Na disputa comercial travada entre Estados Unidos e China, quem tem ganhado até agora é o produtor de soja brasileiro. Em resposta à imposição de tarifas sobre produtos chineses pelo presidente americano, Donald Trump, o país asiático suspendeu totalmente as compras da oleaginosa dos EUA, principal concorrente do Brasil no setor.
Com o mais recente acirramento nas tensões entre as duas maiores economias do mundo – com uma taxação americana de 100% sobre produtos oriundos do país de Xi Jinping –, a expectativa, no momento, é de novos e sucessivos recordes de exportação da soja brasileira nos próximos meses.
Em setembro, as vendas da commodity para a China já dispararam 57,1% em relação ao mesmo mês do ano passado.
O desafio do setor a partir de agora é manter esse patamar de vendas externas em meio a um contexto geopoliticamente instável, lidar com riscos de quebras de safra e até mesmo de desabastecimento do mercado interno e consequente alta de preços.
Tarifa sobre EUA tornou soja brasileira mais barata para importador chinês
O cenário começou a se construir em fevereiro, quando Trump anunciou uma tarifa adicional de 10% sobre produtos chineses como forma de proteger a economia interna. A resposta de Pequim veio na forma de tarifas de 10% a 15% sobre diversos produtos americanos, além de restrições à exportação de minerais raros, entre outras medidas.
A partir de então, houve uma escalada sem precedentes de barreiras tarifárias recíprocas por parte de ambos os países, até que, em 12 de maio, Estados Unidos e China estabeleceram uma trégua por um período de 90 dias.
Com isso as taxas aplicadas pelo governo americano sobre importações chinesas foram baixadas temporariamente de 145% para 30%. Já a alíquota imposta pela China sobre mercadorias americanas caiu de 125% para 10%.
A soja americana, no entanto, por ser um produto estratégico economicamente, ficou com uma tarifa de 20%, o que tornou seu preço menos competitivo no mercado chinês e abriu espaço para o aumento nas compras da soja brasileira.
China é maior importador de soja do mundo; Brasil e EUA, maiores exportadores
A China é o maior mercado consumidor e o principal importador de soja do mundo, representando 61,1% de todas as compras da oleaginosa no mercado mundial. O volume se justifica pelo uso intenso do insumo para produção de ração animal, destinada à suinocultura e à avicultura do país. A demanda chinesa é suprida em apenas 15% com produção própria, dependendo em 85% de grãos importados.
No ano passado, segundo a Administração Geral das Alfândegas da China, o país importou 105,03 milhões de toneladas da commodity, das quais 71,1% partiram do Brasil, e 22%, dos Estados Unidos.
O terceiro e quarto maiores exportadores foram Argentina e Uruguai, porém com volume significativamente inferior, de 4,1 milhões (3,9%) e 2,02 milhões (1,9%) de toneladas, respectivamente.
As exportações totais de soja dos EUA no ano passado somaram 52,2 milhões de toneladas, segundo dados do Departamento de Comércio americano. A China foi de longe o principal destino, com um total de 26,8 milhões de toneladas adquiridas (51,3%), o que dá uma ideia do impacto da suspensão do comércio para os produtores de soja estadunidenses.
Não só isso: as vendas para o país asiático representaram 22,5% de toda a produção de soja em território americano em 2024 (118,9 milhões de toneladas), de acordo com números do Departamento de Agricultura dos EUA (USDA, na sigla em inglês).
Desde maio, China não compra um grão sequer de soja dos EUA
Embora disputem o mercado chinês, Brasil e Estados Unidos tradicionalmente ofertam a commodity em períodos diferentes do ano em razão da diferença no período de plantio e colheita.
A China concentra a importação de soja do Brasil entre fevereiro e setembro, enquanto a principal janela de vendas do grão americano costuma começar a partir daí, com o início da colheita de outono no Hemisfério Norte. As vendas dos EUA encerram-se geralmente em fevereiro – ou, em anos em que há atrasos na colheita brasileira, no início de março.
Em 2025, no entanto, depois das compras do início do ano, ainda referentes à safra passada, o mercado chinês não importou literalmente mais um grão sequer dos EUA. Substituiu a soja americana por importações do Brasil e, em menor escala, da Argentina. A última compra dos Estados Unidos foi em maio.
Dados do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC) mostram que, a partir de julho, a China já passou a ampliar as encomendas de soja brasileira para reforçar seus estoques.
Naquele mês, as cargas da oleaginosa que partiram do Brasil rumo aos portos chineses somaram 9,6 milhões de toneladas, alta de 7,4% em relação ao mesmo mês de 2024.
