos dos livros de Carroll citados aqui foram traduzidos por Maria Luiza X. de A. Borges).
É possível que a lassidão moral, intelectual e social que cede ao autoritarismo absurdo e polarizante de hoje seja o primeiro apagar de luzes de toda uma era guiada pela industrialização voraz. Will e Ariel Durant, em The Lessons of History (1968) já haviam dividido a história em três “fatias”, de acordo com os hábitos sociais e econômicos: era da caça, da agricultura e da indústria. Esta última, na qual supostamente nos encontramos, dará espaço a uma nova realidade que os Durant não conseguiram prever. Porém, podemos arriscar: a era do algoritmo, em que regras e instruções preparadas serão embutidas nas massas sem ação, vigiadas e expostas por si mesmas no mundo de silício.
Voltemos às Rainhas de Copas. Recentemente, em território estadunidense, estendeu-se tapete vermelho para o chefe de um país que esteve, ideologicamente falando, do lado de Cuba durante décadas. Mas Cuba, para o anfitrião do encontro solene segue sendo país inimigo. Como explicar esse estranho jogo de tabuleiro em que, aparentemente, o amigo do meu amigo é meu inimigo?
Assim como a era da industrialização está no fim, a era das ideologias também está, e a afirmação que fazemos não é tão nova assim. Albert Camus em 1946 e, mais tarde, o controverso Daniel Bell em The End of Ideology (revisitado, 1988) já teorizavam que a sociedade pós-industrial se apegaria às antigas coordenadas sociopolíticas por não saber como prosseguir. Esses polos alimentam os autocratas da atualidade, escondidos sob peles ideológicas metamorfoseadas, as quais servem apenas para disfarçar a maior força atuante neste mundo caleidoscópico: a econômica.
Outras cenas nonsense à moda de Alice no País das Maravilhas no mundo e no Brasil contemporâneo reforçam nossas observações. O recente e lamentável episódio envolvendo deputados no Congresso Nacional é um exemplo. Uma deputada, tal como a Duquesa no livro de Carroll, prega doutrina moral (qual, neste mundo sem rumo?), mas quando se trata de cuidar do filho adota comportamento oposto:
“‘Ora, não me aborreça’, disse a Duquesa; ‘nunca pude suportar números!’ E com isso começou a acalentar o filho de novo, enquanto cantava uma espécie de cantiga de ninar, dando-lhe fortes sacudidas ao fim de cada verso”.
O escritor e pensador da Martinica Édouard Glissant afirma que o medo (e o consequente bloqueio de ação) impede a utopia. Glissant lembra, em uma entrevista a Hans Ulrich Obrist, em 2021, que “A terra está tremendo. Sistemas de pensamento foram arruinados, não há mais caminhos retos. Há intermináveis inundações, erupções, terremotos, incêndios. Hoje o mundo é imprevisível, e em tal mundo a utopia é necessária. Mas a utopia precisa do pensamento do tremor” (Tradução de Feiga Fiszon). O tremor não tem a ver com temor, medo nem com incerteza, ele está relacionado com a não paralisia, com a recusa de um pensamento fixo ou imperativo.
“Tremblement”, diz Glissant, é o pensamento que “nos possibilita vaguear e nos possibilita recusar todos os sistemas de terror e dominação”.
Parece que, em vez de recusarmos e questionarmos os sistemas de terror, nos aliamos a ele por conformismo, cansaço e alienação. Não despertamos como Alice, que à medida que vai tomando consciência, percebe que não só a Rainha era uma mera e frágil carta de baralho, mas todos os seus súditos também.
E nesse entorno insano, qual caminho tomar?
“Isso depende muito do lugar para onde se quer ir”, nos responderia o Gato de Cheshire.
Dirce Waltrick do Amarante é tradutora e ensaísta. Autora, entre outros, de Metáforas da Tradução (Iluminuras). Professora da Universidade Federal de Santa Catarina.
Fedra Rodríguez é tradutora, neurocientista e ensaísta. Traduziu, entre outros, Raymond Roussel, James Joyce e Juan-Eduardo Cirlot.