Nos últimos meses, uma disputa técnica e ideológica tomou conta da comunidade Bitcoin. O conflito, que pode parecer restrito a programadores e operadores de nós, ganhou relevância porque coloca em choque duas visões sobre o futuro da rede.
De um lado está o Bitcoin Core, a implementação mais usada e considerada referência para a validação de transações na rede. Do outro, cresce a adesão ao Bitcoin Knots, uma versão alternativa criada a partir do Core que defende políticas mais rígidas de filtragem de dados.
O embate se acirrou após uma atualização do Core que mexeu em parâmetros de uso do OP_RETURN, área do script de transações que permite armazenar informações na blockchain. Para os defensores do Core, a mudança representa neutralidade e evolução. Já os apoiadores do Knots enxergam nela uma ameaça: a possibilidade de transformar o Bitcoin em depósito de dados arbitrários, longe da função original de moeda digital.
O pano de fundo é mais profundo. O Core, com sua filosofia de neutralidade, entende que cabe ao mercado de taxas definir se usos alternativos do blockchain valem a pena ou não. Já o Knots, mantido principalmente pelo desenvolvedor Luke Dashjr, aposta em filtros para bloquear o que considera “spam” de transações.
Ao endurecer as regras de propagação de dados, essa implementação busca preservar a rede de usos abusivos, já que tem crescido o uso por memecoins e shitcoins para especulação, mas acaba abrindo margem para acusações de censura e centralização. A disputa, portanto, extrapola a questão técnica: trata-se de um debate sobre quem decide os limites do Bitcoin e qual deve ser o papel de cada nó na rede.
Por que o mundo cripto está em briga?
A tensão atual começou com a versão 30 do Bitcoin Core, que removeu o limite padrão de 80 bytes para o OP_RETURN. Até então, essa barreira desestimulava o uso exagerado de dados embutidos em transações. A mudança foi defendida por desenvolvedores do Core como uma atualização natural, já que novos usos legítimos podem demandar mais espaço — como registrar provas criptográficas ou hashes de documentos. Mas a reação foi imediata. Para críticos, essa decisão abre espaço para congestionamento da rede com informações irrelevantes e até mesmo conteúdo ilícito gravado de forma permanente na blockchain.
Nesse ponto, o Knots encontrou terreno fértil. Ao reforçar sua política de filtragem e rejeitar transações vistas como não monetárias, o cliente se tornou o símbolo de resistência a essa flexibilização. Em poucos meses, ganhou participação expressiva na rede: já representando entre 15% a 20% dos nós públicos.
O crescimento chamou atenção de figuras históricas do ecossistema, como Cobra, mantenedor do site Bitcoin.org, que alertou para o risco de o Knots ameaçar o status do Core como implementação de referência. Já os defensores do Knots acusam o Core de abrir mão dos princípios monetários em nome de interesses externos e de uma suposta captura corporativa.
O debate ganhou ainda mais contornos políticos com a publicação de textos críticos, como o do engenheiro Jameson Lopp, que acusou o projeto de ser dependente demais da figura de Dashjr e, portanto, pouco descentralizado.
No artigo, Lopp ressalta que a força do Bitcoin sempre esteve na ausência de líderes definidos e na diversidade de implementações, o que reduz o risco de falhas críticas ou de decisões arbitrárias. Segundo ele, ao concentrar grande parte da responsabilidade em um único desenvolvedor, o Knots cria justamente o tipo de vulnerabilidade que o Bitcoin nasceu para evitar. Em suas palavras, trata-se de um projeto que não apresenta a maturidade ou a robustez necessárias para ser considerado uma alternativa séria ao Core.
Ele também alerta que o histórico de Dashjr inclui episódios de falhas de segurança e propostas polêmicas, o que reforça a percepção de que o Knots é mais uma ferramenta de protesto do que uma solução de longo prazo. Para Lopp, apoiar o Knots pode até fazer sentido como forma de sinalizar insatisfação com os rumos do Core, mas confiar nele como implementação majoritária seria arriscar a estabilidade e a credibilidade de toda a rede.
As acusações cruzadas não se limitam a questões técnicas. Discussões sobre a contagem real de nós Knots, suspeitas de manipulação de estatísticas e até vazamentos de mensagens privadas envolvendo propostas de hard forks inflamaram ainda mais os ânimos. Nas redes sociais, não é raro ver usuários classificando o outro lado como traidor dos princípios originais do Bitcoin, o que mostra que o debate, antes restrito a listas de e-mail e fóruns de código, agora ocupa espaço central no imaginário da comunidade.
Por que essa briga é importante?
O que está em jogo é muito mais do que o tamanho de um campo de dados. A disputa entre Core e Knots toca no cerne da governança do Bitcoin. Se a neutralidade do Core for mantida, a rede segue aberta a usos diversos, com a garantia de que o mercado de taxas filtrará naturalmente os excessos.
Por outro lado, se a visão do Knots se espalhar, pode-se consolidar um modelo de “controle local”, em que cada nó define barreiras mais duras contra transações não monetárias. A consequência disso seria um ambiente menos uniforme, com risco de fragmentação na propagação de transações.
Essa divisão também coloca em xeque a descentralização. O Core é acusado de concentrar decisões em poucos mantenedores, enquanto o Knots depende fortemente da liderança de um único desenvolvedor. Se um deles conquistar hegemonia, a rede pode perder diversidade de implementação, um elemento considerado vital para resistir a falhas ou tentativas de captura.
Ao mesmo tempo, há a questão da confiança: se operar um nó se tornar mais caro ou mais complexo, usuários comuns podem desistir, centralizando ainda mais a rede em grandes atores.
Embora não haja sinais imediatos de um hard fork, a disputa indica um momento de inflexão. O Bitcoin sempre se apresentou como um sistema neutro, resistente à censura e governado por seus usuários. O embate entre Core e Knots mostra que, na prática, essas definições estão longe de ser unânimes. O resultado não apenas moldará os limites técnicos da rede, mas também definirá quem, de fato, tem a voz mais forte no protocolo que há mais de 15 anos desafia o sistema financeiro global.
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