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terça-feira, outubro 7, 2025

A lésbica vai à rua – Revista Cult

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Parte I

Ano de 2016. Ribeirão Preto. Luana Barbosa, mulher negra e periférica, leva o filho a um curso de informática. Está em cima de uma moto com ele, vestindo roupas consideradas “masculinas”. Estaciona e é abordada por policiais. Recusa-se a ser submetida a uma revista feita por homens e exige, como é seu direito por lei, que seja revistada por mulheres. Os policiais negam. Luana levanta a blusa e afirma: “eu sou uma mulher”. Em seguida, é brutalmente espancada na frente de seu filho de 14 anos. Após voltar da delegacia e chegar em casa com dores, Luana vai ao hospital e já é tarde demais: depois de horas internada, vem a óbito devido a lesões cerebrais. É 8 de abril. Poderia ser primeiro de abril e essa história poderia ter acontecido no “Dia da Mentira”. Poderia ser apenas uma história inventada. Mas não é: Luana morre. Algumas testemunhas disseram que um dos policiais, antes de espancá-la, comenta: “você não quer ser um homem? Então aguenta”.

Ano de 2013. Minas Gerais. Um viado e uma sapatão assistem às suas primeiras aulas de psicanálise na universidade. Foram arrebatados: a hipótese do inconsciente os arrebatou. O viado está mais decidido, declarado: “quero me tornar psicanalista”. A sapatão, embora igualmente tomada pelo impacto, ainda não sabe para onde ir. Prefere esperar. Enquanto isso, frequenta os grupos de estudo gratuitos da professora – aquela que ela não sabe se quer pegar, estudar junto ou falar de amor. Um dia, o viado se aproxima dessa professora e pergunta: “sou gay; sendo gay, eu posso me tornar psicanalista?”. A sapatão se assusta com a pergunta, fica nervosa por ele ter colocado seu recalcado sobre a mesa. A professora responde: “como assim? Por que não poderia?”. Cinco anos depois, a sapatão se recorda de que essa pergunta surgiu após uma aula com outra docente, uma psicanalista conceituada da cidade, que afirmava que a homossexualidade era uma escolha “pouco madura psiquicamente”, sinal de que o sujeito não teria alcançado a fase genital e que mulheres lésbicas, em especial, teriam sucumbido à inveja e renunciado à sua feminilidade.

Ano de 2012. Levo um fora de uma mulher com quem me relacionava. Minhas amigas, ao verem meu estado degradante, perguntam: “bah, será que não está na hora de você procurar um terapeuta?”. Respondo: quero que seja com um psicanalista, mas tenho pouco dinheiro e tenho medo. Uma professora me passa o telefone de uma psicanalista da cidade e diz: “fala o que você pode pagar e vai”. Saindo da faculdade, a caminho do ônibus para a primeira sessão de análise, encontro um amigo que me interpela: “cara, você já está tão ‘maltratada’ com esse término, por que vai escolher justamente uma abordagem que pode te maltratar ainda mais?”.

Ano de 2024. Recebo uma mensagem no WhatsApp de uma mulher querendo marcar uma entrevista de análise. Respondo que, naquele momento, não tenho horário, mas proponho uma conversa para depois encaminhá-la a alguém de minha confiança. Faço a entrevista e mudo de ideia: não vou encaminhá-la, a agenda que se vire. Fenótipo: uma mulher branca, com todos os predicados da “feminilidade”, criada como uma princesa. Demora a falar; as sessões são longas de silêncio. Após alguns meses, me conta que havia se relacionado apenas uma vez com uma mulher e que, ao reencontrá-la na rua, a ouviu cantar a música que havia marcado aquele encontro. Confessa que teve muito medo de machucar essa mulher, pois não sabia o que poderia oferecer, nem o que seria de si depois daquele acontecimento. Diz ainda que, na época, o “grupo sapatão” da moça a interpelava constantemente: “o que você é? O que você quer com nossa amiga?”. Numa análise anterior, que havia durado oito anos com um analista conceituado da cidade de São Paulo, escutou: “esse encontro que você teve com essa moça tem toda a cara de ser sintomático; você faz bem em ir embora”. Dois anos depois de iniciar comigo, pela primeira vez, ela me conta que pinta quadros desde a adolescência. E formula, também pela primeira vez, uma pergunta com ponto de interrogação: “Por que eu nunca consegui expor meus quadros na rua?