No mês seguinte, foram 7,9 milhões de toneladas, 33,9% a mais do que em agosto do ano passado. Já em setembro, os embarques somaram 6,8 milhões de toneladas, volume 57,1% superior ao transacionado um ano atrás.
Para se ter uma ideia do peso da demanda chinesa, de todo o volume de soja exportada pelo Brasil em setembro, 92,3% teve a China como destino. No mesmo mês de 2024, o país asiático recebeu 70,6% dos embarques da commodity brasileira.
“Dizem que ninguém vence uma guerra comercial. Certamente, há poucos perdedores maiores do que os produtores de soja nos Estados Unidos”, afirma a revista britânica The Economist, em matéria publicada na semana passada.
“A disputa está arruinando os agricultores em Illinois […] Também está aumentando os custos para as processadoras na província chinesa de Shandong, que transformam grãos em ração animal e óleo de cozinha”, prossegue o texto. “Mas houve até agora um grande vencedor: os produtores de soja do Brasil”, decreta a revista.
Aumento de exportações para China vem acompanhado de riscos
O aumento no comércio da soja brasileira com os chineses, no entanto, não está livre de efeitos colaterais. A dependência de um único mercado expõe o setor a riscos de frustrações no caso, por exemplo, de um acordo comercial entre Washington e Pequim.
“É preciso avaliar a perspectiva do Brasil em relação à China, seu principal cliente, e também a perspectiva chinesa, que não necessariamente se sente confortável com uma dependência excessiva de um único fornecedor”, destacou a coordenadora do núcleo de Ásia do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), Larissa Wachholz, no VII Seminário Desafios da Liderança Brasileira no Mercado Mundial de Soja, realizado recentemente em Londrina (PR).
“Precisamos estar atentos às mudanças de cenários geopolíticos e também de política interna da China para nos posicionar de forma estratégica”, avaliou.
Diretor do Departamento de Inspeção de Produtos de Origem Vegetal do Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa), Hugo Caruso, acrescentou que o Brasil vem recebendo notificações da China relacionadas a pragas e até relatos de soja tratada com fungicidas.
“Tivemos, este ano, cinco empresas que foram suspensas para exportação de soja, mas conseguimos reverter a situação nos comprometendo a resolver o problema. Por isso, precisamos ter toda cadeia produtiva ciente das suas responsabilidades para não provocar complicações nas nossas exportações”, alertou.
Yedda Monteiro, analista de inteligência e estratégia da Biond Agro, explica ainda que fenômenos como El Niño e La Niña podem ser determinantes para o desempenho da safra 2025/26.
Na semana passada, o Centro de Previsão Climática dos Estados Unidos informou que a expansão de temperaturas da superfície do mar abaixo da média no Pacífico equatorial central e oriental em setembro impuseram condições para a formação do La Niña entre dezembro deste ano e fevereiro do ano que vem.
Embora a expectativa seja de efeitos mais brandos do que os observados em anos anteriores, o fenômeno aumenta o risco de estiagens no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina, o que pode comprometer parcialmente a oferta nas lavouras.
“A produtividade brasileira depende da regularidade das precipitações em fases críticas como plantio, floração e enchimento dos grãos. Essa variável segue sendo o maior risco e o fator determinante para o desempenho da safra 2025/26”, diz a analista.
A pressão de custos, especialmente sobre fertilizantes, defensivos e frete, também tem reduzido o ritmo de expansão da área cultivada, além do investimento por parte dos produtores em sementes de maior valor agregado e em adubação de manutenção, o que pode limitar ganhos de produtividade.
Soma-se a esses fatores uma capacidade de armazenagem cada vez mais insuficiente para a produção crescente do país.
“O que nos preocupa é que todo ano o percentual de produção cresce mais do que a construção de armazéns. E nesse momento, com juros elevados e menos recursos disponíveis no Plano Safra, o cenário se torna ainda mais desafiador”, diz o presidente da Associação dos Produtores de Soja e Milho do Mato Grosso (Aprosoja-MT), Lucas Costa Beber.
“O encarecimento dos equipamentos e das estruturas de armazenagem, somado à alta inflação, tem afastado a possibilidade de investimento de grande parte dos produtores”, afirma.
Para Yedda, sustentar o patamar de exportações de soja para a China nos próximos anos exigirá o enfrentamento de riscos climáticos, ambientais e de mercado, além de uma aceleração no ritmo de investimentos em infraestrutura.
