Crédito, Polícia Civil do Rio de Janeiro/BBC
- Author, Daniel Gallas
- Role, Da BBC News em Londres
Na noite de domingo (2/11), a assessoria de imprensa da Polícia Civil do Rio de Janeiro divulgou a jornalistas um comunicado no qual detalhou o trabalho de identificação de 115 dos 117 mortos na megaoperação policial nos complexos do Alemão e da Penha.
A identificação dos corpos vinha sendo conduzida havia seis dias, desde que foi realizada a Operação Contenção — que deixou um total de 121 mortos, incluindo quatro policiais, e é considerada a mais letal já realizada no Brasil.
O comunicado da Polícia Civil intitulado “Governo do Estado divulga lista com perfis dos mortos na Operação Contenção” estava acompanhado de um arquivo no formato PDF de 35 páginas no qual a polícia trazia um perfil dos mortos — com dados diversos como nome, nome dos pais, data de nascimento, RG, naturalidade, alcunha e link para as redes sociais.
O documento também traz fotos que seriam dos 115 mortos e, em alguns casos, também imagens supostamente postadas por eles nas redes sociais — além de detalhes como histórico criminal e mandado de prisão ativo contra cada um.
“A lista revela quem são os criminosos que resistiram às forças policiais e foram neutralizados”, afirma o texto da Polícia Civil. “Mais de 95% dos identificados tinham ligação comprovada com o Comando Vermelho e 54% eram de fora do Estado.”
Segundo a nota o “trabalho de inteligência” foi desenvolvido pela cúpula de Segurança Pública do Estado.
No PDF divulgado com o perfil dos mortos na operação, as evidências apresentadas pelas autoridades de participação dos mortos com atividades criminosas variam.
As fichas de alguns mortos são descritas em grandes detalhe — mas há casos em que não há nenhum indício de atividade criminosa anotado.
Entre os mortos, há pessoas que a polícia diz que eram foragidos, possuíam mandados de prisão pendentes ou eram apontados em investigações anteriores como lideranças do Comando Vermelho. No PDF, essas anotações estão destacadas em vermelho. Em alguns casos, há números de processos e de mandados de prisão no documento.

Crédito, Polícia Civil do Rio de Janeiro/BBC
Um dos mortos é descrito da seguinte forma no PDF: “Mantinha conexões diretas com integrantes do CV no Rio de Janeiro, de onde coordenava as ações ilícitas e o repasse de drogas e armas para Minas Gerais e Bahia. Sua atuação demonstra o nível de integração entre o crime organizado interestadual (RJ, MG, BA)”.
Outro é classificado como “liderança do Comando Vermelho na Bahia”: “era o 01 do Comando Vermelho em Feira de Santana”.
Há diversos mortos que são apontados como líderes do CV em outros Estados: Goiás, Bahia, Amazonas, Pará, Minas Gerais, Maranhão.
A polícia diz que identificou que 59 mortos tinham mandados de prisão pendentes e pelo menos 97 apresentavam históricos criminais relevantes
Para quatro mortos, a polícia colocou no PDF o cartaz de “Procurado”. Em outros casos, são colocadas fotos que teriam sido tiradas das redes sociais dos mortos ou de reportagens da imprensa em que eles teriam sido citados, em conexão com outros crimes.
Instagram sem fotos
Mas há também no PDF da Polícia Civil casos em que as autoridades indicam que não há histórico criminal dos mortos.
O PDF lista 19 instâncias — destacadas na cor azul — em que o morto “não possui anotações criminais” ou “antecedentes”. Em alguns casos, a anotação é: “não figura como autor ou envolvido em registros de ocorrências no Rio de Janeiro.”
Para nove desses mortos, não há no PDF nenhuma anotação adicional ou nenhuma sugestão de que eles teriam participação no Comando Vermelho ou sequer qualquer atividade criminosa prévia.
Para outros dez, a polícia afirma que uma “análise de redes sociais demonstra o envolvimento com o tráfico”. Mas não há detalhes sobre como foi conduzida essa análise das redes sociais.
O documento exibe fotos que teriam sido supostamente tiradas de redes sociais dos mortos — como TikTok e Instagram. Em quatro das fotos mostradas pela Polícia, as pessoas aparecem segurando armas de fogo.

Crédito, Polícia Civil do Rio de Janeiro/BBC
Sobre um desses perfis, a polícia diz: “Instagram de 2022, sem fotos. Indícios de limpeza de perfil”. No caso dessa pessoa, ela não possui antecedentes criminais anotados no PDF.
Também há casos em que a polícia aponta que os mortos possuem histórico criminal — mas não necessariamente em ligação com o crime organizado, para atos como lesão corporal ou ameaça.
