Algumas manchetes de notícias são tão chocantes que precisamos ler ao menos duas vezes para acreditar que sejam verdade. Nos atuais tempos tecnológicos, em situações tais, corremos para buscar as fontes, comprovar se não se tratam de fake news, histórias criadas por inteligência artificial ou por algum influenciador ou humorista em troca de curtidas.
Esse é o caso de uma reportagem veiculada pelo jornal britânico The Telegraph, no último 11 de setembro (coincidência ou não). Os títulos afirmavam sem hesitação que o site feminista Jezebel havia contratado bruxas para amaldiçoar o ativista de extrema-direita Charlie Kirk, dois dias antes de seu assassinato. Isso mesmo, bruxas.
Por si só já seria bastante absurdo, mas o enredo daria inveja a Arthur Miller: supostamente, algumas mulheres haviam sido contratadas pela editora do Jezebel através do Etsy, uma famosa plataforma de venda de produtos artesanais, a fim de lançar “pragas” contra Kirk, que sempre havia se posicionado contra os direitos femininos. Não vamos entrar no mérito do poder das contratadas nem das intenções da contratante, embora esta tenha se manifestado rapidamente após o ocorrido, afirmando que a história era apenas uma sátira, uma referência à perseguição contra mulheres progressistas como se via nos séculos de Inquisição, Salém e outros episódios históricos semelhantes.
Em suma, o artigo We Paid Some Etsy Witches to Curse Charlie Kirk [Pagamos algumas Bruxas do Etsy para amaldiçoar Charlie Kirk], publicado pelo Jezebel, era um manifesto contra as asseverações misóginas e retrógradas vociferadas pelo ativista cristão durante muitos anos.
Porém, qualquer explicação vira pó de pirlimpimpim diante da possibilidade de que, de fato, mulheres tenham o poder de levar alguém à morte, especialmente se for um homem “de família”. Tanto é que rapidamente as buscas por “bruxas para lançar maldições” explodiram desde a publicação do artigo do Telegraph. E conservadores de todas as partes foram ligeiros para “condenar” o humor ácido do site, rogar maldições em retorno e até mesmo criticar e ameaçar o periódico britânico, que “tivera a ousadia de publicar a notícia e negar seu calibre político e místico”.
Vários pontos merecem destaque nesta anedota envolvendo um tema tão complexo, antigo e sério: a caça às bruxas. Objetivamente: mulheres.
Em primeiro lugar, é preciso entender a aparente incongruência entre as inovações tecnológicas que vivemos e a volta a um pensamento supersticioso usado como pretexto para o cerceamento da liberdade feminina. Silvia Federici, em Mulheres e Caça às Bruxas (2019, Boitempo, tradução de Heci Regina Candiani), explica que essa relação não é um contrassenso, mas resultado de uma construção histórica que estruturou valores sociais, crenças e regras que repercutem até os dias de hoje, não importa quantos robôs ou foguetinhos criemos. A “regurgitação de misoginia”, como destaca Federici, surge como uma resposta à nova onda feminista fermentada nas redes sociais, a partir de 2008. E também como uma outra face do neoliberalismo contemporâneo.
E ironicamente, a tecnologia não facilita discernir ficção de realidade, mas alimenta velhos fantasmas e ressuscita aspectos monstruosos que considerávamos superados, ou bastante ultrapassados. Um exemplo é o uso da internet para pulverizar relatos, boatos e histórias atravessadas por justificativas religiosas e ideológicas arcaicas que resultam na perseguição e morte de mulheres em países como Zâmbia, Arábia Saudita, Nigéria e até a referência em farmacologia e sistemas de informação, Índia.
A internet é também o palco das tradwives (esposas tradicionais), movimento que tem ganhado força mundo afora. Ele é composto por mulheres jovens (muitas delas milionárias) que dizem devotar suas vidas apenas à casa e à família. Em vídeos no TikTok e Instagram mostram um estilo de vida “ideal”, o mesmo que, depois da II Guerra Mundial, levou muitas as mulheres, que viviam nos subúrbios americanos, à depressão, como se lê em A mística feminina, de Betty Friedan. Se pensarmos mais detidamente nesse fenômeno das tradwives, veremos que essa “esposas tradicionais” dedicam, na verdade, suas vidas a ganhar (mais) dinheiro com a internet, vendendo uma ideia absurda para a maioria das famílias de classe média, principalmente para aquelas que pretendem investir numa boa educação para seus filhos. Vale lembrar que, sem formação sólida, essa nova geração será apenas mão de obra barata para os bilionários.