“O Brasil consolidou sua liderança global, mas os desafios permanecem, especialmente frente às mudanças climáticas e à pressão de custos”, diz.
Exportações recordes afetam estoques internos de soja para esmagamento no Brasil
Marcelo Teixeira, especialista de mercado da JPA Agro, ressalta que a mudança no contexto internacional afeta também o mercado interno. “O choque comercial amplia a vantagem brasileira no curto prazo, mas também exige atenção redobrada”, diz.
“Já registramos exportações acima da média dos últimos cinco anos, mas esse aumento acelerado pressiona estoques internos e pode encarecer a matéria-prima da indústria local, que já opera com margens bastante apertadas”, afirma.
Quanto mais soja in natura o Brasil exporta, explica ele, menor a disponibilidade do grão para esmagamento, que gera farelo e óleo, insumos fundamentais para o abastecimento interno e a indústria de proteínas.
“Já vemos algumas esmagadoras praticando preços de farelo descolados de Chicago. Isso significa que, mesmo com a bolsa americana em queda, o valor do farelo no Brasil se mantém mais alto, reflexo da escassez de matéria-prima”, observa Teixeira.
Segundo levantamento do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea), da Universidade de São Paulo (USP), indústrias esmagadoras do país estão bastante ativas nas compras de soja, mas muitas já indicam ter dificuldades na aquisição de novos lotes no mercado à vista.
Brasil conquistou domínio do mercado chinês de soja no primeiro mandato de Trump
Não é a primeira vez que uma disputa comercial entre Estados Unidos e China beneficia a sojicultura brasileira.
Até 2012, os EUA sempre atenderam a maior parte da demanda do gigante asiático por soja. No ano seguinte, o Brasil superou as exportações americanas, mas as vendas dos dois países ocidentais mantiveram-se próximas até 2016, quando o volume embarcado pelo Brasil rumo à China correspondeu a 45,7% das compras chinesas, enquanto os EUA responderam por 40,4%.
Em 2017, Trump assumiu seu primeiro mandato como presidente americano, defendendo a tarifação de produtos estrangeiros como forma de retaliação a países por práticas desleais com os EUA. Naquele ano, a participação do Brasil nas importações de soja da China subiu para 53,3%, e a fatia americana caiu para 34,4%.
A grande virada ocorreu em 2018, quando a primeira rodada de tarifas sobre mercadorias chineses foi de fato implantada. Pequim retaliou taxando produtos americanos, e um dos alvos principais foram commodities agropecuárias, em particular a soja, o principal item agrícola americano exportado para a China.
Com as novas tarifas sobre a soja dos EUA, importadores chineses passaram a buscar fornecedores alternativos, e o Brasil saiu beneficiado, passando a vender volumes recordes para a ditadura asiática. Naquele ano, a participação brasileira no mercado de soja chinês chegou a 75,1%, deixando os americanos com 18,9%.
Em janeiro de 2020, Estados Unidos e China assinaram um acordo comercial, chamado de “Fase Um”, por meio do qual Pequim se comprometeu a comprar volumes adicionais de produtos americanos, incluindo uma cota de US$ 40 bilhões anuais de soja por dois anos, totalizando US$ 80 bilhões.
Diante dos preços mais competitivos e da qualidade do produto brasileiro, no entanto, as metas não foram totalmente cumpridas pelos importadores chineses. Entre 2020 e 2022, a China comprou cerca de 73% da meta acordada com os Estados Unidos.
Enquanto isso, o Brasil manteve-se na liderança das exportações de soja. Em 2024, o país asiático importou 105 milhões de toneladas de soja, dos quais 71,1% partiram do Brasil, e 21,1%, dos EUA.
Produtores de soja dos EUA se frustram com política comercial de Trump contra China
Se no discurso Trump reiteradamente pressiona a China a comprar soja americana, na prática suas ações têm decepcionado os produtores da cultura do país.
Em março, quando o presidente americano deu início à guerra tarifária, impondo uma tarifa adicional de 10% sobre produtos chineses, a Associação Americana de Soja (ASA, na sigla em inglês) se manifestou afirmando manter “consistentemente por anos” a posição de não apoiar o uso de tarifas como tática de negociação.
“Sabemos que os produtores estrangeiros de soja no Brasil e em outros países estão esperando colheitas abundantes este ano e estão preparados para atender a qualquer demanda decorrente de uma nova guerra comercial Estados Unidos-China”, declarou Caleb Ragland, presidente da associação, à época.
Em agosto, Trump pediu publicamente à China que “quadruplique rapidamente” suas compras de soja dos americanos. “Nossos grandes agricultores produzem os grãos de soja mais robustos. Espero que a China quadruplique rapidamente seus pedidos de soja”, escreveu o presidente.