Parte II

Escolhi responder hoje à pergunta daquele amigo, feita lá em 2012, quando ele me disse: “por que escolher uma abordagem que pode te maltratar ainda mais?”. Existem dois tipos de encontros na minha vida em que me sinto no direito de renunciar à palavra autonomia: a minha relação com a escrita e com a psicanálise. Nenhuma das duas foi exatamente uma “questão de escolha” mas, ainda assim, sei que tenho algo a ver com isso. Posso dizer, com toda tranquilidade, que escrever e psicanalisar não são propriamente escolhas, mas aquilo que me permitiu sobreviver de um jeito mais interessante. Foram o que me manteve no mundo sem ter que caminhar como um zumbi, uma espécie de morta-viva nas tardes. A escrita e a psicanálise são necessidades fisiológicas. Por isso repito: não é exatamente uma escolha. O que me coube foi aceitar esse vento que me leva e cujo destino, até hoje, não sei ao certo onde vai parar.

A psicanálise é um campo amplo, diverso, em permanente e intensa disputa. Os psicanalistas disputam a psicanálise, às vezes para chamá-la de sua; mas, mais do que isso, disputam porque sabem, a partir de seus próprios processos analíticos, da ruptura de campo que essa ética produz na vida de alguém. Sabendo disso, querem que ela sobreviva. Quando meu amigo me alertou sobre o risco que eu poderia correr, estando em processo de luto e procurando uma analista, ele tinha razão. Não é incomum lésbicas viverem atualizações de violências transferenciais no divã sem conseguirem nomear muito bem o que ocorreu. Não é incomum que homofobias se expressem com aquela implicitude sutil, em que só se percebe o “cheiro estranho” de uma intervenção, mas não é possível nomear: “isso foi homofóbico”.

 Não é incomum que uma mulher diagnosticada com histeria seja rapidamente interpretada como uma “bi-festinha” que está apenas pesquisando o feminino, mas que jamais se sustentaria em uma relação com outra mulher. Assim como outras modalidades de interpretação que lançam a experiências entre duas mulheres para uma espécie de “retorno sintomático à mãe”. Contudo, essa não é a única parte da história: a dos psicanalistas que insistiram em atender os ditos loucos, quando o próprio Freud escreveu um belíssimo texto sobre a paranoia mesmo reconhecendo que talvez aquela práxis não fosse “para psicóticos”; a dos que escolheram atender crianças graves, quando alguns afirmavam que com a infância não era possível falar analiticamente; a dos que trabalharam em grupos com homens destroçados pela guerra, quando muitos diziam que o trauma impediria a palavra de circular; a dos que afirmaram que o corpo tem cor e que essa cor atravessa nossos desejos e modos de habitar o mundo, quando outros insistiam que a racialidade era apenas uma questão ideológica a ser mantida fora da sala de análise.

Também não é incomum a existência de psicanalistas pouco interessados nessa divisão entre “lésbica de verdade” e “lésbica de mentira” mais instigados, antes, pela pergunta: o que cada encontro está produzindo na vida dessa mulher? Menos preocupados com o ser, mais atentos ao des-ser. Também não é incomum haver psicanalistas que testemunham e sustentam as nomeações desejantes, enfrentando junto às suas pacientes o ódio familiar e a decepção patriarcal diante de uma filha criada para ser princesa e que escolheu deitar-se na cama com uma lésbica. Não é incomum, ainda, que psicanalistas acolham com os pais o luto devastador de descobrirem os movimentos não normativos em que a filha está implicada e afirmem, com todas as letras: não há nada que precise ser curado nessa menina. Um enunciado assim, num encontro transferencial, faz toda a diferença: pode produzir descontinuidades decisivas e diminuir sofrimentos intensos de famílias tomadas pelos imperativos normativos. Também não é incomum que psicanalistas sustentem a escolha indeterminada de algumas lésbicas que dizem: nem homem, nem mulher; nenhum desses significantes me serve para me dizer na cidade. Pois tudo o que vem dessa dicotomia: verdade x mentira, natureza x cultura, razão x desrazão, civilidade x primitivo só pode gerar apagamentos, genocídios e ataques a formas de linguagem que não estão no centro, mas que seguem borbulhando nas ruas.

Poderia trazer inúmeros exemplos dessa disputa, mas hoje preciso me concentrar em uma pergunta: o que faz com que demoremos tanto a colocar nossos quadros na rua?

Em uma viagem, perguntei ao segurança de uma balada: “você sabe onde tem balada lésbica por aqui?”. Ao que ele respondeu: “gay eu sei, lésbica eu não sei não, elas vivem soltas por aí”. Afinal, a psicanálise que me interessa é aquela que supõe alguma coisa nos loucos, nas crianças, nos proletários, nos pretos, nas trans, nos indígenas, nas sapatão, nesses que vivem sumindo por aí.

