Verifico se seus cintos estão corretamente afivelados. Um monturo de cinzas. Assumo o banco do motorista e sigo a chave na ignição. Uma bomba estilhaça um quarteirão inteiro. Acerto no Waze o local de destino. Mais um pacote de comida podre é aberto. Escolho uma música. Um míssil zune sobre a cabeça de uma extensa família que vai se liquefazendo. Ponho a marcha automática no modo Drive espiando pelo retrovisor. Um senhor raquítico dá seus últimos suspiros guinchando de fome. Tomo a esquerda. Uma criança limpa as remelas escuras do olhar de mil jardas. Aguardo no sinal vermelho e viro as costas para minhas filhas vestindo uniformes coloridos. “Estão bem”, concluo. Uma mulher bebe água da poça. Viro à direita e a voz do cantor atinge o refrão melancólico. Ele diz em inglês que “quis muito ter um pai, mas só teve um papai”. Um homem é esmagado por um tanque de guerra. Esse homem tinha cinco filhos, duas meninas e três meninos. Eles testemunham a cena. Estamos quase chegando à escola, bastam mais três ruas, minhas filhas estão caladas ou ouvindo a música ou observando a paisagem de um bairro de classe média paulistano. Uma montanha de cinzas do tamanho de um prédio de seis andares. Dou seta avisando que vou estacionar. Uma família inteira se esconde dentro de um hospital, onde jornalistas e médicos trabalham sujos de sangue e insanamente. Destravo as portas, desligo o carro e dou a volta para abrir a porta traseira para minhas filhas descerem. O segurança acena para mim e para elas. Em um átimo de segundo este hospital onde uma família inteira se abrigara é explodido por completo. A família, bebês, pacientes, médicos, enfermeiras, jornalistas da Al Jazeera, todos mortos. Agradeço o segurança e volto ao carro. Enfio a chave na ignição. Gritos de horror ecoam na névoa cinza. Dou a seta e tomo meu caminho de volta à casa, enfrento um pequeno trânsito do horário do almoço. Ativistas singram o mar em embarcações repletas de ajuda humanitária, mesmo sabendo que serão presos pelo Estado de Israel e separados de seus filhos e famílias. O trânsito alivia e já adivinho o gosto do café que tomarei em minutos. Fotógrafos da ONU registram imagens dolorosas, as vértebras aparentes de um palestino famélico. Estaciono o carro, pego meus pertences e tranco o carro. Abro a porta da minha casa. A casa de dois andares reduzida a pó. Não há outra cor a não ser variações de cinza. Sigo em direção à minha cozinha e preparo meu café. Benjamin Netanyahu fala sorridente e com uma voz sombria em um podcast americano popular e de quinta categoria qual é o seu sanduíche do Mc’Donalds preferido. Pego minha xícara em direção ao meu escritório para ler as notícias do dia. Mais um hospital é destruído em Gaza, Israel admite erro estratégico. Não clico na notícia. Verifico meus e-mails. Dou um gole no café. Um menininho magro e sem camisa joga futebol com outros meninos semelhantes em meio aos destroços do que foi uma cidade. Recebo um e-mail importante, a preparação do meu próximo romance chegou o que significa que nos próximos dias terei que trabalhar arduamente nela. Uma senhora mastiga um pedaço de pão improvisado num tacho sobre uma fogueira, ela não sabe quando será a próxima oportunidade de meter algo em sua boca. Passeio pelas redes sociais. Vi que a filha de uma amiga já está falando o próprio nome, o tempo passa rápido, penso. Um dia desses ela nasceu. A tarde se arrasta fantasmagórica em Gaza, o próximo estrondo pode ser a qualquer momento. A filha da minha amiga aponta para uma sereia no livro e diz seleia. A cada quatro minutos um bebê morre na Palestina. Sinto uma ternura pela criança e ato contínuo um vazio enorme. A passagem do tempo me angustia. O amigo de uma amiga que me motivou a escrever este texto diz como nos acostumamos ao horror, como banalizamos o mal, ele diz: “Vamos supor que eu corte um dedo na sua frente, depois uma mão, depois, um braço inteiro, as pernas. Quando eu chegar na degola de um bebê você talvez não sinta mais nada”. Eu não cliquei na notícia de Gaza. A fome mata um palestino a cada seis horas em Gaza. Penso que não almocei, estou com o estômago vazio e irritado pelo café. Peço um estrogonofe pelo aplicativo. Eu não cliquei na notícia de Gaza. Recebo uma mensagem do lançamento do livro de uma amiga. Israel lança bombas cada vez mais ao sul de Gaza, encurralando-os. Para eles toda a carnificina é culpa é do Hamas. Os meninos que jogavam futebol mais cedo são atingidos por balas fatais de atiradores de elite. Ataques de Israel deixam mais de 21 mil crianças com deficiência física. Os soldados parecem jogar videogame. Trabalho no meu livro com afinco. Não me distraio nem quando minha gata mia porque viu um passarinho no quintal. Não clico na notícia de Gaza. Ainda há animais em Gaza? Um importante acadêmico israelense morre faminto. A tarde corre agora rápida como um míssil. Está quase na hora de as minhas filhas chegarem com o pai delas. Mando-as tomar banho. Esqueço de Gaza. Penteio seus cabelos. Apagamos a luz. Não cliquei na notícia de Gaza. Um genocídio que se estende há quase dois anos. É preciso dois anos para aniquilar uma canção de ninar? Canto para que elas durmam. Se essa rua se essa rua fosse minha, eu mandava, eu mandava ladrilhar. As ruas não são mais de Gaza. Essas ruas, essas casas, esses prédios, essas escolas, esses hospitais, essas vendinhas, esses consultórios, essas mesquitas, esses espaços distribuídos numa faixa estreita e comprida são cinzas da mais abjeta destruição que meus olhos já testemunharam. Fecho os olhos e demoro a dormir.