Renato Parada
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Enquanto o mercado de luxo tradicional enfrenta uma crise global por não conseguir mais entregar seu principal atributo – a distinção –, novas moedas de status emergem para definir o que é ser rico hoje. Se antes a ostentação se media por objetos, o futuro da diferenciação, segundo o antropólogo Michel Alcoforado, está em bens intangíveis: o tempo, o silêncio e, acima de tudo, a paz. “Talvez essa seja a grande tendência da próxima década”, aposta ele.
Para se consolidar como um tradutor dos códigos de luxo no Brasil, Alcoforado dedicou 15 anos a um mergulho profundo no universo dos 0,01% mais ricos do país — jornada essa que hoje resultou no livro Coisa de Rico: a vida dos endinheirados brasileiros (Editora Todavia), lançado em agosto e já best-seller. O processo, no entanto, foi complexo. Na prática, conquistar a confiança dessa classe social exigiu uma transformação, traduzida em investimentos no guarda-roupa, códigos de etiqueta e até um intenso processo de emagrecimento. “Estudar os ricos é um dilema, porque a elite se define justamente pela manutenção da distância”, conta.
Sua aproximação com o topo da pirâmide financeira e social os levaram a uma série de conclusões sobre o mercado e o consumo de luxo. Para o antropólogo, a busca incessante por diferenciação deixou os carros e bolsas em segundo plano e elegeu novos territórios de disputa. O primeiro é a viagem, não apenas como lazer, mas como ferramenta de aquisição de capital cultural e mental. O segundo, o corpo, como ferramenta de alta performance em maratonas e triathlons – símbolo de uma “vida racionalizada”.
“O turismo do silêncio não para de crescer. Vou para não ter celular, nem barulho”, analisa o antropólogo. “Como estão as massas? Enlouquecidas e com medo do amanhã”.
Em conversa com a Forbes, o fundador do Grupo Consumoteca vai além do livro e decifra o que essa busca por paz, tempo e desconexão revela sobre o presente e o futuro da sociedade brasileira e do luxo – e por que, no Brasil, as “coisas” ainda falam tão alto. Confira os melhores trechos da entrevista a seguir:
De onde veio seu interesse pelo luxo e pelas elites brasileiras?
Michel Alcoforado: Na antropologia, dizemos que a pesquisa nos escolhe. Meu interesse nasceu de um incidente em Miami, quando vi um casal de brasileiros, que me pareceram de classe média, dizer à imigração que não levavam malas porque comprariam tudo lá, inclusive as malas. Isso me fez questionar: quem é rico no Brasil? Percebi que o dinheiro é só parte do processo. Depois de ganhar dinheiro, você precisa trabalhar arduamente para convencer os outros de que é rico, para poder gozar dos benefícios que essa percepção traz. A pesquisa foi antropológica, com observação participante, que é observar tão de perto que você acaba participando. O dilema é que as elites mantêm distância das massas. Então, eu, que não era rico, precisei fazer todo um trabalho de transformação em mim mesmo para que eles se sentissem menos incomodados com a minha presença e eu pudesse me aproximar.
Desde que começou a pesquisa, em 2010, qual foi a principal transformação na forma como a elite busca se distinguir hoje?
A digitalização e a internet geraram uma grande bagunça. O conhecimento que era um marcador de diferença – qual era o relógio da moda, o destino de viagem – e que antes exigia comprar revistas de luxo ou se matricular em escolas de etiqueta, hoje está disponível para todos nas redes sociais, seja pelo trabalho das influenciadoras ou das próprias marcas. Outro ponto é a onipresença de cópias de alta qualidade, que enfraquece o poder de distinção dos logos. Como resultado, vemos o crescimento de marcas sem logo, que valorizam a narrativa dos materiais e vendem “pouco para poucos”.
“Como mostrar que se é rico no Brasil? A gente compra coisas. Por isso o nome do livro é “Coisa de Rico”. Nós apostamos nas coisas para inventar quem somos. Pode ser o celular novo, o carro, os amigos ou até o corpo atlético. Por isso o minimalismo não deu certo aqui”
Como a elite tradicional, ou “raiz”, se relaciona com as redes sociais?