Ainda mais grave é o quanto plataformas e aplicativos como Discord, Facebook e Instagram se prestam não apenas a demonizar mulheres, mas a fazer delas vítimas de violências indescritíveis. Recordemos que o caso de Gisèle Pelicot, a francesa que denunciou o cônjuge por dopá-la para que outros homens a abusassem, ocorreu por anúncios em sites específicos. Como se não tivesse sido o bastante, a Itália recentemente se deparou com o pavoroso escândalo Mia Moglie, nome de um grupo de Facebook com 32 mil (!) participantes que compartilhavam fotos íntimas de suas esposas e namoradas e as ofereciam aos demais. No Brasil, tivemos casos semelhantes, o de mulheres expostas por seus companheiros em redes sociais de amigos, as quais viraram motivo de chacota.
De onde nasce tanta atrocidade? Há muitos fatores em jogo, como destaca Federici, e seria leviano responder de uma única forma a essa pergunta. No entanto, é possível creditar uma fatia desse bolo indigesto a alguns mitos que sobrevivem ao tempo.
Antes da perseguição medieval, as regras do patriarcado já se impunham. Lilith, Pandora, Istar, Medeia, as Fúrias, Helena: o feminino busca sua redenção na Maria do cristianismo. A partir de então, como propôs Victor Hugo em Do grotesco e do sublime (1988, Perspectiva, tradução de Celia Berretini), abre-se a era do drama com o excelso representado pela pureza, submissão e reversão do pecado original. E com o grotesco, que “dá a Satã os cornos, os pés de bode e as asas de morcego”.
As bruxas eram consideradas mulheres transgressoras em vários aspectos, incluindo o sexual. Dançavam nuas, guardavam as partes íntimas de homens em ninhos de pássaros, tinham relações íntimas com o diabo e nenhum pudor ao se entregarem aos prazeres do corpo. Documentos e manuais como o Malleus Maleficarum, do inquisidor Institoris (Henrich Kraemer), atribuía à mulher um caráter demoníaco e, portanto, imperfeito, “que sempre a faz enganar e mentir”. Além disso, somos filhas de Eva e, por isso, não escaparíamos da tendência ao pecado e de arrastar os homens a ele. Assim, essa faceta seria imanente à nossa natureza.
Já a integridade de um homem seria definida pela escolha entre dois caminhos: deixar-se levar pelas paixões e pela lascívia que as mulheres lhe provocam e de que são “vítimas”, ou refrear seus impulsos e participar da estruturação da moralidade, acossando as feiticeiras. Ulisses se amarra ao mastro do navio para não ouvir as vorazes sereias e seus homens colocam cera nos ouvidos, mas não resistem à poção de Circe e se transformam em porcos. É o mito que se oculta e se entranha numa memória coletiva que avaliza a agressão contra uma agente do mal por natureza.
Ousar, contestar, planejar uma libertação, revoltar-se, lutar: só uma bruxa poderia fazer isso, com todos seus poderes malignos. Nem mesmo Joana D’Arc se salvou da censura, afinal, Johannes Nider a usa como exemplo em seu livro Formicarius (1475) para explicar o modo como o mal se gesta no mundo dos homens.
Entre a obra de Nider e a atualidade, vez ou outra, as bruxas saem para fazer seus aquelarres. E para identificá-las e contê-las, todas as formas de ação e punição são válidas.
Claramente, a tecnologia não eliminou a superstição e o mito, e as religiões só agravaram a realidade cotidiana feminina, estigmatizando as que se recusam a reproduzir o modelo de imaculabilidade e aceitação plena. No cha-cha-cha da história, com dois passos para frente e dois para trás, não alcançamos a definitiva igualdade entre gêneros e nem mesmo o ato de repensar as heranças culturais parece vir em nosso resgate.
Parece que sempre voltamos e voltaremos a falar da caça às bruxas, como diz Federici. Sinceramente, não acreditamos em sua existência como nos contaram, mas na dos seus caçadores ou caçadoras, pois, é preciso lembrar novamente que nem sempre as mulheres são solidárias com as companheiras, sendo as primeiras a se calarem na hora de lutar por elas ou são as primeiras a acender pôr fogo no palheiro.
A internet também não ajudou muito na união das mulheres, às vezes surge um autointitulado “coletivo feminino”, que exclui, contudo, companheiras de luta.
Não é a existência das bruxas que deve nos preocupar, mas a permanência de seus caçadores sempre à espreita.
O desafio está em inverter essa lógica da “tecnoperseguição”: transformar a rede em espaço de uma sororidade real e de reinvenção coletiva. Reiniciar nossos computadores, neste sentido, não é um gesto trivial, mas um convite a atualizar a luta, reprogramar alianças e abrir caminho para um futuro menos assombrado pelas fogueiras do passado.
Nós, aqui, já empunhamos nossa vassoura virtual, prontas para varrer tudo o que teima em obstruir nosso caminho.