Ele acrescentou ainda que “um serviço rápido será prestado” diante do aumento da demanda pelo produto. “Obrigado, presidente Xi [Jinping]”, concluiu.
O pedido, no entanto, não surtiu qualquer efeito. Dias depois, a ASA enviou uma carta à Casa Branca pedindo a Trump para priorizar a soja nas negociações comerciais entre EUA e China.
A entidade também divulgou uma nota técnica descrevendo as consequências financeiras da perda de participação no mercado chinês em longo prazo.
No fim de setembro, a associação veio a público criticar ainda o anúncio do governo americano de uma ajuda financeira à Argentina.
“Os preços da soja americana estão caindo, a colheita está em andamento, e os produtores leem manchetes não sobre a garantia de um acordo comercial com a China, mas sobre o fato de o governo americano estar concedendo US$ 20 bilhões em apoio econômico à Argentina, enquanto o país reduz seus impostos de exportação de soja para vender 20 carregamentos de soja argentina para a China em apenas dois dias”, declarou Ragland.
Enquanto os sojicultores dos EUA amargam a suspensão total nas vendas para a nação asiática, o governo argentino suspendeu as chamadas retenciones (imposto sobre exportações) para soja, farelo e óleo de soja, milho e trigo, o que imediatamente atraiu compradores chineses e afastou ainda mais a demanda pelo produto americano.
A medida, válida até 31 de outubro, impactou negativamente no preço da soja americana na Bolsa de Chicago. A consultoria Hedgepoint Global Markets afirma que as exportações de soja do país de Javier Milei devem sofrer ajustes altistas nos próximos relatórios da USDA, podendo superar os 10 milhões de toneladas este ano.
Com retenciones de 25% sobre a soja, a Argentina embarcou para o exterior 4,1 milhões de toneladas da commodity em 2024, segundo o Instituto Nacional de Estatística e Censos do país.
Trump promete ajudar produtores de soja, mas socorro deve vir só em 2026
Diante do cenário devastador, Trump chegou a anunciar, na semana passada, que dará uma ajuda financeira a agricultores, que, segundo apuraram veículos de imprensa americana, deve variar de US$ 10 bilhões a US$ 14 bilhões.
“Os agricultores de soja do nosso país estão sendo prejudicados porque a China, por motivos apenas de ‘negociação’, não está comprando”, escreveu o mandatário americano na rede Truth Social. “Ganhamos tanto dinheiro com tarifas que vamos usar uma pequena parte para ajudar nossos agricultores”, acrescentou.
A medida é semelhante à adotada em seu primeiro mandato, quando o republicano também travou uma guerra comercial com a China. Em 2019, o governo concedeu mais de US$ 22 bilhões em auxílio a produtores rurais.
O socorro, entretanto, não deve chegar antes de 2026, segundo Dan Basse, presidente da consultoria AgResource. Em um vídeo divulgado dias atrás, o executivo afirmou que um repasse em curto prazo já era inviável, e a situação se agravou a partir do dia 1.º com o shutdown – paralisação do governo americano em razão da não aprovação da lei orçamentária até o fim do prazo legal.
Também na semana passada, durante uma coletiva de imprensa na Casa Branca, Trump afirmou que a China retomará as compras de soja dos EUA. “A questão com a soja é o que acho que veremos mais abertura”, disse a jornalistas.
No mesmo dia, no entanto, o governo americano anunciou a tarifa adicional de 100% contra a China, e indicou que o encontro entre Trump e Xi que estava previsto para o fim do mês poderia ser cancelado. A associação americana dos produtores de soja reagiu, declarando estar “extremamente desapontada”.
“Guerras comerciais são prejudiciais a todos, e esses últimos acontecimentos são profundamente decepcionantes em um momento em que os produtores de soja enfrentam uma crise financeira cada vez maior”, afirmou Ragland, no último sábado (10).
Nesta segunda-feira (13), no entanto, o secretário do Tesouro dos EUA, Scott Bessent, afirmou que Trump está a caminho de se reunir com Xi na Coreia do Sul. Segundo Bessent, houve comunicações substanciais entre os dois lados durante o fim de semana.
“Houve uma desescalada significativa da situação”, disse o secretário em entrevista à Fox Business Network. “O presidente Trump disse que as tarifas não entrarão em vigor até 1º de novembro. Ele se reunirá com o presidente do partido, Xi, na Coreia. Acredito que essa reunião ainda será realizada.”