Todas as elites no Brasil estão preocupadas com alguma forma de ostentação. Essa é a maneira estratégica de dar visibilidade a seus hábitos de consumo para que os outros entendam quem você é. Os novos ricos, por não terem tempo de administrar para quem querem se mostrar, usam uma ostentação mais clássica, que “grita”, como o carro importado de cor chamativa ou a bolsa cravejada de logos. As elites tradicionais sabem para quem e como dar visibilidade. O perfil fechado nas redes sociais não é para todo mundo, eles sabem muito bem quem joga para dentro. O “low profile” é, na verdade, “high profile” para quem entende aqueles códigos. Uma bolsa da Bottega Veneta, sem logo, exige um conhecimento de mercado muito mais aprofundado para ser reconhecida do que uma bolsa com logos aparentes.
Então, ser “low profile” é um luxo?
Sim. A pessoa não precisa se mostrar para a massa, pois já gasta energia apostando em coisas que comunicam diferença, mas de forma menos óbvia. O nível mais transgressor é o da pessoa tão rica que nem precisa mais jogar esse jogo, como os bilionários que usam roupas simples. Isso pode parecer um sinal de simplicidade, mas também é um sinal de dominação de classe, pois mostra que eles nem precisam perder tempo com algo que nós, “mortais”, precisamos.
No livro, você compara o bilionário americano Warren Buffett com os ricos brasileiros. Quais as principais diferenças?
O que sempre chocou meus entrevistados era o fato de Buffett morar na mesma casa há décadas, mesmo sendo um dos homens mais ricos do mundo. A pergunta que eles faziam era: “mas o que ele fez com tudo que comprou depois que ficou rico?”. Isso revela tudo. Nos EUA, a riqueza é chancelada por outros marcadores: quanto dinheiro você tem – e as listas da Forbes são geniais em mapear isso –, o poder que você exerce e o quanto você é reconhecido e admirado pela sociedade, o que explica a força da filantropia lá. Ter alguém dizendo que você é rico já entrega a performance que você precisa. Por isso, os ricos americanos não são tão obcecados em “coisas” como os brasileiros.
No Brasil, o dinheiro é um tabu, não se fala sobre ele. Então, como mostrar que eu sou rico aqui? A gente compra coisas. Por isso o nome do livro é “Coisa de Rico”. Nós apostamos nas coisas para inventar quem somos. Pode ser o celular novo, o carro, os amigos que você ostenta ou até o corpo atlético, pensado milimetricamente. Por isso o minimalismo não deu certo aqui. Nós somos maximalistas, precisamos das coisas para dizer quem somos, e como elas se popularizam e perdem seu valor simbólico rápido, precisamos comprar de novo constantemente.
A Geração Z, no entanto, parece valorizar mais a experiência do que a posse. Isso muda o jogo?
Não é uma coisa ou outra, são as duas. A Geração Z está preocupada com experiências porque, em um mundo individualista, a autenticidade é o que mais importa, e nada te dá mais autenticidade do que as experiências que você acumulou – quando digo os hotéis, museus e destinos que visitei, estou dizendo que sou melhor que você sem precisar falar. E isso vira um novo marcador de status, um “capital cultural”. Mas no Brasil, somos tão apaixonados por coisas que coisificamos até a experiência, como a necessidade de tirar fotos em viagens e postar. O ponto em que a Gen Z realmente difere das outras gerações é que têm menos problema em usar cópias. Um baby boomer ou millennial sai de casa com medo de que alguém descubra que sua bolsa é falsa. A Geração Z, para marcas que não entregam uma autenticidade muito forte, acha até cool usar uma cópia. A exceção são marcas como a Balenciaga, que vendem a autenticidade pronta. Nela, eles acreditam que vale a pena investir.
Falando em tendências, vimos a febre do pistache e do boneco Labubu. Como esses fenômenos se explicam?
