No ensaio Em cada língua estão fincados outros olhos, Herta Müller, vencedora do Nobel de Literatura em 2009, narra como foi sua infância marcada pelo regime autoritário de seu país. A escritora lembra o silêncio dos campos, onde “as palavras só acompanhavam o trabalho quando várias pessoas faziam algo em conjunto e um dependia do movimento do outro. Mas mesmo aí, nem sempre” (tradução de Rosvitha Friesen Blume, Biblioteca Azul, 2013). O medo de falar, de se comprometer, se aliava ao trabalho pesado para “desativar” a cabeça. Diante daquela mudez coletiva, a menina que acompanhava a avó no trabalho chegava então à conclusão de que aquilo que observava era “o que acontece quando pessoas desaprendem a fala”. Portanto, ao final de um dia de trabalho “elas terão esquecido as palavras”.
O silêncio comporta várias dimensões e significados. Mas sua totalidade, para nós, é impossível. A câmara anecóica exemplifica bem esta afirmação. Se uma pessoa é colocada numa dessas salas projetadas para isolar fontes internas e externas de ondas sonoras e eletromagnéticas, tal como a Building 87 da Microsoft, ela poderá ouvir o próprio sangue fluir ou movimento de seus olhos. Inicialmente, existe uma curiosidade por esse entorno tão distinto da realidade cotidiana e pela revelação dos fluidos que constituem seu corpo. Porém, com o passar dos minutos, a sensação de aprisionamento em si mesmo e da consciência corpórea se torna insuportável, levando o indivíduo à loucura, literalmente.
Aliás, o silêncio já foi usado como meio para provocar sofrimento psicológico em inúmeras situações e por diversos países. Os Estados Unidos, entre outros, já realizaram esse tipo de procedimento conhecido como “tortura branca”. Um inferno semelhante ao que Sartre concebeu na sua célebre peça Huis clos (1944).
Não por acaso, o silêncio marca também as narrativas distópicas ficcionais. Em 1984, de George Orwell, por exemplo, as personagens, vigiadas de perto pelo Grande Irmão, precisam cuidar do que falam e para quem falam. Há cartazes espalhados em todos os lugares anunciando: “O GRANDE IRMÃO ESTÁ DE OLHO EM VOCÊ”. Nas casas, as “teletelas” captavam todo o som produzido que ultrapassasse o nível de um sussurro muito discreto, como se lê no livro. O pensamento também estava sempre sob a ameaça da Polícia do Pensamento. Nesse ambiente de constante ameaça o melhor é calar.
O Grande Irmão, hoje, pode ser os grupos, que punem quem ousa falar o que eles não querem ouvir. Cabe lembrar aqui Simone Weil. No livro O enraizamento (tradução de Clarisse Ribeiro, Editora Vozes, 2023), ela afirma:
De uma maneira geral, todos os problemas concernentes à liberdade de expressão se esclarecem ao se estabelecer que a liberdade é uma necessidade da inteligência e que a inteligência reside unicamente no ser humano, considerado em si mesmo. Não há exercício coletivo da inteligência. Por isso nenhum grupo pode legitimamente pretender a liberdade de expressão, porque um grupo não tem, nem minimamente, essa necessidade.
Muito pelo contrário, a proteção da liberdade de pensar exige que seja proibido pela lei que um grupo expresse uma opinião. Pois quando um grupo comece a ter opiniões, ele tende inevitavelmente a impô-las a seus membros.
Cedo ou tarde os indivíduos se veem impelidos, com um grau de rigor maior ou menor, sobre um número de problemas mais ou menos consideráveis, de expressar opiniões opostas àquelas do grupo, ao menos que saiam dele. Mas a ruptura com um grupo de que se é membro traz sempre sofrimentos, pelo menos um sofrimento sentimental. E na mesma medida em que o risco, a possibilidade do sofrimento, são elementos saudáveis e necessários para ação, eles também são coisas doentias para o exercício da inteligência. Um temor, mesmo leve, sempre provoca esse abatimento, seja enrijecimento, segundo o grau de coragem, e nada mais é preciso para distorcer o instrumento de precisão extremamente delicado e frágil que a inteligência constitui. Mesmo a amizade, nesse quesito, é um grande perigo. A inteligência é vencida assim que a expressão dos pensamentos é precedida, explicitamente ou implicitamente pela pronome “nós”. E quando a luz da inteligência se obscurece, ao fim de um tempo bem curto, “o amor pelo bem se perde”.
Mas nem sempre se cala por medo. O silêncio também pode ser usado como moeda de troca e que quem silencia tem sempre muito a ganhar.
Hoje parece ter surgido uma “nova” modalidade de silêncio, na qual ele não é mais imposto nem serve como moeda de troca, pois o silenciado não tem nada a ganhar, muito pelo contrário. Nessa nova modalidade, o silêncio vem acompanhado de uma promessa de paz e de retorno ao paraíso perdido da infância. É assim que as chupetas, ou bicos, têm voltado à boca dos adultos.
Mas quem estaria por trás dessa nova tendência que tem se popularizado mundo afora, principalmente nos Estados Unidos e na China? Certamente não é um Grande Irmão, mas uma “Grande Mãe”, igualmente inocente, que acalenta e pacifica. A chupeta cala o choro e o protesto. Ela tranquiliza (a palavra chupeta em inglês é pacifier) e induz ao sono. Assim, enquanto os adultos dormem ou cochilam a “Grande Mãe” age.
Ela não precisa se impor, ela não precisa ganhar protagonismo. A “Grande Mãe” seduz com imagens bonitas, com gente estilosa usando chupetas de grife. As chupetas não são vapes, que são nocivos à saúde. Pode-se pensar então nas chupetas, dialogando muito rapidamente com a psicanalista Melanie Klein, como, num primeiríssimo momento, a imagem de um seio bom, que atende a todas as necessidades do adulto. Quem sabe, ao se frustrarem com o objeto de consumo e o seio lhes parecer ruim, acordem finalmente de seus sonhos “tranquilos”.
Mas, então, talvez para muitos já seja tarde demais e eles se vejam transformados em insetos repugnantes, como o personagem de Kafka.