“Tenet”, de Christopher Nolan, é um desses enigmas travestidos de blockbuster, um quebra-cabeça que confunde não por descuido, mas por ambição. O espectador é lançado em uma espiral temporal em que a lógica tradicional se dissolve, e o tempo, essa entidade que o cinema sempre tratou como linha, é deformado até virar um labirinto de espelhos. A sensação de estar perdido não é uma falha da narrativa, mas o ponto de partida da experiência: Nolan constrói um jogo em que o desconforto é parte da regra.
Grande parte das críticas ao filme repousa justamente nessa dificuldade de apreensão. Há quem saia da sessão convencido de que perdeu algo essencial; e há quem, após assistir a vídeos explicativos, siga igualmente desnorteado. Mas talvez a confusão não deva ser interpretada como erro, e sim como estética. “Tenet” se estrutura como um filme sobre a própria incompreensão, uma obra que convida o público a sentir o colapso do tempo tanto quanto entendê-lo. Assistir ao filme é como participar de um experimento: é preciso abandonar a pretensão de controle para ser tragado por sua lógica inversa, em que causa e efeito trocam de lugar com a mesma naturalidade com que se aciona o gatilho de uma arma.
Se o enredo parece indecifrável, o espetáculo visual e técnico é o oposto: cristalino em sua precisão e monumental em execução. As sequências de ação, especialmente as lutas invertidas, são não apenas um exercício de coreografia, mas uma espécie de balé temporal, onde cada movimento desafia o sentido habitual de continuidade. Há momentos em que o cérebro tenta processar o impossível: o impacto se dá antes do golpe, o carro capota ao contrário, e o fogo se torna gelo. O efeito é hipnótico, e o espanto se renova porque a inversão não é mero truque visual, mas metáfora física de um universo em que o tempo perdeu a direção.
A direção de Nolan, frequentemente criticada por sacrificar emoção em nome da estrutura, encontra em ”Tenet” sua forma mais extrema. Os personagens, deliberadamente enigmáticos, funcionam menos como figuras psicológicas e mais como engrenagens dentro de uma máquina narrativa colossal. Falta-lhes densidade emocional, é verdade, mas talvez porque não haja espaço para emoção em um mundo onde o tempo não é linear. O protagonista, interpretado por John David Washington, é um homem sem passado nem nome: um símbolo de funcionalidade absoluta, alguém cuja identidade se dissolve no próprio mecanismo do roteiro. Robert Pattinson, em contrapartida, injeta um brilho sutil ao filme, uma espécie de ironia melancólica que sugere que ele, ao contrário do público, já entendeu tudo e aceita o absurdo.
A trilha sonora de Ludwig Göransson é outro personagem oculto. Ela não apenas acompanha as cenas, mas as propulsiona, o ritmo é vertiginoso, o som parece acelerar o próprio tempo. Há uma energia quase industrial na música, uma urgência que transforma cada sequência em um mergulho sensorial. Se Hans Zimmer criou atmosferas densas em Inception, Göransson opta pelo impacto físico: suas batidas não apenas ecoam, elas vibram dentro do corpo do espectador, como se sincronizassem o pulso humano com o fluxo invertido da narrativa.
”Tenet” não é um filme para ser entendido, mas experimentado. É um cinema que recusa a passividade, exigindo atenção, repetição e, acima de tudo, rendição. Sua complexidade não é gratuita: é um modo de nos lembrar que o tempo, assim como a arte, só existe na tensão entre controle e caos. Por isso, a segunda (ou terceira) exibição não é redundante, é reveladora. Cada revisão reorganiza o quebra-cabeça e altera a percepção do todo, como se o espectador também estivesse “invertendo” sua própria leitura da história.
Há, contudo, algo quase paradoxal em sua genialidade: quanto mais Nolan busca o intelecto, mais se aproxima da abstração emocional. “Tenet” fascina o olhar e estimula a mente, mas raramente toca o coração. Ainda assim, é impossível negar sua ousadia formal e o rigor de sua execução, um filme que transforma a confusão em linguagem e o impossível em espetáculo. Talvez não haja melhor definição para o cinema contemporâneo do que essa: um labirinto brilhante em que o sentido se desdobra ao infinito.
E se, ao final, ainda restar dúvida sobre o que se viu, talvez esse seja o verdadeiro triunfo de “Tenet”: fazer do enigma a própria experiência de assistir.
Filme:
Tenet
Diretor:
Christopher Nolan
Ano:
2020
Gênero:
Ação/Ficção Científica/Suspense
Avaliação:
9/10
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Fernando Machado
★★★★★★★★★★