É comum, ao chegar na recepção do consultório de psicanálise, as crianças se
esconderem. É preciso procurá-las, embora metade de seus corpinhos esteja à mostra. Atrás da porta, no canto do sofá, sob a sombra de uma cortina. “Fulana não veio?”, perguntamos. O acompanhante responde prontamente que não, que veio sozinho. A criança parece não se preocupar se está sendo vista, o que importa é ser encontrada quantas vezes for preciso. Às vezes, o jogo dura a vida inteira.
Freud comparava a primeira sessão de análise à abertura do jogo de xadrez: nela já estão condensados os movimentos possíveis, os limites e alcances daquele encontro. Winnicott, mais radical, dizia que o encontro inaugural já era precedido por um sonho. Muitas vezes, descobriu, as crianças sonhavam com ele na noite anterior. É nesse espaço frágil entre sonho, desejo e memória que o analista pode ser encontrado, desde que esteja de fato ali, presente, no tempo e fora dele.
Existem jogos muito singulares de esconderijo e aparição para a construção de uma relação de confiança e intimidade. Com o atendimento online das crianças durante a pandemia não foi diferente. Câmera fechada, tudo escuro, até que se escute uma risadinha. Ufa, não estou sozinha aqui – pensam analista e criança. Mas qual tipo de intimidade é possível construir quando os encontros são mediados exclusivamente pela tela? Onde se ancora a percepção integrada do outro? O seu cheiro, tamanho, textura? Onde, de fato, encontra-lo?
A primeira sessão é tão importante para a análise como o flerte o é para a sustentação da. É um ensaio decisivo que tem valor em si mesmo, independente do que vem a seguir. Flertar é poder se aproximar sem garantia, sem contrato, sem promessa. O flerte erotiza a incerteza, o desconhecido, e coloca, estranhamente, a insegurança a nosso favor. Para Adam Phillips, o flerte mantém as coisas em ação e, ao assim fazer, permite-nos conhecê-las de diferentes maneiras. Em suas palavras :
“Desfigurando a diferença entre inocência e experiência, intenção e oportunidade o flerte não faz da instabilidade uma virtude, mas um prazer. (…) Flertar – a arte de fazer da ambivalência um jogo, a arte irônica de fazer desta um prazer – é tudo que as crianças podem fazer sexualmente com seus pais desde que se mantenha a proibição edipiana.”
Voltamos às crianças, mestras do flerte. Atentas à pedrinha que descolou do asfalto, à outra criança que busca areia ao seu lado no parque. Ficam melhores amigas sem nenhuma promessa, sem nenhum contrato, e nenhuma garantia. Apenas flertam com as coisas, com as pessoas encarnando o momento presente. Vamos tentar nos ver de novo? Conversam as mães no parquinho, animadas com a sintonia imediata dos filhos, mas nada garante que esse novo encontro vai dar certo. Garantir não é coisa de criança.
O flerte, como nos lembra Phillips é uma prática muito mal vista socialmente. Isso porque ele ironiza, a um só tempo, a confiabilidade, a previsibilidade e as narrativas de progresso ao prestigiar as contingências, os acasos da vida, sem temê-los pela sua produção consciente ou inconsciente de incerteza. É uma prática, nesse sentido, anticientífica.
No campo amoroso a desaparição do flerte foi a mais radical. Sequestrado por uma plataforma digital, custa algum dinheiro ter mais chances de ver e ser visto por aqueles que estão a alguma distância de você. Não se trata mais de dar uma volta no quarteirão, tomar uma cerveja na esquina, o flerte desapareceu fora dos aplicativos assumindo as formas morais e contratuais do consumo. Avaliação de desempenho, cancelamento imediato em caso de insatisfação com o produto, tudo, menos o seu dinheiro de volta.
Eva Illouz em sua brilhante pesquisa sobre a imaginação romântica na internet ressalta como a escolha com base em aspectos fragmentados da sensorialidade (imagem, áudio, texto) permitem conhecer o outro com quem se fala, mas não senti-lo. Para a socióloga os aplicativos de paquera produzem um treino do olhar para a escolha de um determinado objeto como fazemos com as centenas deles que nos espreitam nas prateleiras da cidade. Mercadorias, melancolias, como dizia Drummond.
A alegria de se esconder e o desastre de não ser encontrado é um dos paradoxos mais bonitos da teoria winnicottiana. Ele parte da simplicidade de um jogo de pique- esconde para explicar a necessidade humana de se reservar sem precisar ficar isolado. Esconder-se é só uma alegria- o que as pessoas querem mesmo saber é se podem ser encontradas. Elas já estão, de alguma forma, escondidas, com seus pezinhos à vista debaixo da porta, esperando por isso.