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terça-feira, outubro 7, 2025

Onde se ouviu o primeiro samba do Brasil e até carro subiu escadaria: festa que celebra Santuário de Nossa Senha da Penha completa 390 anos

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São exatamente 382 degraus que separam o chão da Penha do topo onde se ergue o Santuário de Nossa Senhora da Penha. Mas a distância parece menor quando, todos os dias, ao meio-dia e às 18h, o hino dedicado à padroeira ecoa por toda a região. É nesse cenário que, em outubro, a tradicional Festa da Penha chega aos 390 anos, atraindo cerca de 50 mil pessoas ao longo de todos os domingos do mês. No mesmo período, a Zona da Leopoldina, onde a Penha se encontra, celebra 139 anos de história, reafirmando a fé, a cultura e a identidade de seus moradores.

Para moradores e devotos, não se trata apenas de uma celebração religiosa: é um encontro com a história e com a própria cidade.

— O mais mágico é que a igreja venha até você — diz o produtor Alex Maciel da Costa, devoto da santa e morador do bairro há mais de 30 anos. — Quanto mais silêncio, mais alto essa melodia divina se torna.

A devoção de Costa ganhou um novo significado durante a pandemia, quando enfrentou um quadro grave de Covid-19.

— Tive falta de ar intensa e pensei em ir ao hospital, mas antes parei diante da imagem de Nossa Senhora da Penha que tenho em casa e rezei pedindo sua intercessão. Adormeci no sofá e, no dia seguinte, acordei melhor. A partir dali, fui me recuperando — relembra. — Tenho certeza de que Nossa Senhora me salvou. Ela já realizou muitos milagres na minha vida.

Além da fé, o Santuário também se tornou cenário de histórias profissionais para Costa. Ele ajudou a viabilizar gravações de novelas da TV Globo realizadas na igreja, entre elas “Volta por cima”, da autora Cláudia Souto, e a atual trama “Dona de mim”, de Rosane Svartman, em que uma das personagens, interpretada por Camila Pitanga, é devota de Nossa Senhora da Penha.

Jefferson Plácido  (à esquerda), Vilson Luiz, Alex Costa, Rafael Mattoso, Hugo Costa e Gabriel Capella celebram a história e a cultura da Penha — Foto: Marcelo Theobald
Jefferson Plácido (à esquerda), Vilson Luiz, Alex Costa, Rafael Mattoso, Hugo Costa e Gabriel Capella celebram a história e a cultura da Penha — Foto: Marcelo Theobald

Para o padre Thiago Sardinha, responsável pela Igreja da Penha e que completa 42 anos amanhã, início da festa, a celebração é marcada pela tradição e pelo respeito às diversidades sociais, culturais e religiosas:

— A Festa da Penha reflete a fé e a cultura popular que atravessa gerações. A devoção mariana transforma desafios em esperança e inspira a comunidade a viver a fé na simplicidade, fortalecendo laços sociais e culturais no pátio da Igreja — explica. — É a harmonia na diversidade. Do adulto que reza à criança que brinca, do transporte público aos bondinhos gratuitos, do choro de quem pede uma graça à alegria de quem sobe de bondinho, contemplando o Santuário.

Algumas tradições da festa ainda são pouco conhecidas, destaca o padre: a lavagem da escadaria no sábado anterior à abertura (este ano será hoje, às 14h), a apresentação do novo manto da imagem da padroeira doado pelas 12 Damas e Cavalheiros, o Museu e Sala de Milagres, barracas de cocadas, petecas, cordões de bala de coco, atendimentos sociais gratuitos, bazar de roupas e o ato de passar por debaixo do Manto de Nossa Senhora no último domingo (26) da festa, às 22h, dentro da Basílica.

Desde que assumiu o Santuário, em 2015, o padre observa maior participação do público e das novas gerações, especialmente incentivadas pelas mídias sociais. Ao mesmo tempo, o Santuário investe na preservação do patrimônio histórico e espiritual, com tour virtual, museóloga para gerenciar o acervo da Venerável Irmandade, manutenção elétrica, descupinização, testes semanais das bombas de incêndio, plantio de mudas em parceria com a Secretaria municipal de Meio Ambiente, reforma do Cruzeiro e projetos com a PUC-Rio, incluindo a abertura de um novo mirante.

O Santuário da Penha recebeu 1,5 milhão de visitantes entre janeiro e agosto — Foto: Marcelo Theobald
O Santuário da Penha recebeu 1,5 milhão de visitantes entre janeiro e agosto — Foto: Marcelo Theobald

— O que mais me marcou foi a entrega total dos voluntários e devotos — afirma.

A região do Santuário da Penha faz parte do projeto Aqui tem Memória, que identifica monumentos e pontos históricos da cidade por meio de placas informativas com códigos QR, oferecendo informações em português e inglês e recursos de acessibilidade.

