Usar neurônios humanos para construir um “computador orgânico” é uma narrativa que já vem sendo explorada há um certo tempo na ficção científica. E se ainda não aconteceu na vida real, talvez seja sinal de que não é possível. Uma empresa sediada na Suíça, no entanto, tem mostrado resultados promissores em materializar essa ideia, e diz já ter bons motivos para prosseguir nos experimentos.
Quando o cientista Fred Jordan começou a se inserir no campo da pesquisa em inteligência artificial (IA), sua intenção não era trabalhar com células, e sim usar chips de silício para simular o funcionamento delas.
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Sistemas de inteligência artificial generativa como o ChatGPT têm em sua base a programação de “redes neurais”, inspiradas no sistema nervoso humano, mas ainda muito mais limitados que um cérebro, apesar de esses robôs virtuais nos surpreenderam com respostas muito similares às de humanos. Modificar processadores e algoritmos para imitar com mais precisão o fluxo de informação cerebral orgânica, então, talvez fosse um caminho para melhorar os sistemas de IA.
Jordan e seu sócio Martin Kutter, fundaram a startup suíça FinalSpark acreditando nisso, mas após alguns meses de trabalho esbarraram num problema: os neurônios virtuais que estavam desenvolvendo consumiam tanta energia e capacidade de processamento que tornaram inviável o projeto de imitar o cérebro humano com componentes de metal.
O jogo dos seis erros da inteligência artificial
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O que foi informado ao sistema: imagem hiper-realista retrata um homem tirando uma selfie com os amigos em um cinema lotado. As pessoas assistem a uma comédia e riem muito — Foto: Imagem gerada por Midjourney
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No cinema. A figura que segura o celular tem as mãos deformadas — Foto: Imagem gerada por IA/Midjourney
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Harmonia: Um maestro conduz uma orquestra, rege com energia, a câmera está de costas para o maestro, os músicos estão de frente para a câmera, ele toca a Nona Sinfonia de Beethoven – Foto: imagem gerada por IA/Midjourney
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Regência. A imagem exibe mão direita do maestro com dedo alongado. E a batuta se assemelha a um arco de violino — Foto: Imagem gerada por IA/Midjourney
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O que foi informado ao sistema de inteligência artificial: imagem exibe uma pessoa com os braços cruzados, não foi solicitado que aparecesse o rosto – foto: imagem criada por IA/Midjourney
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Em excesso. Imagem gerada por inteligência artificial mostra uma pessoa com mais um braço — Foto: Imagem gerada por IA/Midjourney
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Alegria: Uma criança sorri imensamente feliz e até grita de boca aberta de tanta felicidade quando recebe um presente. Esta imagem serve como uma prova do poder da felicidade — Foto: Imagem gerada por IA/Midjourney
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Sorriso assustador. O dente da criança que recebe o presente se confunde com a gengiva — Foto: Imagem gerada por IA/Midjourney
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Dueto inusitado: Produção exibe a cantora brasileira Anitta cantando com o líder do Coldplay, Crhis Martin, dançando e cantando no palco, com luz de neon — Foto: Imagem gerada por IA/Midjourney
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Atenção ao vocalista. A mão direita do cantor Chris Martin aparece com seis dedos — Foto: Imagem gerada por IA/Midjourney
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Apreciando a vista. Um grupo de capivaras com a cidade do Rio de Janeiro ao fundo, em um dia de garoa, imagem no estilo de publicações voltadas para a vida animal — Foto: Imagem gerada por IA/Midjourney
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É esse animal mesmo? Capivara aparece de rabo e mais parece um rato — Foto: Imagem gerada por IA/Midjourney
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Os erros da IA
O alto consumo de recursos para treinar modelos de inteligência artificial não intimida as gigantes de tecnologia, que hoje contornam o problema com força bruta. Não é incomum a Google DeepMind ou a OpenAI anunciarem projetos que consomem energia equivalente à consumida por bairros inteiros ou pequenas cidades, algo que a pequena FinalSpark definitivamente não tinha como fazer. Foi então que eles encontraram outro caminho.