As elites brasileiras têm um duplo movimento de diferenciação, o que é bem interessante. Ou elas olham para fora, antecipando tendências e trazendo coisas de outros países – é o famoso “é importado” –, ou olham para os pobres, se apropriando de elementos da cultura popular para se distinguir. O Labubu se encaixa primeiro caso. Ele é um item diferenciador: se todo mundo tem a Bolsa X, eu tenho a Bolsa X com o meu Labubu. Já o pistache é o exemplo perfeito do segundo movimento, que é acelerado por um grande motor da sociedade brasileira: a inveja. O pistache era “coisa de rico”, algo que você tinha que ir ao Oriente Médio para comer com qualidade. Quando as elites começam a consumir, a classe média, que sempre observou isso, começa a copiar. Então aquele produto desce na pirâmide social com uma velocidade que não é comum em outras partes do planeta. O resultado é que a gente “pistachiza” tudo.
“O mercado de luxo global não está conseguindo entregar seu principal atributo: a distinção. O que aconteceu com o luxo nos últimos anos é o mesmo que aconteceu com o mercado de celulares. Ele não está inovando a ponto de convencer as pessoas de que vale a pena sair de casa para comprar o novo”
A ascensão de narrativas sobre “trânsfugas de classe”, como a do escritor Édouard Louis, engaja muito. Por quê?
“Trânsfuga de classe” nada mais é do que o nosso famoso “emergente”. Essas histórias nos fascinam porque a ascensão social é o principal mandamento imposto a qualquer família de classe média no Brasil. O sonho de ganhar mais dinheiro que os pais é algo inculcado em toda criança. Além disso, ao contrário de países como a França, onde há muitos livros falando mal de ricos, no Brasil nós somos fascinados por eles. Queremos saber o que fizeram para ficar ricos e como vivem para, quem sabe, vivermos da mesma forma.
Qual a principal “coisa de rico” hoje, o grande marcador de status em 2025?
Eu diria que são dois territórios. A viagem continua sendo um campo de disputa importantíssimo. É só ver a competição dos bancos de quem coloniza mais o Terminal 3 [do Aeroporto de Guarulhos], de quem tem a maior e melhor sala VIP. Mas a principal novidade é o exercício físico. Depois que os mais ricos começaram a correr na esteira das academias chiques, eles entraram para as maratonas. Após fazerem todas as maratonas principais do planeta, vieram os triathlons. E agora os Ironmans – não sei qual é o limite. Mas é um grande movimento de constatação. Há vários estudos que mostram que a preocupação com o exercício físico aumenta com o dinheiro que você ganha. Não é uma questão de ter mais conhecimento, mas porque esse corpo se transforma num ativo importantíssimo. O corpo magro e atlético vira um sinal de uma vida racionalizada e controlada, que é um dos traços mais importantes de distinção para as elites.
Relatórios apontam uma contração no mercado de luxo. Essa crise é um sintoma de uma mudança cultural mais profunda? Qual é o futuro do luxo?
Esse cenário de crise é mais forte fora do Brasil do que aqui. No Brasil, o mercado continua crescendo, porque os brasileiros são “enlouquecidos por coisas” e não há outro caminho para gerar distinção que não seja comprando o último modelo. Mas, de forma global, a principal questão é que o mercado de luxo não está conseguindo entregar seu principal atributo: a distinção. O que aconteceu com o luxo nos últimos anos é o mesmo que aconteceu com o mercado de celulares. Nos primeiros iPhones, a inovação era tão grande que a troca anual era justificada. Hoje, o novo modelo é tão parecido com o anterior que não entrega um marcador de diferença forte o suficiente para fazer o consumidor gastar esse dinheiro.
O mercado de luxo vive isso hoje. Ele não está inovando a ponto de convencer as pessoas de que vale a pena sair de casa para comprar o novo. Mas isso é cíclico, passa. Daqui a pouco volta.
“O turismo do silêncio, os retiros, a desconexão e a espiritualidade devem ganhar uma importância enorme como forma de distinção”
E para a próxima década, qual será a grande tendência?
Eu apostaria novamente na viagem, mas conectada a outros territórios: a viagem com tecnologia, com inteligência (bagagem cultural) e, principalmente, com saúde mental. O turismo do silêncio, os retiros, a desconexão e a espiritualidade devem ganhar uma importância enorme como forma de distinção. Como as massas estão enlouquecidas e com medo do amanhã, a paz talvez seja a grande tendência – e o maior luxo – da próxima década.