Entre janeiro e agosto deste ano, o Santuário recebeu 29.200 turistas nacionais e 1.700 internacionais, totalizando 1,5 milhão de visitantes quando considerados turistas e moradores locais, segundo o Observatório do Turismo da SMTUR-Rio.

Do milagre à criação da identidade carioca

Os planos incluem reforma total do Santuário, novo acesso para ônibus e carros, dormitórios para turistas e romeiros, acessibilidade no Museu e Sala de Milagres, novo mirante da Cruz da PUC-Rio e trilhas ao redor do penhasco. A Basílica ampliará sua atuação social, educacional, esportiva, ambiental, patrimonial e turística, com projetos que fortalecem a cultura e a economia locais, incluindo bolsas escolares, grupos esportivos, preservação da APA da Penha, ações com o Instituto Rio Patrimônio da Humanidade (IRPH) e roteiros turísticos na Zona Norte envolvendo igrejas, escolas de samba e centros culturais.

A Igreja da Penha se destaca como marco religioso, histórico e ambiental — Foto: Divulgação
A Igreja da Penha se destaca como marco religioso, histórico e ambiental — Foto: Divulgação

Com o tema “Com Maria, somos Peregrinos da Esperança!”, a festa de 2025 contará com programação especial durante todos os domingos de outubro, incluindo missas de hora em hora na Igreja da Penha. Neste domingo, a partir do meio-dia, haverá shows de Sobre a Rocha, padre Antônio Maria e Colo de Deus. No dia 12, às 8h, acontece a tradicional procissão com o Terço dos Homens e das Mulheres, com participação de Dom Hiansen, padre Thiago Sardinha (responsável pela Igreja da Penha) e diácono Melquisedec; à tarde, às 15h, escolas de samba se apresentam em homenagem à padroeira.

No dia 19, o destaque será a apresentação do grupo Cacique de Ramos e também de escolas de samba, ao meio-dia. Já no encerramento, no dia 26, a programação traz show de jazz com Jefferson Plácido, seguido de missa solene com o cardeal Dom Orani, às 17h30, na Concha Acústica. Em seguida, às 19h, haverá apresentações da banda V-Trix e de grupos de folclore brasileiro e a coroação da imagem de Nossa Senhora da Penha. A festa é organizada pela Basílica da Penha e a Arquidiocese do Rio, com apoio da prefeitura do Rio.

Entre os destaques, Jefferson Plácido, pianista de jazz reconhecido como uma das revelações do subúrbio carioca, tem uma relação especial com Nossa Senhora da Penha:

— Minha devoção à santa cresceu a partir de uma experiência pessoal marcante que mudou minha vida. Tocando jazz nos coretos da Igreja da Penha, com o incentivo do padre Tiago Sardinha, consegui unir fé e música. Hoje, sinto que Nossa Senhora da Penha abençoa minha arte diariamente, fortalecendo meu trabalho como artista independente — explica Plácido.

A devoção a Nossa Senhora da Penha de França chegou ao Brasil no século XVI, vinda de Portugal, e se espalhou inicialmente pelo Espírito Santo, com registros de festas já em 1570. No Rio de Janeiro, começou a se consolidar em 1635, associada a um suposto milagre do capitão Baltazar de Abreu Cardoso: ao subir o penhasco, ele foi surpreendido por uma serpente e, ao clamar pela proteção da santa, um lagarto surgiu e enfrentou o animal, salvando sua vida. Em agradecimento, o capitão teria iniciado a devoção no alto do morro, dando origem a uma tradição que completa 390 anos em 2025.

— É uma das manifestações religiosas mais antigas do Brasil, contemporânea ao Círio de Nazaré. A devoção se popularizou como lugar de milagres e ganhou ainda mais destaque a partir de 1763, com a transferência da capital para o Rio de Janeiro e a chegada da família real portuguesa — explica o historiador Rafael Mattoso, que ministra curso no Sesc de Ramos sobre a história da igreja e do território da Penha.

Em 1728, foi criada a Irmandade de Nossa Senhora da Penha. Décadas mais tarde, em 1817, os devotos Maria Barbosa e o marido mandaram erguer a escadaria de 382 degraus em agradecimento pela graça de terem um filho. No início do século XX, a igreja passou por grande reforma, incluindo a construção das duas torres e a instalação de um carrilhão com 25 sinos portugueses, adquiridos na Exposição do Centenário da Independência.

— São sinos que simbolizam aquele centenário e que ecoam do alto da Penha para toda a região do subúrbio da Leopoldina — destaca Mattoso, lembrando que a festa sempre uniu o sagrado e o profano.

