Assim que ouviu as primeiras palavras do título da 36ª Bienal de São Paulo, “Nem todo viandante anda estradas”, Frank Bowling entendeu exatamente o que aquilo queria dizer. Aos 91 anos, o artista inglês nascido na Guiana expõe pela primeira vez no seu continente de origem.
Rememorando a infância em Bartica, onde os rios Cuyuni e Mazaruni encontram com o Essequibo, nos limites da floresta Amazônica, Bowling conta que vem visitando São Paulo em sua imaginação há oitenta anos: “Desde a adolescência eu conheço os nomes Brasil e Guiana como convenções coloniais, linhas no mapa que se pode atravessar, na floresta tropical ou na savana, e que, com um ato de vontade, seria possível alcançar.”
Por isso, comemora o fato de que 25 de suas pinturas compõem uma espécie de retrospectiva de sua obra – que está presente nos acervos dos principais museus do mundo, como Tate (Londres), MoMA e Whitney Museum of American Art (Nova York) – pela primeira vez em São Paulo.
Em entrevista realizada por e-mail à Cult, o artista conta que se viu especialmente representado pela forma como a metáfora do estuário é usada pela curadoria desta Bienal. Conduzida por Bonaventure Soh Bejeng Ndikung com uma equipe de curadores composta por Alya Sebti, Anna Roberta Goetz e Thiago de Paula Souza, a mostra parte de textos de Conceição Evaristo, René Depestre, Patrick Chamoiseau e Édouard Glissant para “repensar a humanidade como verbo”. A metáfora do estuário, local onde diferentes correntes de água convergem, reflete a multiplicidade de encontros que marcaram a história do continente.
Bowling se vê como um viajante nato. Desde que saiu da Guiana, em 1956, em direção a Londres para estudar no Royal College of Art, onde recebeu a medalha de prata em pintura, não parou de percorrer caminhos por terra, água, ar e além. Hoje, a idade torna difícil viajar para além do percurso diário até seu ateliê, mas o artista continua se definindo como um viajante: “Mesmo que eu não pise em uma estrada há uma década – na maior parte do tempo estou em uma cadeira de rodas – viajo constantemente em minha mente. Mesmo deitado na cama, estou pintando no teto.”
O artista conta que passou a maior parte de sua vida às margens de rios e estuários. Cresceu em Nova Amsterdam, onde morava a duas quadras do rio Berbice – “e você sabe, os rios guianenses têm a cor do chá, enriquecidos por matéria mineral e vegetal, correndo pelo país até finalmente despejarem suas águas barrentas no Atlântico”. Em Londres, viveu e trabalhou a maior parte de sua vida à beira do Tâmisa, cuja vista alternava com a do East River, em Nova York, onde morou em um apartamento-estúdio com vista para o estuário.
“Passei a vida ouvindo os sons das águas. Eu diria que, mesmo que meus pés sejam muito lentos, continuo viajando inquieto, guardando as sombras dos movimentos da minha vida e em constante deslocamento pelos mundos submersos da minha imaginação. Eu me viro simplesmente ajustando-me ao que vejo. Todos os dias estou em muitos barcos, apenas flutuo”, ele escreve.
As cores e texturas das correntes com que viveu ao longo dos anos marcaram e continuam a despontar em sua obra abstracionista. Mesmo após 70 anos pintando, ainda são as possibilidades da tinta – cor, luz e geometria – que o encantam, tendo deixado a pintura figurativa de lado em sua primeira década de trabalho.
“Acredito que o ato de criar marcas seja uma atividade primordial. É fundamental para a existência humana, como comer e outras funções do corpo. Mesmo quando a abstração saiu de moda, continuei totalmente comprometido com ela. Pintura abstrata é o que eu faço. É o que venho fazendo há mais de meio século”, afirma, lembrando a primeira vez que, em 1961, viu um quadro de Jackson Pollock no MoMA.
Bowling conta que o motivo pelo qual levanta todos os dias e se dirige ao cavalete é a simples possibilidade de descobrir coisas novas em seu trabalho: “Quero ver como um quadro vai acabar ficando, e faço isso a cada minuto do meu dia, mesmo quando não estou no ateliê”.
Seu trabalho é sempre experimental, isto é, nunca parte de uma ideia preconcebida de quadro. “Agora mesmo estou pensando no que vou trabalhar hoje, e já mudei de ideia várias vezes. Comecei a pensar no verde, mas ouvi das pessoas que passaram por aqui hoje que está bastante quente lá fora, então agora penso em vermelho e em algo amarelado… vai mudando o tempo todo.” Seu interesse continua o mesmo: buscar algo que nunca tenha visto antes, que surja da tinta e fisgue seu olhar.
Talvez por efeito dos corpos d’água que o acompanharam, é no movimento da tinta que Bowling se concentra na maior parte do tempo. “Quando estou no ateliê, mergulho no processo de jogar, derramar e pingar tinta. Às vezes tento entender como uma ideia nasce na minha cabeça e depois aparece nas minhas mãos. Em certos momentos consigo reconhecer com facilidade o que sinto em relação ao que visualizei, o que às vezes me traz conforto e relaxamento, outras me incomoda, e em outras ainda sou incapaz de localizá-las. Recentemente me perguntaram sobre o retângulo branco na minha pintura Middle Passage e o que ele significa. Eu respondi: paz.”
Por mais que o caráter figurativo de sua obra seja mais ligado à criatividade do espectador que às próprias ambições do artista, existe um esforço por sua parte que se volta de forma perene ao motivo dos mapas. Se a tinta é a protagonista de suas pinturas, as memórias pessoais funcionam como pano de fundo para potencializar sua expressão. Muito usados em obras das décadas de 1960 e 70, Bowling voltou recentemente a usar estênceis e mapas serigrafados das Américas em suas pinturas. Daí um fato insólito sobre sua vinda a São Paulo neste ano: em uma serigrafia da América do Sul com a qual trabalhou pela primeira vez nos anos 1960, a capital paulista aparece como a única cidade nomeada na impressão.
A matriz foi usada novamente na pintura September, que Bowling concluiu no início deste ano. “Pareceu extraordinário que, quase sessenta anos depois de ter feito as obras com a América do Sul, eu finalmente tivesse a chance de mostrar meu trabalho lá. Sinto-me um pouco triste por nunca ter feito a viagem ao Brasil, mas fico muito feliz por estar presente através das minhas pinturas.”
Por mais que sua obra seja completamente abstrata, Bowling acredita que o público brasileiro possa reconhecer sua própria paisagem em suas pinturas, fortemente influenciadas por temas do terreno em que cresceu, entre a floresta e os estuários. “Cada vez mais, nos últimos meses, tenho pensado em questões de poesia e na minha infância na América do Sul, algo sobre o qual no passado eu não refletia muito. Talvez tenha a ver com estar perto do fim da vida, voltando para a terra onde nasci.”
Ele pontua que uma das obras que integram a exposição se chama Towards Crab Island, nome de uma pequena ilha no rio Berbice, perto de Nova Amsterdam. “Ilhas, estuários, rios, a natureza selvagem e caranguejos aparecem em muitas das minhas pinturas e nos títulos das minhas obras; esse tema ressoou profundamente em mim.”
A 36ª Bienal de São Paulo ocupa o Pavilhão Ciccillo Matarazzo, no Parque Ibirapuera, entre 6 de setembro de 2025 e 11 de janeiro de 2026, com visitação gratuita. Além de Frank Bowling, outros 119 artistas participam da exposição.