Em 20 de outubro de 2025, quem tentou acessar o Mercado Livre, jogar uma partida de Fortnite, interagir com a Alexa ou trocar mensagens de trabalho no Slack teve problemas. Esses serviços estavam instáveis ou até mesmo fora do ar.
Pouco mais de uma semana depois, problemas parecidos afetaram o pacote de apps Microsoft 365, o jogo Minecraft e os serviços do Xbox. Os casos ocorreram por motivos diferentes, mas têm um ponto em comum: a dependência de um grande nome da computação em nuvem.
As quedas do Amazon Web Services (AWS) e do Microsoft Azure são exemplos de uma situação atual do mercado. Muitos sites e serviços online funcionam concentrados em poucas empresas que oferecem essa infraestrutura — e, nesse cenário, falhas que seriam menos sentidas se tornam um incidente de grandes proporções.
Tudo está nas nuvens
Basicamente, para usuários convencionais, a computação em nuvem — ou cloud, no termo reduzido e em inglês — é a capacidade de acessar digitalmente sites, serviços, jogos e outras ferramentas que não são processadas localmente, ou seja, na própria máquina.
Para as empresas que fornecem tudo isso, usar a nuvem é armazenar e acionar remotamente uma série de recursos sob demanda via internet. Servidores que ficam em outro lugar, como em grandes data centers, são responsáveis por processar, hospedar, testar e manter tudo funcionando.
Segundo Rubia Coimbra, Vice-Presidente da Cloudera para América Latina, essa tecnologia é essencial para serviços em rede e cresce em complexidade a cada ano que passa.
“A nuvem é hoje a infraestrutura invisível que sustenta praticamente tudo: do streaming às plataformas de IA, passando por pagamentos, logística, telecomunicações, operações industriais, e muito mais. A maior parte do tráfego global passa por data centers de provedores de nuvem”, conta a executiva.
- O mercado de cloud vale atualmente US$ 912 bilhões (ou R$ 4,9 trilhões) e, em crescimento acelerado, deve dobrar de tamanho até 2029, de acordo com a Precedence Research;
- A América do Norte é líder global no setor com 41% da fatia de mercado, em especial pela presença de hyperscalers;
- Segundo a Canalys, a AWS tem 32% de participação no segmento, seguida por Azure (22%) e Google Cloud (11%). Ou seja, as três empresas têm 65% do mercado global;
- Já os gastos globais com serviços de infraestrutura em nuvem foram de US$ 95,3 bilhões (cerca de R$ 514 bilhões) só no segundo trimestre de 2025, um novo recorde para o setor e 22% a mais do que no mesmo período do ano anterior;
O mercado de cloud atual é bem desenvolvido em termos de tecnologia. Essas plataformas são robustas em estrutura, oferecem um catálogo vasto de ferramentas de gerenciamento e agilidade no acesso.
Hoje, é mais difícil encontrar serviços digitais mesmo de médio porte que operem a partir de servidores locais e não de uma nuvem “alugada”. Por mais que a primeira alternativa garanta maior controle e menos latência, questões financeiras tendem a favorecer a cloud.
“Quanto mais rápida a conexão, quanto mais dispositivos, quanto mais digital a economia, mais a nuvem faz sentido e mais o modelo anterior fica completamente obsoleto”, detalha Arthur Igreja, especialista em Tecnologia e Inovação.
O mercado hoje é composto de uma série de empresas de todos os tamanhos, mas que está cada vez mais consolidado no topo da pirâmide. São os chamados hyperscalers, provedores de grande porte e que concentram uma carteira variada de clientes, como os próprios Azure e AWS.
O problema? Em um efeito dominó, quando justamente essas plataformas apresentam falhas, tudo que depende delas para funcionar também é derrubado.
Por que a concentração é um problema?
A queda da AWS foi causada por um defeito no gerenciamento de endereços. Já o incidente da Azure envolveu uma “alteração recente na configuração” da infraestrutura. São problemas que podem acontecer, mas que ganham uma dimensão maior se elas são uma das bases de tantos elementos do nosso cotidiano.
A concentração de hospedagem praticamente integral de tantas ferramentas da internet em poucos hyperscalers preocupa pela criação de um cenário de dependência.