Romeiros chegavam de diferentes regiões a cavalo, de barco ou de trem, transformando o bairro em ponto de encontro e peregrinação. Aos pés do penhasco, multiplicavam-se barracas, piqueniques, comidas típicas, rodas de samba e manifestações culturais. Personagens como Tia Ciata, Pixinguinha, Donga, Cartola, Noel Rosa e Ismael Silva frequentavam o evento. Não por acaso, foi na Festa da Penha que Donga apresentou pela primeira vez, em 1916, o samba “Pelo telefone”. Mais tarde, nomes como Luiz Gonzaga, Beth Carvalho e Gilberto Gil também eternizaram a devoção em canções.

No século XIX, a festa chegou a ser comparada em importância ao carnaval e à Festa do Divino Espírito Santo. A Penha também se tornou símbolo de resistência: na virada do século XIX para o XX, o pároco padre Ricardo, abolicionista, ficou marcado pela defesa dos escravizados, o que rendeu à região o apelido de Quilombo da Penha.

Hoje, a Festa da Penha é reconhecida como patrimônio religioso, histórico e cultural do Rio de Janeiro. Mais que uma celebração católica, tornou-se um emblema da identidade suburbana carioca e da mistura de culturas que marca a cidade.

A Penha é um marco estratégico da Zona da Leopoldina, área densamente urbanizada e com ar pouco renovado devido às serras. A Igreja da Penha, no alto da Serra da Misericórdia, se destaca como referência religiosa, histórica e ambiental. O nome Penha remete aos penhascos onde santuários dedicados à santa foram erguidos, tradição trazida de Portugal.

— Não é o carioquismo comercial, mas algo tangível — diz Hugo Costa, geógrafo e morador. — Ouvir a Ave-Maria das casas, ver a iluminação especial à noite, tudo contribui para a identidade carioca raiz.

Costa gosta de mencionar duas curiosidades sobre a Penha: a tradição conta que a PUC-Rio, primeira universidade católica do país, teria sido planejada para o bairro; na época, porém, a Favela da Gávea havia sido removida, e o prefeito pretendia ocupar o terreno de forma nobre. Outra lembrança curiosa é o lançamento do Fiat 147 no Brasil, em 1976, cuja ação promocional incluiu subir a escadaria da Penha “provando que você não precisa pagar seus pecados” (no caso, em outubro daquele ano).

Costa também compartilha uma memória afetiva com a filha.

— Minha filha muito pequena viu uma pessoa subindo os degraus de joelhos e me perguntou o porquê. Expliquei sobre fé, perseverança e pertencimento. Depois, ela quis subir sozinha, cansou e me pediu para carregá-la nos ombros o restante do caminho. Foi meu dia de pagar uma promessa — diverte-se.

Para ele, a Penha simboliza resistência urbana e cultural, e a preservação do entorno é essencial para conciliar turismo, história e qualidade de vida.

Turismo, história e memória viva no subúrbio carioca

O pesquisador e guia suburbano Gabriel Capella enxerga a Festa da Penha como um espaço em transformação:

— Atualmente, a festa é mais vista como evento do bairro do que da cidade, mas há um movimento para resgatar esse protagonismo, sobretudo a partir da atuação do padre Thiago Sardinha — avalia.

Morador de Ramos, Capella criou roteiros turísticos que destacam a Penha como destino além do religioso, incluindo a Rua dos Romeiros, o Monumento Homens de Fibra e a Fazendinha da Penha. Ele ressalta a importância da memória afrocarioca e a subvalorização da própria Igreja da Penha como cartão-postal.

— Tudo passa por educação e valorização da história local. O turismo pode ser uma ferramenta importante, mas precisa vir acompanhado de políticas públicas — defende.

Ligado à música popular, Capella lembra que a Penha sempre inspirou o cancioneiro brasileiro.

— Fazer festa também é uma forma de promover o contato da cidade consigo mesma — resume.Vilson Luiz, guia de turismo do Complexo da Penha, fala sobre sua infância e o projeto Inpenhado:

— Crescer no Complexo da Penha significou liberdade e conexão com o território. O adro da Igreja da Penha, que chamávamos de “Irmandade”, era nosso ponto de encontro, um dos poucos espaços planos no alto do morro — lembra.

O interesse dele pelo turismo surgiu na infância, observando visitantes no bairro, e se transformou no projeto, criado em 2022, que promove caminhadas e vivências culturais mostrando a história, a religião e a cultura local a partir da perspectiva de quem mora ali.

— O que mais surpreende os turistas é a profundidade histórica, que eles desconhecem. Chegam para ver uma igreja e descobrem a história indígena, quilombola e afrodescendente do Rio de Janeiro, contada por quem ama este lugar — explica.

O projeto também gera renda e engajamento comunitário, como a baiana do acarajé que recebe os grupos, ou crianças que passam a enxergar seu bairro com orgulho. Vilson Luiz recorda:

— Pegávamos tamarindo das árvores ao redor da igreja, fazíamos polpa e vendíamos o suco para os visitantes. Foi assim que aprendemos que a história e a cultura podem ser vividas e compartilhadas de forma concreta.

[Fonte Original]

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