Crédito, MAURO PIMENTEL/AFP via Getty Images
- Author, Carol Castro
- Role, Do Rio de Janeiro (RJ) para a BBC News Brasil
Em 2020, nenhum morador do Complexo da Penha, na Zona Norte carioca, podia usar o uniforme do Chelsea, time de futebol da Inglaterra.
Naquela época, a Three, empresa de comunicação britânica, era o patrocinador máster da equipe. E as camisetas estampavam o número 3 bem grande. Mas o três é estritamente proibido nas favelas do Comando Vermelho (CV), por remeter ao Terceiro Comando Puro (TCP), seu maior rival na disputa por territórios no Rio.
Regras assim, impostas pela facção criada do Rio de Janeiro, regem a vida de milhões de pessoas que vivem nas comunidades controladas pelos traficantes do CV não apenas onde o grupo criminoso nasceu, mas também para os outros Estados para onde se expandiu em todo o país.
A lei do CV determina até como falar. Moradores de comunidades controladas pela facção no Rio contam que uma delas é que não se pode dizer “a gente” – para os membros do CV, só fala assim quem está do lado inimigo. Nas áreas do CV, é “nóis”. Se errar, leva uma bronca e a suspeita de ter relação com o TCP.
Nos últimos anos, o tráfico aprendeu com as milícias e expandiu seus negócios para além da venda de drogas. Passou a monopolizar o gás, a TV a cabo, a internet e o transporte.
Não existe outra opção aos moradores a não ser pagar R$ 130 por um botijão de gás nas áreas do CV no Rio – o preço gira em torno de R$ 90 onde o comércio não é controlado pelo crime. A internet varia de acordo com a velocidade contratada e vai de R$ 70 a R$ 130.
Os carros de aplicativo não podem subir o morro – para fazer esse serviço, existem os mototáxis estacionados logo na entrada da favela. Ou as vans, autorizadas pelos traficantes, que lucram com elas. A maioria dos moradores não paga energia elétrica.
Quem não paga, dizem moradores ouvidos pela reportagem, é cobrado diretamente pelos traficantes. Um morador de uma favela da Zona Sul dominada pelo CV contou que um conhecido apanhou por não pagar o gás e foi expulso da comunidade.
Também não é permitido brigar – só quem briga ou resolve conflitos são os membros do CV. Em casos de violência doméstica, se houver provas de que o homem bateu na mulher, o “desenrolo” com os traficantes pode resultar em espancamento com pauladas e expulsão da favela, ou, em casos mais graves, em assassinato.
Roubos são proibidos – e os infratores, em geral, têm uma das mãos cortadas pelo CV. Se, ainda assim, alguém insistir, pode “parar no pneu” (ser jogado dentro de pneus e incinerado). Olhar para “mulher de bandido” também é grave, digno de agressões físicas ou morte.
Nos bailes funks, se alguém espirrar lança-perfume (uma droga inalante ilícita) em algum traficante, vai sofrer retaliações. Se esbarrar em um deles – ou quiser tirar satisfação caso esbarrem em você – pode levar algum “esculacho”.
Se insistir na confusão, o CV lança mão da tortura e agressões. A denúncia do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ), resultado de investigações policiais e que baseou a operação nos complexos da Penha e do Alemão, tem imagens, por exemplo, de uma mulher dentro de um balde de gelo, com uma legenda acusando-a de ser “brigona” e “arrumar confusão no baile”. Outra foto mostra um homem no chão, aparentemente sendo agredido.
“A agressão física serve não apenas como castigo, mas também como um aviso visível a outros membros da comunidade, reforçando a autoridade do tráfico e a vulnerabilidade dos moradores”, explica a pesquisadora Julia Quirino, especialista em defesa e segurança, em seu livro Panóptico Criminal, no qual analisa como o CV governa as favelas sob seu domínio no Rio de Janeiro.
“Estas formas extremas de punição amplificam o clima de medo e submissão que o tráfico busca instaurar nas comunidades.”
As regras para as mulheres podem ser ainda mais restritivas. Casos extraconjugais, principalmente quando os “prejudicados” forem membros do CV, podem ser fatais.
“O fato de existir uma grande quantidade de armas dentro das favelas acrescenta uma violência a mais nas dinâmicas relacionadas às traições e ciúmes”, explica a socióloga e antropóloga Carolina Grillo, coordenadora do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da UFF (Geni/UFF).
“Situações que normalmente culminariam com um divórcio podem terminar num feminicídio.”

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Além disso, é proibido aos moradores manter relacionamentos com membros de outras facções ou com policiais.
Nas redes sociais, os moradores também precisam tomar cuidado com as postagens.
Em 2020, na favela da Rocinha, dominada pelo CV, após vazar um vídeo de John Wallace da Silva Viana, o Johny Bravo, chefe da favela, cercado por fuzis, metralhadoras e pistolas, os traficantes juraram de morte os responsáveis pela publicação.
