O Duas-Caras sempre foi um dos vilões mais fascinantes de Gotham porque carrega em si uma dualidade que vai além da maldade completa de boa parte da galeria de antagonistas do Batman, sendo, ao mesmo tempo, o promotor idealista e o criminoso implacável, o homem que acreditava na lei e aquele que a retorceu até transformá-la em jogo de azar. Ao longo das décadas, muitos roteiros flertaram com esse paradoxo, mas poucas vezes o personagem foi colocado no centro de uma investigação psicológica tão direta quanto em Trial Separation. Essa minissérie recente aposta em levar Harvey Dent ao tribunal mais difícil de sua vida: o que acontece dentro de sua própria mente.
De saída, é uma HQ que expande a mitologia do personagem sem transformá-lo em outra coisa. Os retcons presentes são mínimos, mas funcionam bem ao resgatar momentos-chave do passado de Dent, com a narrativa adicionando pequenas dobras que ajudam a explicar o homem por trás da moeda. Não há aqui uma desconstrução radical, mas sim uma tentativa de torná-lo menos unidimensional (o que é irônico) e menos caricatural, com uma boa dose de contradições e até um aspecto melancólico em torno da mente fragmentada do vilão.
A parte mais rica da minissérie é justamente essa exploração psicológica. Quando o roteiro nos joga para dentro da mente de Harvey, com suas metáforas visuais, cortes abruptos e mudanças bruscas no estilo da arte, temos a impressão de acompanhar um thriller psicológico em quadrinhos. A narrativa abandona o tom de procedural criminal para assumir algo mais alegórico, que permite discutir a identidade fragmentada do personagem em camadas. Essa variação de registro dá fôlego ao quadrinho e cria os momentos mais memoráveis quando as duas vozes de Dent dialogam, acusam e tentam se anular mutuamente (o fato dele ser tanto o vilão quanto o herói da história cria uma dinâmica bem divertida de ler também.
Em contrapartida, o arco externo da história, com o tribunal dos criminosos de Gotham, no qual Harvey atua como advogado, acaba sendo o ponto mais frágil. A premissa até parece promissora, brincando com a ironia do passado jurídico do personagem e com a ideia de que o submundo da cidade precisa de suas próprias instituições. Mas a execução não convence tão bem, com os vilões coadjuvantes sendo descartáveis, os antagonistas introduzidos servindo apenas como peças funcionais, e os conflitos se resolvendo rápido demais, sem muita criatividade no processo investigativo de alguns blocos ou no desenvolvimento de certos coadjuvantes. Tudo acaba parecendo mais uma moldura narrativa para justificar o verdadeiro centro da minissérie, que é o embate íntimo entre Harvey e o Duas-Caras.
Mesmo assim, há bons momentos pontuais nesse “tribunal dos criminosos”. O uso da advocacia como metáfora para a eterna tentativa de Dent de “argumentar” consigo mesmo é engenhoso. E a forma como o roteiro conecta a prática jurídica à lógica binária da moeda é uma sacada que honra a essência do personagem. Ainda que o tribunal em si não seja bem desenvolvido, funciona como cenário alegórico para reforçar a dualidade e o absurdo cíclico de Gotham; uma cidade onde a justiça oficial sempre falha e onde o crime cria suas próprias paródias de instituições. Até o Batman entra no cinismo em uma participação curta, mas importante.
Visualmente, o quadrinho sabe explorar essa duplicidade. Há momentos em que a arte se mostra limpa e organizada, quase clássica, quando “o bom Harvey” domina a cena; em outros, a página se fragmenta, os traços se tornam mais agressivos, e as cores mergulham em contrastes violentos e mais coloridos quando “o mau Harvey” toma conta. Esse recurso não só diferencia os blocos narrativos, em especial a diferença entre o lado alegórico e o lado real, como também traduz em imagem a cisão psicológica do personagem, tornando a leitura mais instigante.
No conjunto, Trial Separation não é uma obra-prima, mas cumpre seu papel como minissérie que expande o personagem. É um quadrinho que funciona melhor como mergulho psicológico do que como trama criminal. Sua relevância está menos no desenrolar dos julgamentos e mais no modo como expõe o dilema eterno de Dent: pode um homem cindido se reconciliar consigo mesmo, ou a moeda sempre cairá para o lado mais sombrio?
Ao final, o destino do personagem é tão trágico quanto o status quo de Gotham, destinado a continuar essa batalha de controle em turnos. Para quem sempre viu o Duas Caras como uma figura exagerada, quase cartunesca, essa minissérie mostra que ainda há espaço para tratá-lo como personagem trágico, digno de ser explorado com mais seriedade. Gotham talvez nunca mude, mas Dent, aqui, ao menos ganha mais camadas.
Duas-Caras (Two-Face): Trial Separation | EUA, 2025
Contendo: Two-Face: Trial Separation #1 a 6
Roteiro: Christian Ward
Arte: Fábio Veras
Cores: Ivan Plascencia
Letras: Hassan Otsmane-Elhaou
Editoria: Rob Levin, Jessica Berbey
Editora: DC Comics
Páginas: 144