Era uma vez, há muito tempo, a forma romanesca que, lida como a epopeia burguesa, unia – pela imaginação ficcional – a poesia do coração e a prosa do mundo. Eram tempos áureos do desenvolvimento da modernidade, quando a onipotência das convenções e normas burguesas desencantava a realidade. O romance, com seus traços vacilantes, revelava o quanto esse mundo se tornara alheio à humanidade, e disso brotava a vontade imperiosa do seu herói que, ao enfrentar as leis desse mesmo mundo, buscava algo essencial.
Assim, a forma romanesca instituía um valor capaz, em meio a um universo contingente e vazio, de fazer entrever um sentido para além da realidade posta. A ficção tornava-se fundamental, pois, ao negar a imanência das realidades moldadas por um mundo em processo de mercantilização, abria caminhos à imaginação e à possibilidade de uma vida mais digna.
Num dos mais belos ensaios já escritos, A alma e as formas, no início do século 20, um jovem ainda desconhecido chamado Lukács afirmava que a forma é uma tentativa de reunir elementos dispersos e heterogêneos do mundo, configurando-os em um todo criado e ficcional: uma busca abstrata que tornava visível o vazio de sentido da vida sob o império da mercadoria.
O mais impressionante, porém, é que já nesse ensaio o jovem Lukács intuía que, em um mundo cada vez mais heterogêneo, a própria forma se via desfavorecida em nome da imanência exigida pelo mercado. A forma literária convertia-se progressivamente em forma vazia, denunciando a impossibilidade de produção de sentido para a experiência humana em um mundo cada vez mais individualizado, cujas formas de reprodução social reduziam os sujeitos a meros apêndices de uma engrenagem de moer gente.
A forma artística, impressa nas obras literárias por meio da ficção, carregava a possibilidade de capturar os fragmentos desordenados e contingentes da vida, organizando-os em um sentido que a transcendia. Contudo, em um mundo onde a impossibilidade da forma se anuncia cada vez mais, revela-se também que a própria humanidade foi reduzida a um mero apêndice.
Como o leitor deve ter percebido, isso aconteceu há muito tempo, quando a arte ainda era concebida como a possibilidade de trazer à luz aquilo que falta. Ao revelar a tragicidade da existência e conferir-lhe sentido, a ficção se entrelaçava à imaginação, abrindo possibilidades e caminhos para além da realidade posta, sempre organizada pela mediação da forma.
Apesar de também ter sido relegado ao esquecimento pelo triunfo de uma vida imediata, o debate sobre a obra de arte e a estética nunca esteve alheio à vida social. E, embora qualquer crítica seja fulanizada – sustentada pelo personalismo próprio de uma sociedade individualista –, o incômodo diante do diagnóstico sobre a crise da literatura não deixa de ser, ele mesmo, um sintoma.
Quando a crítica abandona o que é mobilizado pelo argumento para se fixar em quem o enuncia – suas características, seu cargo ou função –, podemos dizer que estamos também diante de uma crise da própria crítica. Mas a questão permanece: se a literatura continua a ser a maior janela para trazer o real à tona, o que, afinal, a sua crise nos revela?
Diferente do que afirmou Aurora Bernardini à Folha, a crise talvez não seja da literatura, mas da ficção que sustentava a forma do romance. Quem trata desse tema de maneira aprofundada é Anna Kornbluh em seu livro Imediatez ou estilo do capitalismo tardio demais. A recusa da ficção não é, argumenta a autora, uma mera escolha estética de muitos escritores atuais; trata-se, como em tudo o que diz respeito à construção artística, de um vislumbre das transformações do nosso imaginário, no qual a autoficção fornece todas as coordenadas.
Se o romance, com seu herói frustrado, era uma tentativa de transcender os limites impostos pela realidade capitalista, a autoficção se prende ao realismo, personalizando a voz e restringindo-se à imanência de suas regras. Não à toa, a voz em primeira pessoa, o tom pessoal e sincero — que substitui a ironia — e a revelação do privado configuram “uma tendência representacional de subtrair o próprio ponto de vista impessoal, antifenomênico e especulativo que definiu o romance”.
Os defensores da autoficção poderiam retrucar dizendo que ela nem é novidade e que, muitas vezes, a narrativa em primeira pessoa serviu à denúncia — não nos esqueçamos de Frederick Douglass ou mesmo da autobiografia de Angela Davis — contra a realidade do capital. À primeira vista isso pareceria correto, mas a falácia é logo desnudada quando se percebe que essa relação imanente com a escrita, a redução do narrador ao eu provedor das experiências, traduz parte das formas privatizantes do capitalismo tardio demais. Entre Frederick Douglass e Annie Ernaux há um fosso imenso.
Tudo revestido pelo signo da rebeldia, a voz da autoficção se apresenta como reveladora da realidade, sincera e pessoal, mostrando até mesmo a abjeção do próprio cotidiano. O interessante é que ela age conforme o figurino de uma sociedade em que o comum perdeu sentido e a aceleração comunicacional determina os horizontes. A soberania do eu, sua marca e o valor carismático da primeira pessoa se unem à instantaneidade exigida pela comunicação, sem mediação nem reflexão.
