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segunda-feira, novembro 3, 2025

­O Imperador e a Faxina – Revista Cult

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Enquanto o cheiro de pólvora e sangue ainda paira sobre o Complexo do Alemão, a contagem de corpos transformava a mais recente “megaoperação” policial do Rio de Janeiro na maior chacina em uma favela na história do Brasil. Com mais de uma centena de mortos (os números variam entre 119 e 132), a ação superou em letalidade o infame Massacre do Carandiru. O horror dos corpos expostos encontrou um eco ainda mais perturbador na celebração de parlamentares que se autoproclamam cristãos. “A maior faxina da história do RJ”, bradou o deputado Nikolas Ferreira, enquanto outros tratavam a carnificina de “sem-nomes” como um triunfo. Quando confrontado por um internauta que apontava a inutilidade de matar sessenta traficantes se outros cento e vinte ocupariam seus lugares, Ferreira respondeu com frieza: “É só matar os outros 120”.

A aparente contradição de seguidores de um messias executado pelo poder imperial aplaudindo a aniquilação de marginalizados revela uma necrófila e profunda afinidade teológica. Essa ode à morte parece introjetada no DNA de um certo cristianismo moldado à imagem do poder. A retórica da “faxina”, termo que atesta vidas como sujas ou descarte a ser removido, encontra um suposto álibi no Antigo Testamento, no conceito de herem (חרם), a guerra santa de extermínio. Nestas passagens de Josué e Deuteronômio, a aniquilação total de povos cananeus era legitimada em nome de uma suposta pureza divina, lógica genocida ressignificada hoje para justificar a eliminação dos “indesejáveis” urbanos. O que espanta é a amnésia seletiva que permite ignorar a figura central da própria fé. Cristo, cuja imagem ensanguentada os mesmos ostentam em cruzes de ouro no pescoço, foi ele mesmo um preso político, condenado e massacrado pelo poder imperial. Pilatos ordenou a crucificação. Jesus morreu entre criminosos, na margem, como os “sem-nomes” do Alemão. Ignoram que ao seu lado, na agonia da cruz, um ladrão culpado recebeu de Jesus não a condenação, mas a promessa: “Hoje estarás comigo no Paraíso” (Lucas 23:43). As palavras “Pai, perdoa-lhes, pois não sabem o que fazem” (Lucas 23:34) ecoam como a mais radical negação da lógica punitivista que seus supostos representantes hoje defendem.

Há uma perversão teológica-militar em curso. O Cristo que perdoou seus algozes foi substituído por um Cristo Imperador, forjado à imagem de Constantino, que no século 4 transformou o cristianismo de religião perseguida em religião perseguidora. Essa mutação, denunciada pela Teologia da Libertação, revela como a aliança entre cruz e espada produziu séculos de violência legitimada: Cruzadas, Inquisição, colonização genocida, escravidão e sim, massacres como este no complexo do alemão. O cristianismo imperial sempre precisou de inimigos a serem exterminados em nome de Deus. Hoje, os novos cananeus são os favelados, os traficantes, categorias que, na retórica da “faxina”, perdem sua humanidade.

Teólogas como Ivone Gebara denunciam como a figura de um “Deus Senhor dos Exércitos” se tornou cúmplice de totalitarismo e opressão. Esse controle totalitário se traduz na justificação da violência estatal. Leonardo Boff critica o cristianismo que legitima a violência institucionalizada e se tornou cúmplice do sistema “anti-vida”. Não há qualquer chance em se proclamar um seguidor de Nazaré sem que este compartilhe de suas dores e não das violências perpetuada contra esse Cristo e os novos crucificados. A reprodução simbólica da violência pede atenção urgente. Aqueles que adoram um homem ensanguentado pregado numa cruz, que ostentam essa imagem pregada nas paredes de casa e instituições públicas, esqueceram o significado do símbolo. Cruz não é troféu militar; é instrumento de tortura de um condenado político. Carregar a cruz deveria significar solidariedade com os crucificados de hoje, não com os crucificadores. A inversão é completa: os que deveriam chorar pelos mortos do Alemão celebram tudo como uma “faxina”. É evidente que o narcotráfico deve ser combatido, mas seria a resposta emular sua própria violência nos mesmos corpos inocentes? A lógica da “faxina” é a mesma do tráfico: a eliminação do outro, a necropolítica. Quando o Estado adota os métodos do crime organizado, quando a carnificina é celebrada como vitória, algo de profundamente podre corrompeu o tecido social. E quando essa corrupção é abençoada por uma teologia da morte, a perversão se completa.

A questão que permanece, incômoda e urgente. Os atuais auto-intitulados representantes de Cristo se assemelham àquele que perdoou seus algozes, que acolheu e regenerou o criminoso ao seu lado ou carregam as digitais de um Cristo Imperador, forjado à imagem de Nero ou de novos césares como Cláudio Castro? A resposta está escrita com o sangue derramado nas vielas do Alemão, na frieza com que se propõe “matar os outros 120”, na cruz de ouro que orna o pescoço de quem celebra a morte, mas que na verdade, já está morto por dentro. Em tempo: a única alusão de protesto violento feito por Jesus, centro do cristianismo, foi a de enxotar mercadores e açoita-los por fazer comércio no tempo, oprimindo e se aproveitando dos humildes fiéis de seu tempo. Irônico, não?

Alan Gentil é teólogo, escritor, mestre em Religião, Direitos Humanos e Sociedade e doutorando em Teologia na Faculdade Católica de Palermo. Mora na Sicília, Itália, onde lidera  quatro comunidades ecumênicas.



[Fonte Original]

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