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- Author, Matt Murphy, Kayleen Devlin e Lucy Gilder
- Role, BBC Verify
O presidente americano Donald Trump foi amplamente criticado por parte dos especialistas em saúde, por tentar afirmar que existiria uma ligação entre o analgésico Tylenol — que pode ser comprado sem receita — e o autismo.
Acompanhado de seu secretário de Saúde, Robert F. Kennedy Jr., Trump declarou que os médicos serão aconselhados em breve a não recomendar às mulheres grávidas o uso do medicamento, conhecido como paracetamol no Brasil e no Reino Unido, entre outros países.
Especialistas da área médica questionam as afirmações do presidente.
O Colégio Americano de Ginecologistas e Obstetras declarou que o anúncio é “preocupante” e não se baseia em “dados confiáveis”. Já a Sociedade Nacional de Autismo do Reino Unido qualificou a declaração de Trump como “perigosa, contra a ciência e irresponsável”.
A BBC Verify (o setor de checagem de fatos da BBC) examinou algumas das alegações apresentadas por Trump e Kennedy, durante sua entrevista coletiva na Casa Branca.
Trump está certo ao dizer que os diagnósticos de autismo nos EUA estão aumentando?
Durante o evento, Trump citou diversas estatísticas que, segundo ele, demonstram que os diagnósticos de autismo nos Estados Unidos teriam aumentado rapidamente ao longo das últimas duas décadas.
O presidente americano afirmou que a incidência aumentou de cerca de “um a cada 10 mil… provavelmente, 18 anos atrás” para “um a cada 31” em 2025.
O índice, de fato, aumentou nos últimos 18 anos, mas nem de longe atinge os números mencionados por Donald Trump (“um a cada 10 mil há 18 anos”).
Não há números disponíveis para 2007 (o ano mencionado por Trump). Mas, em 2006, os CDC estimaram que a incidência de autismo entre a população dos Estados Unidos era de 1 a cada 110 pessoas. E, em 2008, era de 1 a cada 88.
A maioria dos especialistas afirma que o aumento dos índices de autismo pode ser principalmente atribuído às mudanças da forma de diagnóstico da condição, além do seu maior reconhecimento e da maior quantidade de pessoas que passam pelos exames.
Trump também afirmou, no domingo (21/9), que o Estado americano da Califórnia tem um “problema mais grave” com o autismo do que outros Estados pesquisados pelos CDC.
Os CDC estimaram que, em 2022, cerca de 1 a cada 12 meninos de oito anos na Califórnia tem autismo — o índice mais alto para meninos do estudo, em 16 Estados.
Mas a agência destacou que o Estado promove uma iniciativa local, treinando centenas de pediatras para “selecionar e encaminhar as crianças para avaliação o mais cedo possível, o que poderá resultar em maior identificação” do autismo.

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A vacina tríplice viral deveria ser administrada separadamente?
Outra afirmação de Trump diz respeito aos efeitos da vacina tríplice viral, contra caxumba, sarampo e rubéola.
O presidente americano declarou que a vacinação “deveria ser separada” e não combinada em uma única aplicação. “Parece que, quando você as mistura, pode surgir um problema”, segundo ele.
Especialistas receiam que, se os pais deixarem de vacinar seus filhos devido às afirmações infundadas do presidente americano, haverá o risco de ressurgimento de doenças como o sarampo.
A ideia já desmentida de que as vacinas na infância estariam relacionadas ao autismo ganhou a atenção do público pela primeira vez em 1998, com um artigo publicado na revista médica The Lancet, de autoria do médico britânico Andrew Wakefield.
Descobriu-se posteriormente que Wakefield detinha conflitos de interesse.
Alguns dos participantes do teste, por exemplo, estavam relacionados a uma ação judicial contra as empresas produtoras de vacinas. E o Conselho Médico Geral do Reino Unido (GMC, na sigla em inglês) também concluiu que ele falsificou resultados.
O documento da pesquisa foi recolhido e o GMC cancelou o registro de Wakefield em 2010.
Diversos estudos realizados desde então não encontraram relação entre a vacina tríplice viral e o autismo.
O mais recente deles é um estudo dinamarquês de 2019 que examinou 657.461 crianças. A conclusão foi que os dados não sustentam que a vacina tríplice viral possa causar ou despertar o autismo.
No seu website, os CDC dos Estados Unidos recomendam a administração às crianças de duas doses da vacina tríplice viral. A primeira dose deve ser fornecida aos 12-15 meses e a segunda, entre quatro e seis anos de idade.
No Brasil, o Ministério da Saúde recomenda a primeira dose da vacina tríplice viral para crianças com 12 meses de idade. Já a segunda dose “deve ser administrada aos 15 meses, por meio da vacina tetraviral, que reforça a proteção contra sarampo, caxumba e rubéola (segunda dose da tríplice viral) e inclui a primeira dose contra a varicela (catapora)”.