Subjaz a todas essas características uma transformação operada em nossa sociabilidade e em nosso imaginário intersubjetivo. Se a forma possui autonomia em relação à sociabilidade — ao negar a imanência e, por meio do uso ficcional, apontar para além dela —, a destituição da forma pela fala imanente na autoficção desnuda de maneira radical sua subordinação ao capitalismo. Um sintoma do neoliberalismo faz do autor uma espécie de empresa, que precisa administrar seus impulsos e sua criatividade, sempre atento à produtividade e às vendas.
Tati Bernardi fez, nesse sentido, uma declaração reveladora. Sua sinceridade serve como guia: “Eu gosto muito de vender!”, disse, entre risos e aplausos da plateia, acrescentando em seguida: “E isso não deixa de ser literatura!”. Ao colocar a questão dessa forma, a autora cria uma espécie de armadilha: negar as vendas é negar leitores e, como diz o senso comum, “todo autor quer ser lido”. Autora de uma autoficção de sucesso, suas aspirações à elite econômica ou intelectual parecem ser abaladas, especialmente quando se questiona se ela realmente faz literatura.
Querer ser lido, porém, não é a mesma coisa que querer vender — embora muitos confundam os dois. E nem sempre vender significa ser lido. O velho Antonio Candido dizia da necessidade de criar leitores – e não consumidores. Quando a venda se torna o objetivo principal, isso influencia diretamente as escolhas estéticas — ou revela a falta delas. Se Balzac buscava a glória, nossos autores almejam figurar na lista de mais vendidos da Amazon. Essa conclusão nada tem de um juízo moral; a questão relevante é: quais condições possibilitaram que alguns autores fizessem essas escolhas?
É bem possível que o colapso da modernização clássica tenha arrastado consigo a própria forma-romance. Afinal, como imaginar um Bildungsroman em tempos de especialização? Como levar a sério um herói em busca de sentido na era da flexibilidade? E como sustentar a voz de um narrador quando a individualização se infiltra em todos os poros da vida social? A escrita mergulhada na experiência, a imanência na realidade porosa e o eu erguido como inscrição dessa mesma realidade parecem ser a resposta a esse quadro.
A aceleração incessante do tempo social corroeu nossas relações mais íntimas, enquanto o excesso de informação atrofiou a capacidade de observação reflexiva. O olhar, capturado pelos dispositivos eletrônicos, já não nos pertence inteiramente: ele é conduzido, automatizado, moldado por fluxos incessantes. Nossa vivência temporal, assim, se desfigura. O tempo conectado não é tempo vivido, mas tempo morto — um intervalo suspenso, alojado em um arsenal de dispositivos on-line que drenam nossa atenção por meio de imagens e nos arrastam, quase sem perceber, a deslizar o dedo em busca da próxima cena.
Assim, na escrita a busca é a identificação com o leitor. No império da algoritmização da cultura, causada pela revolução comunicacional, proliferam a desconfiança em relação à solidariedade diante do sofrimento; a leitura dos problemas coletivos a partir de um olhar subjetivo; o descrédito quanto a uma leitura objetiva dos fatos; a confissão elevada a critério; a exposição da vida privada; o discurso vitorioso do indivíduo que supera sozinho os impasses sociais; a terapia tomada como solução para desafios políticos; e o elogio da massificação em oposição a um suposto elitismo intelectual. Essas são as marcas fundamentais da escrita contemporânea.
Reflexo de uma transformação interna que reorganiza o capitalismo em escala global — pela reestruturação produtiva e pela revolução nas comunicações —, a escrita contemporânea não escapa às marcas de seu tempo e espaço. O neoliberalismo, enquanto racionalidade, condiciona a forma como as relações se desenvolvem.
Essa característica faz parte do modelo binário da algoritimização da vida social: algo que polariza de maneira radical nossa experiência de alteridade e nos faz cegos aquilo que não é nosso espelho narcísico. Essa constituição de identidades por afinidade algorítmicas também impede de maneira profunda o desenvolvimento da crítica e a capacidade de reflexão que ela desperta. Nesse quadro, para que a crítica seja possível, é preciso antes conhecer a vida intima do crítico, é pelas suas características que ele será aceito, não pela crítica que tece.
Novamente, Tati Bernardi surge como quem deixa tudo claro: na “crítica” dirigida a Bernardini, ela se exulta — “Penso com alegria na senhora Ernaux, do alto do seu Nobel de Literatura, sem fazer a mais remota ideia do que se passa nesta raivosa e pequena bolha paulistana.” Nobel é sucesso, sucesso é venda. E nós, meros mortais, permanecemos a tecer críticas “com o pensamento frustrado e desaplaudido”. Tudo retorna, inevitavelmente, à identificação do grupo que produz a crítica. Afinal, só podia ser dos frustrados uspianos.
Se já não temos uma vida profissional, mas apenas especializações; se já não nos detemos para contemplar os lugares que atravessamos, mas apenas os consumimos sob o olhar dirigido por algoritmos e afinidades programadas; então já deveríamos admitir que a aceleração tecnológica nos tolheu, de modo dramático, a capacidade de imaginar – e, com ela, a de ficcionalizar. É nesse quadro que a escrita contemporânea parece marcar a autoficção como modelo genérico de participação no mercado editorial.
Douglas Barros é psicanalista e doutor em ética e filosofia política pela Unifesp. Professor de história da UFF e docente na pós-graduação em filosofia da Unifai. Autor, entre outros livros, de Lugar de negro, lugar de branco? Esboço para uma crítica à metafísica racial (Hedra, 2019) e Hegel e o sentido do político (Lavrapalavra, 2022)