“A tradução literária é um trabalho autoral, criativo e artístico, que envolve uma série de escolhas e reflete a sensibilidade e a ética de quem traduz,” inicia o manifesto “Quem Traduziu”, publicado em junho deste ano pelo coletivo homônimo que reúne 63 tradutoras brasileiras em busca de melhores condições de trabalho e reconhecimento para a categoria. Para somar às condições de trabalho precárias denunciadas pelo manifesto, os avanços nas tecnologias de Inteligência Artificial surgem como possível ameaça ao ofício como um todo. A normalização do uso de IA nesse contexto se traduz naquilo que Irineu Franco Perpétuo, tradutor de Tolstói e Púshkin, não hesita em chamar de “a morte do tradutor”.
Se muitos ainda defendem que é ingênuo aquele que teme a substituição do tradutor de carne e osso pelo cérebro eletrônico, o mercado editorial começa a provar o contrário. Em julho deste ano, chegaram à redação da Cult os primeiros volumes de literatura a substituírem o nome do tradutor na ficha técnica pela designação “Departamento Editorial da Editora Manole com auxílio de ferramenta de inteligência artificial”. Os créditos aparecem no livro A história das espiãs na CIA: secretas e fatais, da jornalista americana Liza Mundy, publicado em abril deste ano pelo selo Amarilys da editora Manole.
Mundy é autora de cinco livros, incluindo o best-seller Code Girls: The untold story of the american women code breakers of World War II (2017) e a biografia da primeira-dama Michelle Obama Michelle: A Biography (2008). Em entrevista, ela conta que dedicou quatro anos à pesquisa e à escrita de A história das espiãs da CIA, que investiga a história de três gerações de mulheres da Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos. “A escrita exigiu uma quantidade enorme de reflexão e esforço para apresentar de forma clara essa história complicada, transmitir sua importância e sintetizar informações complexas que recebi. Foi um trabalho muito laborioso, em tempo integral”, conta.
Quando recebeu a notícia de que seu livro teria sido traduzido no Brasil com auxílio de ferramentas de IA, Mundy agradeceu o alerta e logo fez contato com sua agente de vendas. Publicado originalmente em 2023, quando o uso da tecnologia ainda não era prática corrente no mundo editorial, o livro de Mundy teria sido um dos últimos comercializados pela agência com base em um modelo de contrato de vendas que não continha uma cláusula proibindo o uso de tecnologias de IA no processo editorial. Ela conta que a inclusão da cláusula é hoje a norma na agência responsável por sua publicação, originalmente realizada nos Estados Unidos pela Penguin Random House.
“Foi uma surpresa para a agência descobrir que meu trabalho teria sido traduzido por IA, mas de fato não foi uma violação de contrato. A resposta imediata da minha agente foi: não permitimos IA em tradução porque queremos que humanos sejam empregados nessa etapa do processo editorial. Concordo com isso, prefiro que humanos façam a tradução, pois trazem sua própria sensibilidade e compreensão do texto. Não sou contra a IA em geral, mas sei que elas não fazem um trabalho satisfatório,” afirma.
Amarilys Manole, CEO do Grupo Manole, diz à reportagem que “o livro não foi inteiramente traduzido por inteligência artificial”. Autodeclarada “entusiasta em IA”, conforme seu perfil no LinkedIn, a editora insiste na informação da ficha técnica: que a tradução tenha sido feita pelo departamento editorial da Manole. “Nós temos mais de 30 profissionais como revisores e tradutores, pessoas com formação tanto em produção editorial como em letras, muitos com mestrado e doutorado. Temos internalizado os processos editoriais e usado a ajuda de IA no processo. Mas não eliminamos nenhum profissional. Inclusive, gastamos mais de 300 mil reais em tradução por ano”, completa.
Uma das principais reivindicações das tradutoras do coletivo “Quem traduziu”, no entanto, é que sua autoria seja reconhecida no processo de adaptação do texto estrangeiro. Se a aparição do nome na ficha técnica é óbvia, a defesa do coletivo é: “que o nome de quem traduziu conste na capa e que o crédito da tradução seja mencionado em todos os materiais de divulgação produzidos pelas editoras”. Na direção contrária, a Amarilys defende que optou por não incluir os nomes dos tradutores envolvidos na tradução e revisão pois “eles são funcionários contratados da empresa e trabalham full time na editora”.
Amarilys Manole destaca a importância da transparência no emprego de ferramentas de IA no processo de tradução, lembrando que prêmios literários como o Jabuti não autorizam o uso dessas tecnologias em livros candidatos. Sevani Matos, presidente da CBL, diz em entrevista que entende “que a inteligência artificial pode ser uma ferramenta muito importante para autores e editoras”, destacando: “no caso dos Prêmios Jabuti e Jabuti Acadêmico, nossa diretriz é clara: atuamos para valorizar a criação humana. Obras produzidas integralmente por IA ou com o uso de IA podem concorrer apenas em condições específicas previstas em regulamento, justamente para manter a transparência e a integridade das premiações”.
Outro campo que preocupa autores no emprego de tais tecnologias diz respeito aos direitos autorais. Diretora da Associação Brasileira de Direitos Reprográficos, Amarilys Manole garante que a IA usada pela editora, DeepL, é um ambiente protegido que não armazena ou compartilha dados dos textos inseridos para tradução. A empresa de tecnologia diferencia seu plano pago do gratuito justamente nesse ponto: enquanto no primeiro há garantia contratual de que dados não são usados para treinar os modelos de IA, o último autoriza o uso.
Do ponto de vista da proteção aos direitos autorais, a CBL tem se posicionado “sempre em defesa da proteção jurídica e da justa remuneração dos autores e detentores de direitos”, segundo Matos. Tanto Amarilys Manole quanto Sevani Matos, no entanto, debatem o tema com otimismo: para Manole, “a inteligência artificial, é um braço de ajuda do ser humano”; para Matos, “a IA pode ser uma ferramenta muito útil, capaz de trazer agilidade e produtividade”.
Por outro lado, o tradutor Irineu Franco Perpétuo não cede: “A IA é a mais grave ameaça que já houve ao ofício de tradutor. Existe o risco real de tradutores físicos serem substituídos pela IA”. Ele relata que colegas de trabalho buscam por oportunidades, cada vez mais escassas, mas apenas encontram cargos de supervisão e revisão de traduções de IA. “Se confirmar essa tendência, é a morte do tradutor.”
A solução que ele e outros trabalhadores da área levantam diz respeito à identificação ainda mais clara da opção pela tecnologia: “Vi muita gente dizendo nas redes sociais que não compraria ou não comprará livros traduzidos por IA. Então, o que proponho é algo como o que acontece em maços de cigarros. Que haja um selo bem visível na capa do livro dizendo que aquilo foi feito por IA”, sugere Perpétuo.
Liza Mundy não culpa seus agentes literários pelo emprego de IA na sua tradução, e agradece com entusiasmo a editora Amarilys pela inclusão de seu livro no catálogo: “eles me enviaram o livro e o promoveram. Agradeço que meu trabalho esteja sendo traduzido, além de valorizar o esforço de torná-lo disponível para um país e um público tão grandes”. Mas destaca sua preferência: “quero que os leitores tenham a melhor versão possível do meu trabalho”, ciente de que esse trabalho só pode ser feito por humanos.