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Neste ano, os Estados Unidos presenciaram o maior índice de casos de sarampo em mais de três décadas. Segundo os CDC, até o momento, foram confirmados 1.491 casos e três pessoas morreram.
“O presidente Trump não produziu evidências de que o cronograma atual de imunização nos Estados fosse prejudicial e de que a administração da vacina tríplice viral fosse insegura”, declarou o professor de saúde infantil David Elliman, do University College de Londres.
“Os defensores de uma relação entre a vacina tríplice viral e o autismo mencionam a pesquisa de 1998, publicada no The Lancet, cujo primeiro autor foi Andrew Wakefield”, explica Elliman.
“Na verdade, os autores do estudo declararam claramente no artigo que eles não haviam comprovado essa relação, mas sugeriram a realização de novas pesquisas. Estas pesquisas foram feitas e não encontraram evidências de nenhuma relação.”
Os especialistas também afirmam que permitir um intervalo entre as vacinas deixa as crianças mais propensas a contrair doenças nesse ínterim ou a perder a vacinação, no caso de múltiplas aplicações.
Os índices de autismo são mais baixos entre os grupos amish?
Trump mencionou as pessoas amish como um grupo nos Estados Unidos que “virtualmente não tem autismo” na sua comunidade.
Os grupos amish vivem tipicamente em comunidades remotas. Eles se recusam a adotar muitos recursos da vida moderna, o que pode incluir uma suspeita em relação aos produtos farmacêuticos atuais.
Trump sugeriu, sem fornecer evidências, que a baixa taxa de uso de Tylenol no grupo poderia ter levado a uma menor incidência de autismo.
Existem relativamente poucos estudos sobre a incidência de autismo na comunidade amish. Muitas crianças são diagnosticadas na escola, mas a maioria delas deixa os estudos após o oitavo ano, com cerca de 14 anos de idade.
“Acho que é muito, muito improvável que não existam pessoas autistas entre os amish”, afirmou à BBC a professora de neurociências cognitivas Eva Loth, do King’s College de Londres.
“A questão é quantos estudos populacionais foram realizados com os amish? As pessoas amish costumam buscar diagnóstico?”, pergunta ela.
“Ou seja, os números relatados podem ser baixos por diversas razões, mas isso não significa que não existam casos [de autismo].”
Em um estudo realizado em 2010, um grupo de geneticistas concluiu que o autismo ocorre em cerca de uma a cada 271 crianças amish. A pesquisa examinou 1.899 crianças em duas grandes comunidades amish, nos Estados americanos de Ohio e Indiana.
Mas é preciso observar que as pesquisas sobre este tema são limitadas e não encontramos nenhum estudo que indique uma eventual relação entre as baixas taxas de imunização e o diagnóstico de autismo entre as pessoas amish.
Trump fez uma afirmação similar sobre os níveis de autismo em Cuba. Ele defendeu que o motivo seria o baixo abastecimento de Tylenol na ilha. Mas não se sabe ao certo quais seriam as bases para a avaliação do presidente americano.
A BBC Verify não encontrou estatísticas oficiais cubanas a respeito e a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou que “a incidência de autismo, em muitos países de baixa e média renda, é desconhecida”.
O que Trump já disse sobre o autismo?
Há quase 20 anos, Trump vem expressando, de tempos em tempos, preocupação com o aumento da incidência de autismo entre as crianças americanas.
Em 2007, ele sugeriu publicamente, pela primeira vez, acreditar que haveria uma relação entre as vacinas e o aumento da incidência.
O presidente expressa interesse pelo trabalho de Kennedy, pelo menos, desde 2017. Naquele ano, o atual secretário da Saúde declarou que Trump havia solicitado a ele que liderasse uma força-tarefa sobre a segurança das vacinas.
Sete anos depois, Kennedy (então com cerca de 5% nas pesquisas eleitorais) retirou sua candidatura à Presidência dos Estados Unidos, passando a apoiar Donald Trump.
Durante a campanha eleitoral, vazou para o público uma ligação entre Trump e Kennedy, na qual o republicano tentava convencer o candidato independente a apoiá-lo para a Presidência.
Na ocasião, Trump foi ouvido discutindo afirmações já desmentidas sobre os riscos à saúde das vacinas na infância.
Depois da eleição, Trump anunciou Kennedy para liderar o Departamento de Saúde e Serviços Humanos, com a missão de “tornar a América saudável novamente”.
Mas, no seu primeiro mandato, Trump, na verdade, apoiou algumas campanhas de vacinação. Durante um surto de sarampo ocorrido nos Estados Unidos em 2019, ele declarou que as pessoas “precisam tomar vacina. A vacinação é muito importante.”
Além disso, foi o governo Trump que supervisionou o rápido desenvolvimento e os primeiros lançamentos das vacinas contra a covid-19.