“Quem gravou os cria no baile assinou contrato com a morte bglh [bagulho] não vai ficar assim, e será proibido gravar nos baile da rocinha, ASS: EQUIPE BRAVO”, escreveram em um perfil do Twitter, que hoje é o X.
Embora seja difícil controlar o uso dos celulares até mesmo para traficantes, os moradores sabem que não podem filmar ou fotografar a boca de fumo ou os carros que passam pela comunidade com homens armados.
Segundo Quirino, as barricadas, que impedem o trânsito livre dentro das favelas também servem para demarcar o território – ali, quem manda são os membros da facção. Cabe aos moradores respeitar as regras e andar sempre na linha.
Sob a justificativa de ser preciso conter a expansão da facção, mais de 2,5 mil policiais militares e civis cercaram e entraram nos complexos da Penha e do Alemão, na zona norte do Rio. Ao todo, 121 pessoas morreram, entre elas quatro policiais. Foi a operação policial mais letal da história do Brasil.
Organizações de direitos humanos dizem que foi uma chacina. O governador do Rio, Cláudio Castro (PL) negou, disse que a ação foi um sucesso e planeja fazer novas operações depois que as pesquisas de opinião mostraram um apoio popular expressivo.
Em uma audiência no Senado na quarta-feira (5/11), o subsecretário de inteligência da Polícia Militar do Rio, Daniel Ferreira, disse que a operação teve impacto “ínfimo” para desarticular o CV.
Moradores também relatam que não houve mudanças na rotina do tráfico após a megaoperação. No dia seguinte às mortes, quando os corpos ainda eram retirados da mata, havia traficantes armados com fuzis na comunidade.
Isso não acontece só nos complexos da Penha ou do Alemão. Em outras áreas dominadas pelo CV, relatos à reportagem dão conta de que os criminosos se armaram ainda mais – e, agora, carregam até artefatos explosivos na cintura, caso a polícia apareça por lá.
Os 10 mandamentos do CV
De acordo com o Mapa dos Grupos Armados, do Instituto Fogo Cruzado e o Geni, em 2023, pelo menos 18,2% da região metropolitana do Rio estava sob domínio de algum grupo armado – um crescimento de 105% em 16 anos. O CV dominava quase 52% desses territórios.
Assim como nos presídios, onde a facção nasceu, o CV – como todo grupo criminoso armado – estabelece regras de convivência dentro das favelas. Nos anos 1980, a organização criminosa criou um estatuto com dez mandamentos, amplamente conhecidos por moradores das comunidades sob seu controle, pesquisadores que estudam a facção e autoridades – e que todos os membros seguem até hoje:
- Não negar a pátria;
- Não caguetar [entregar os amigos];
- Não cobiçar a mulher do próximo;
- Não acusar em vão;
- Não conspirar;
- Falar a verdade mesmo que custe a própria vida;
- Ser coletivo;
- Fortalecer os menos favorecidos;
- Não quilingar [furtar outros colegas];
- Eliminar nossos inimigos.
Moradores ou traficantes que desrespeitam essas regras são punidos pelo grupo. E são eles quem definem quais penas serão aplicadas.
Ainda que as áreas do CV sigam à risca esses mandamentos, cada favela tem regras (e punições) próprias, que variam com as ordens dos chefes locais. Por exemplo, em áreas do CV onde o chefe é evangélico, outras religiões, como a umbanda e o candomblé, são proibidas.
Eliana Souza, coordenadora da ONG Redes da Maré, diz que a lei do CV se instaura para regular o cotidiano porque outras formas de autoridade não estão presentes ali.
“Enquanto em outras partes da cidade essa regulação passa pelo Estado, na maioria das favelas isso não existe”, diz Souza.
“O Estado atua ali de forma negligente e passiva. Isso acaba gerando um processo de certo controle territorial por outros atores. A gente está falando sobre serviços básicos: educação, coleta de lixo, ocupação de espaços públicos.”
Com a ausência do Estado em oferecer proteção, os traficantes assumem o poder. E impedem os moradores de procurar ajuda institucional quando precisam – todos os problemas da favela são resolvidos por eles.
“Não pode xisnovear. Isso é um dos terrores dos moradores: o medo de serem acusados de informantes. Então, eles têm muito medo de falar com jornalistas, ou registrar uma ocorrência na delegacia sobre alguma violência que tenha sofrido, mesmo que seja uma situação de violência doméstica”, diz Grillo.
“Muitas vezes, para mediar seus conflitos, como são impedidos de procurar a polícia, acabam procurando os próprios traficantes.”
Uma moradora de uma favela da Zona Norte do Rio contou sobre um caso pessoal. Ela morria de medo dos assédios frequentes de um bandido e, então, procurou o superior dele na boca. Ouviu a promessa de que o homem não voltaria a incomodá-la. E, de fato, ele nunca mais a assediou.
“Os moradores sempre aparecem como coniventes com o tráfico ou como vítimas apavoradas. Na maioria dos casos, essas pessoas viram esses meninos crescerem. Você conhece essas pessoas ou os parentes delas”, explica Souza.