É como se todos os seus eletrônicos de casa estivessem ligados ao mesmo filtro de linha e, quando ele é tirado da tomada, tudo é desligado na hora. “Mover ambientes inteiros para uma única cloud é uma exposição a um único ponto de falha, mas também basta um incidente para comprometer o atendimento a milhões de usuários“, reforça Rubia.
Para Arthur, a migração em massa para a nuvem exige que essas plataformas tenham cada vez mais cuidado com disponibilidade e resiliência (ou seja, conseguir manter a operação mesmo com falhas pontuais), tamanha a importância que elas ganharam.
“Quando se tem uma falha grave como essa, ela não envolve apenas disponibilidade do serviço, mas o impacto real nos negócios, nas empresas, na vida das pessoas”, alerta o especialista.
Fabrizio Siqueira, gerente de Soluções da Huawei Cloud Brasil, é ainda mais direto ao falar dos perigos da concentração. “A dependência excessiva de infraestruturas centralizadas concentra riscos e expõe empresas e governos a interrupções que podem afetar toda a cadeia econômica”, defende.
Com serviços de IA cada vez mais estruturados e uma aceleração que já é até comparada a uma bolha, isso tende a aumentar cada vez mais. Já imaginou um cenário em que serviços como ChatGPT, agentes de IA e chatbots incorporados diretamente na estrutura de empresas estejam todos fora do ar ao mesmo tempo?
Como reduzir a dependência de uma nuvem
Na atual consolidação dos grandes nomes do mercado, que abocanham a maior parte dos clientes, mudar esse cenário não é tarefa simples. Segundo Arthur, fatores como desproporção em investimento e escala dificultam uma mudança entre os atuais líderes.
Os especialistas consultados pelo TecMundo concordam que há algumas soluções que podem reduzir a dependência e amenizam falhas globais na nuvem:
- Uma das principais necessidades é ter uma arquitetura distribuída, o que evita concentrar sistemas críticos em um único provedor ou região. Quando um desses pontos fica do ar, há um backup disponível ou a operação parcial;
- Também é essencial que as plataformas não “prendam” os dados a um provedor específico, permitindo dinamismos na operação por custo ou desempenho;
- A governança também é importante: organizações precisam saber onde os dados estão, como se movem e qual é o impacto de cada falha;
“Na medida que mais serviços essenciais migram para ambientes digitais, cresce também a necessidade de arquiteturas distribuídas, capazes de manter a continuidade operacional mesmo diante de falhas pontuais”, reforça Fabrizio.
Para adotar essa arquitetura ramificada e com resiliência, são duas as possibilidades mais comuns oferecidas hoje. Há a nuvem híbrida, com pelo menos dois ambientes de computação compartilhando informações, sendo no mínimo uma nuvem privada (para lidar com dados mais sigilosos) e outra pública.
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E é possível também adotar a estratégia multicloud: combinar diferentes nuvens para fazer trabalhos diferentes, ter redundância de dados para eventuais perdas ou manter parte do serviço de pé em caso de problemas com uma das provedoras.
O Brasil está no caminho certo?
Em que posição está o mercado brasileiro nesse setor de grandes servidores? De acordo com Arthur, há pontos positivos no cenário nacional por apresentarmos bom nível de infraestrutura, um grande mercado consumidor movido por uma das economias mais digitais do mundo e provedores de tecnologia locais, para além das gigantes.
Por outro lado, tudo isso não torna empresas nacionais e serviços globais oferecidos por aqui menos dependentes. “Temos uma base sólida, mas a verdadeira independência vem da arquitetura e da governança de dados, não apenas da infraestrutura física“, propõe Rubia.
Citando um exemplo concreto, Fabrizio confirma que o país é um mercado estratégico para a Huawei, com investimentos para resultados a longo prazo e data centers no país. Ele também é mais um a bater na tecla da diversificação.
No cenário mais otimista, o futuro da nuvem tem tudo para ser “colaborativo, seguro e distribuído“, mas uma evolução contínua é necessária até atingir esse patamar.
A expansão de data centers por várias cidades ao redor do mundo traz problemas em estrutura e energia para esses locais. Saiba mais sobre o tema nesta matéria!