O direito de viver solta por aí é o direito de ir à rua e não ser encontrada. Em vez de permanecer explicando minhas identidades e predicados, posso brincar e dançar com eles, correndo o risco de perder algum nesse encantamento que é perambular pela rua, sozinha ou acompanhada. Luiz Antônio Simas insiste no “encantamento das ruas”, nesse espaço de alteridade onde não escolho o cheiro do perfume que quero sentir, a música que quero que toque, nem o asfalto que quero pisar. Não é à toa que a burguesia corre da rua: ela constrói condomínios e mais condomínios que mimetizam ruas, apenas para escapar de qualquer alteridade. Contudo, não faz só isso; ela é invejosa. Na insuportabilidade de ver sorrisos e corpos batucando na rua, solta tiros, cria arquiteturas hostis, impede a circulação, porque a circulação faz circular desejo e, quando o desejo circula, não há corpo que resista. 

Quando duas lésbicas circulam pela rua, o patriarcado inicialmente sorri, supondo que aquela circulação seja um convite erótico, esperando por ele. Até perceber que não há convite algum. Então, age para impedir essa circulação: produz estupros corretivos, zomba dos pelos que não foram cortados para agradar ao gosto pedófilo do patriarca, espanca lésbicas “desfem” que supostamente converteram princesas e nos leva a condomínios de igrejas, para que, com as orações, possamos “retornar” a uma determinada natureza.

Vocês já se perguntaram por que sempre aparece aquela pessoa, aparentemente educada e conciliadora, que chega numa lésbica e diz: “Olha, eu não me importo com você ser quem é, o que faz na sua vida pessoal é problema seu, eu respeito suas escolhas, mas, assim… precisa mesmo ficar se beijando na rua?” Ou ainda: “Por que ficar se expondo?”

Sinceramente, eu até prefiro uma conversa com um “cidadão de bem” desgracento que declara abertamente odiar tudo o que representamos e afirma querer botar fogo na nossa história, do que esse tipo de conversa mole. Porque ela caminha de mãos dadas com os genocidas que exterminam populações inteiras e depois se justificam dizendo: “Eu só cumpri ordens.” Essa proibição da exposição na rua existe porque, quando nos deparamos com o erótico circulando pela cidade, descobrimos a falácia da nossa suposta autonomia: o erótico a céu aberto dissolve as defesas que o desvio do olhar sustentava. Quando dois corpos se atracam, eu sou afetada por isso – e tudo aquilo que eu pensava ser, tudo aquilo de que me absolvia ao não olhar, passa também a se atracar. Daí a grande insistência: podem fazer, mas longe dos meus olhos. Porque um olho pode até desver, mas um olhar não.

Muitas de nós sucumbimos ao doméstico, essa face moebiana da rua. E, por mais que eu saiba que o doméstico também nos protege – afinal, não temos sequer o direito de beijar nossa parceira em paz sem ser interrompida por um homem dizendo que “acha aquilo bonito” ou por qualquer outro ser humano perguntando “quem é o homem e quem é a mulher da relação” – permanecer apenas na ilha de Lesbos também pode nos mortificar.

Casamentos no terceiro encontro, rebuceteios infinitos, discussões de relação intermináveis com dramas de novela mal escrita, intensidades devastadoras – são marcas desse excesso de doméstico que só a rua pode ajudar a tratar. Se a intensidade é considerada marca da lesbianidade, por que não podemos, ao invés de abrir mão dela, incluí-la num jogo de estripulias, brincadeiras, transas sem fim, numa certa dose de leveza de quem sabe que não encontrou “o amor da vida”, mas encontrou um amor para inventar uma parte da vida, de braços dados?

Se quisermos dar dignidade ao que afirmamos – ser lésbica é revolucionário – precisaremos revolucionar também a nossa linguagem. E nenhuma revolução se fez com drama novelesco, com corte definitivo de homens das nossas vidas, nem com a demissão de colocar nossos quadros na rua. As revoluções sempre estiveram mais próximas do poema, da crônica, do batuque do tambor, das palavras que funcionam como tiros.

Espero que este texto possa ser mais um tiro – e não o último – e que a psicanálise continue se propondo a fazer aquilo que tem de melhor a oferecer: sustentar as dinâmicas subversivas do desejo, com toda a desadaptação que isso carrega.

Que a palavra lésbica sirva como nomeação para fazer existir o que foi jogado para debaixo do tapete, mas que essa existência não nos impeça de sumir por aí, de andar pela rua e se surpreender com as reviravoltas que a circulação dos corpos pode produzir, sem precisar dar satisfação de por onde anda o nosso desejo.

Lésbica é muito mais que uma orientação sexual: é uma posição, um modo de habitar o mundo, que escolhe o aquilombamento e a sustentação de uma existência em que o Homem não é mais o centro da Terra – nem como algoz, nem como vítima. O referente muda de lugar.

 

Bárbara Cristina Souza Barbosa é psicanalista, mestre em Psicologia Clínica pela USP. Membra do Laboratório de Psicanálise, Sociedade e Política, doutoranda em Psicologia Clínica na USP e docente no Instituto Gerar 



[Fonte Original]

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