A BBC News Brasil não conseguiu verificar de forma independente se essas fotos e redes sociais são de fato das pessoas mortas na operação. A reportagem entrou em contato com a Polícia Civil do Rio de Janeiro, mas não obteve retorno (leia mais abaixo).
Alguns dos endereços de perfis divulgados pela polícia já não estão mais no ar.
Investigação completa
O especialista em segurança pública Rafael Alcadipani, professor da Fundação Getúlio Vargas e integrante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (ONG apartidária que reúne especialistas na área), afirma que o PDF mostra apenas dados da vida pregressa dos mortos — mas não esclarece exatamente as circunstâncias em que eles morreram.
“Eu acredito que esse PDF traz elementos que podem indicar que o sujeito poderia estar cometendo crimes. Mas indicação não é ação”, disse Alcadipani à BBC News Brasil.
“O que precisamos não é saber sobre a vida pregressa desse indivíduo, mas qual é o papel que ele desempenhava nos fatos que levaram ele a ser neutralizado pelas forças de segurança.”
“E isso tem que ser consequência ou análise de uma investigação feita pela Polícia Civil — uma análise pericial dos fatos do que estava acontecendo — para conseguir mostrar qual que era a ameaça que esse sujeito representava às forças de segurança que estavam fazendo a incursão naquele contexto.”
Para ele, é preciso que a polícia apresente análise pericial decorrente de uma investigação completa, que provavelmente envolveria imagens das câmeras dos policiais da Operação Contenção.
“Se o sujeito está portando um fuzil naquele momento dos fatos, ele precisa ser neutralizado. Não se pode admitir que sejam tão facilitados assim a presença e o porte de fuzil que representam uma ameaça brutal às forças de segurança e à sociedade como um todo.”
A BBC News Brasil entrou em contato com a Secretaria Estadual de Segurança Pública do Rio, que pediu que a reportagem contatasse a Polícia Civil do Rio de Janeiro.
À Polícia Civil, foram solicitadas explicações sobre como foi feita a análise de redes sociais contida no PDF, quais relatórios e investigações ainda estão sendo conduzidos para esclarecer as circunstâncias da morte de cada uma das 117 pessoas e sobre a situação de pessoas sem registro de antecedentes ou anotação criminais entre os mortos.
Também foi questionado qual foi a intenção da Polícia ao produzir o documento e divulgá-lo a jornalistas.
Até o fechamento desta reportagem, a Polícia Civil não respondeu ao contato da BBC News Brasil.
Na nota divulgada no domingo, a Polícia Civil afirmou que a lista divulgada não encerra o trabalho de investigação e que “todos os resultados estão sendo documentados para garantir a transparência e legalidade da operação”.
“Os relatórios estão sendo confeccionados e serão entregues aos órgãos competentes”, diz o texto da assessoria da Polícia Civil.
A Polícia Civil também disse tratar os mortos na operação como criminosos ligados ao crime organizado.
“Essa mínima fração de narcoterroristas neutralizados que não possuíam anotações criminais nem imagens em redes sociais portando armas ou demonstrando vínculo com facções criminosas não significa nada”, diz o secretário da Polícia Civil, delegado Felipe Curi, na nota.
“Se eles não tivessem reagido à abordagem dos policiais, teriam sido presos em flagrante pelo porte de fuzis, granadas e artefatos explosivos, por tentativa de homicídio contra os agentes de segurança e também pelos crimes de organização criminosa e associação para o tráfico de drogas.”
No dia seguinte à operação policial, o secretário disse que os mortos usavam roupas de combate, como botas e fardas camufladas, e exibiu um vídeo que mostrava um deles tendo a roupa removida por moradores que retiraram os corpos da mata onde aconteceu o conflito.
Cury anunciou na ocasião que iria instaurar um inquérito policial na 22ª Delegacia de Polícia da Penha para investigar essas pessoas pelo crime de fraude processual.
A operação policial contra o Comando Vermelho realizada na terça-feira da semana passada foi a mais letal já registrada no país. Ela envolveu 2,5 mil agentes das forças de segurança do Rio de Janeiro para cumprir 180 mandados de busca e apreensão e 100 mandados de prisão em uma área de 9 milhões de metros quadrados.
A operação não atingiu parte da cúpula do Comando Vermelho: Edgard Alves de Andrade, o Doca, apontado como maior líder da facção em liberdade, segue sendo procurado. Assim como Pedro Paulo Guedes, o Pedro Bala, Juan Pedro Ramos, o BMW, e Carlos da Costa Neves, o Gardenal.
Movimentos de direitos humanos classificaram a operação como “chacina” e questionam sua eficácia como política de segurança. O grande número de vítimas também foi criticado pelo Alto Comissariado dos Direitos Humanos das Nações Unidas, que se disse “horrorizado” com a operação nas favelas.
Ao todo, 113 pessoas foram presas.
Arte por Caroline Souza, da Equipe de Jornalismo visual da BBC News Brasil