— O nosso objetivo mudou, porém, por um lance de sorte. Um dos técnicos da FinalSpark estava envolvido paralelamente em um projeto no laboratório onde eu fiz meu doutorado, e a tarefa dele lá era medir impulsos elétricos de neurônios — contou Jordan. — A ideia veio então de maneira natural: em vez de fazer simulações rudimentares de neurônios para processar dados, por que não tentar usar os neurônios reais?
Se essa proposta tivesse surgido pouco mais de dez anos antes, talvez Jordan e Kutter não teriam sucesso. Mas em 2023, a ideia já tinha como prosperar.
Laboratórios biomédicos que estudam doenças neurais têm usado um recurso de pesquisa para tentar simular cérebros humanos. Essa técnica, inventada pela cientista Madeline Lancaster em 2013 no Instituto de Biologia Molecular da Áustria (IMBA), consiste em reprogramar células de pele humana para se transformarem em neurônios e fazê-las se agregarem em pequenas esferas em tubos de ensaio.
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Essas estruturas menores que grãos de areia receberam o nome de organoides cerebrais, e têm tido papel importante. O cientista brasileiro Alysson Muotri, professor da Universidade da Califórnia em San Diego, usa esse material para simular o desenvolvimento de pessoas do espectro autista, e sua pesquisa já resultou em medicação para alguns tipos de diagnóstico.
Muotri e outros cientistas costumam empregar uma expressão mais arrepiante para se referir aos organoides: minicérebros. Independentemente do nome adotado, não se tratam de neurônios tirados de uma pessoa, mas células cultivadas em laboratório com a mesma função. O que esses pequenos aglomerados de neurônios passaram a oferecer foi a chance de explorar essas células para processar dados sem que fosse necessário usar cérebros de pessoas vivas para tal.
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Talvez essa ideia remeta à bizarra imagem do personagem Doctor Sun, da Marvel, representado pelo corpo de um robô conectado a uma cabeça que era um cérebro dentro de um aquário. O sistema Neuroplatform, primeiro produto da FinalSpark, não é capaz de tramar planos de dominação mundial como um vilão de gibi, mas é a coisa mais próxima do Doctor Sun que existe.
Jordan e Kutter desenvolveram um método para conectar eletrodos aos pequenos organoides cerebrais e usá-los como processadores de dados, que recebem comandos de input do usuário e respondem com um output, como num computador de material sintético. Quem quiser pode solicitar hoje esse serviço da empresa suíça e fazer a operação desejada on-line.
Esses bioprocessadores não são muito confiáveis para operações lógicas muito exatas, porém. Certamente não seriam o tipo de dispositivo para construir uma calculadora. Usando impulsos elétricos e neurotransmissores, porém, os organoides são capazes de emular o processos de aprendizado num sistema nervoso real, que é mais caótico mas também mais sofisticado, além de surpreendente.
A intenção da FinalSpark é que os organoides possam algum dia executar, de maneira simples, algoritmos que requerem bilhões de parâmetros quando aplicados a sistemas de computação convencionais. Uma vez que isso seja possível, a economia de energia do sistema seria muito grande, porque neurônios gastam pouca energia.
— Um estudo de dois anos atrás mostrou que a eficiência energética de neurônios biológicos medida em watts é um milhão de vezes melhor que a de um neurônio artificial — explica Jordan. — Isso não significa que nosso futuro biocomputador vai ser 1 milhão de vezes mais eficiente, porque há outros fatores que precisam ser considerados, mas acreditamos que uma melhora de eficiência por um fator de 100 é algo possível, e isso já seria algo revolucionário.
Com data centers e centros de processamento em nuvem cada vez mais preocupados com a sobrecarga trazida pela IA, Jordan diz acreditar que existe um nicho para sua ideia no futuro.
— Quando alguém usa o ChatGPT, não está processando aquilo dentro do seu celular, a computação é feita num servidor remoto, como os da Amazon Web Services — diz. — O que imaginamos no futuro é a criação de um bioservidor completo, particularmente para aplicações de IA.
A ideia de usar entes vivos como peças de computador remete a outra distopia da ficção científica: o filme Matrix. Especialistas em bioética que se debruçaram sobre o tema, porém, não parecem preocupados. Os pequenos organoides provavelmente não têm consciência. Se biólogos conseguirem criar outros maiores, talvez a questão ética mude de patamar, mas não é algo no horizonte próximo.