A nostalgia costuma ser uma péssima conselheira. Ela promete reencontros catárticos com nossos heróis de infância e, quando a luz da sala de cinema se acende, revela apenas o rastro de uma memória traída. Com “Os Cavaleiros do Zodíaco — Saint Seiya: O Começo”, Hollywood resolveu convocar deuses e cosmos para entregar… helicópteros militares, tiroteios e armaduras que parecem ter saído de um desfile futurista patrocinado por uma marca de suplementos energéticos. Você entende que algo deu errado quando o brilho dourado das constelações é substituído pelo cinza burocrático de um laboratório secreto.
Há, sim, pequenas oferendas aos fãs, uma melodia familiar aqui, um gesto de lealdade acolá, o vislumbre da iconografia original tentando respirar sob toneladas de CGI duvidoso. Mas nada disso é suficiente para sustentar a fantasia que moldou gerações. O filme opera como se tivesse medo do próprio material: evita o sagrado, teme o ridículo e, nessa hesitação, dissolve a essência de uma história construída sobre fé, sacrifício e teimosia heroica.
Seiya, interpretado por Mackenyu, até carrega em si uma fagulha do protagonista impulsivo que um dia desafiou os deuses com o peito estufado e nenhuma garantia de sobrevivência. Porém, a narrativa o aprisiona em frases esvaziadas de propósito, como se o cosmo fosse apenas um efeito especial e não a metáfora ardente da força interior. Saori, rebatizada Sienna, poderia ser o coração pulsante do enredo; em vez disso, vagueia entre traumas telepáticos e diálogos que soam escritos por um algoritmo com medo de intensidade emocional.
O roteiro tenta reciclar o velho conflito entre destino e livre-arbítrio, mas entrega um debate tão raso quanto uma poça de chuva sob luz neon. Há antagonistas que entram em cena com a promessa de complexidade para, segundos depois, se revelarem obstáculos genéricos. Nem mesmo a presença carismática de Famke Janssen e Sean Bean consegue disfarçar a falta de convicção que assombra cada cena. Os personagens falam de grandeza cósmica enquanto lutam em galpões industriais que parecem retirados de qualquer blockbuster de orçamento moderado.
O que mais incomoda não é a liberdade criativa. Adaptações precisam se reinventar. Mas sim a ausência de fé no mito que pretendem renovar. Saint Seiya não é sobre armamentos de última geração, mas sobre garotos franzinos encontrando coragem para enfrentar deuses tirânicos em nome de um ideal que não se dobra. O filme esquece que o cosmo que importa não está no céu: incendeia por dentro. Quando Seiya cai, ele se levanta porque ama, porque acredita, porque sabe que cada derrota é só mais um passo até tocar as estrelas. Aqui, as quedas não dizem nada, e as vitórias, menos ainda.
No fundo, a produção trata a memória afetiva do público como um acessório opcional, quase descartável. Como se pudesse trocar constelações por drones e ninguém sentiria falta daquilo que realmente importava. Engano juvenil. O fã percebe quando a essência foi deixada no corte final, sacrificada em nome de uma ambição que mira todas as audiências e não conquista nenhuma.
O título promete o “começo”, mas entrega algo mais próximo de um desvio de rota: uma história que tenta inaugurar uma nova saga enquanto renega as próprias raízes. É frustrante perceber que existe potencial enterrado ali, pequenas fagulhas que, em mãos mais ousadas e devotas, poderiam incendiar a tela com o fervor do original.
Talvez um dia o cinema reencontre a coragem de olhar para o passado sem medo de parecer épico demais. Até lá, resta aos fãs continuar acreditando, como Seiya sempre fez, que mesmo as estrelas mais apagadas podem voltar a brilhar. Mas nenhuma mitologia se sustenta sem crença. E este filme, infelizmente, parece ter perdido a sua.
Filme:
Os Cavaleiros do Zodíaco — Saint Seiya: O Começo
Diretor:
Tomasz Baginski
Ano:
2023
Gênero:
Ação/Aventura/Fantasia/Ficção Científica
Avaliação:
7/10
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Helena Oliveira
★★★★★★★★★★