“Não é uma relação de completo afastamento, existem possibilidades de diálogo, de interação, mas os moradores têm de ter uma vida muito cautelosa.”
Um morador do Complexo do Alemão confirma o relato de Souza. Ele contou que perdeu alguns conhecidos na última operação policial.
“Eu nasci e me criei aqui, sei todas as regras de cor e salteado. E é assim para quem vive aqui desde sempre. Dá para viver tranquilo – entre muitas aspas –, porque sabemos quem tem o poder. Sabemos o que pode ou não fazer”, disse o morador à reportagem.
“Nunca me envolvi com essas coisas, então eles nunca se envolveram comigo. Também não deixo de falar com colegas que se envolveram só por causa disso.”
O medo do aliciamento

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Aos 13 anos, Silva já tinha um cargo na boca de fumo do CV, na Vila Cruzeiro, uma das comunidades do Complexo da Penha.
Enquanto os pais pensavam que ele estava na escola, o menino trabalhava como fogueteiro (quem solta fogos quando avista a chegada da polícia no morro). Aprendeu a atirar e presenciou assassinatos de moradores e traficantes – que eram incendiados com pneus, em locais distantes das casas.
A história de Silva, que teve seu nome real omitido nesta reportagem para proteger sua identidade, ajuda a entender uma das principais preocupações de quem mora em uma favela dominada pelo tráfico. Ele saiu da vida do crime ainda na adolescência, quando os pais se mudaram da Vila Cruzeiro.
“Os moradores vivem um pânico em relação ao medo de criar seus filhos no ambiente de favela. Não só pelo medo dos tiroteios, da violência armada, mas pelo medo do aliciamento do tráfico”, explica Grillo.
“É uma dificuldade para os moradores, que têm de sair cedo para trabalhar e voltar à tarde, conciliar o trabalho com o cuidado das crianças, de forma a mantê-los afastados do tráfico”, completa.
Um estudo de 2024 da Unicef, braço das Nações Unidas para infância, avaliou o impacto dos conflitos armados na educação das crianças.
Só na capital fluminense, 58,4% das escolas, com cerca de 800 mil alunos do ensino fundamental e médio, estão localizadas em áreas de domínio de grupos armados. Em 2022, foram mais de 4,4 mil tiroteios nas imediações das escolas da região metropolitana do Rio.
Na megaoperação de outubro nos complexos da Penha e do Alemão, as escolas ficaram fechadas por pelo menos três dias.
O medo da polícia

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Na manhã da operação, um morador da Penha contou à reportagem que já começou a escutar os tiros às 6h. Não conseguiu trabalhar naquele dia, nem sair de onde mora.
Sua casa não foi alvejada por nenhum dos lados – os vizinhos, no entanto, não tiveram a mesma sorte. “Eu vi fotos de outras casas quebradas por policiais que buscavam alguém. Outras com muitos tiros”, conta o morador.
Há um consenso entre especialistas e os moradores ouvidos pela reportagem de que nada altera mais a rotina dos moradores do que as operações policiais.
“Além de estarem submetidos ao domínio arbitrário do tráfico, há a possibilidade de erupção de um tiroteio a qualquer momento por conta das operações policiais, que são muito frequentes nas áreas do CV”, diz Grillo.
“Elas precisaram incorporar ao cotidiano a possibilidade de não irem ao trabalho, de não levarem suas crianças para a escola, de ficarem deitadas no chão de casa. E são operações muito letais.”
Nos últimos 17 anos, segundo o Geni, foram registradas 707 intervenções policiais com morte na Grande Rio. No total, 2.936 pessoas morreram, sendo 31 policiais.
“É complicado. Como moro aqui desde criança, eu sei diferenciar o que é certo e o errado. Mas se for parar para pensar… se o lado errado é tão errado assim, por que quando eles [policiais] vêm aqui acontece tudo isso?”, questiona o morador da Penha.
“A gente não tem pena de quem estava na vida errada. A gente tem pena de quem perde a casa, quem tem o carro queimado. A gente sabe que moralmente eles sobem para fazer o certo. Mas como o certo dá tão errado desse jeito?”
Na operação do Alemão e da Penha, moradores contaram ter visto corpos decapitados e evidências de facadas.
O MPRJ instaurou uma investigação para apurar as mortes da ação no Rio e disse que verificará as câmeras corporais dos agentes. O Ministério Público Federal pediu para acompanhar os trabalhos.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirmou que a operação foi “desastrosa”, declarou que houve “matança” e disse que o governo federal pode fazer uma apuração independente dos fatos.
O ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes também cobrou informações do governo do Rio para verificar se foram tomadas medidas reduzir a letalidade policial.
O governo de Cláudio Castro (PL) nega que houve abusos e diz que a ação seguiu princípios da “legalidade, necessidade, proporcionalidade, moderação e conveniência”.
“A polícia não pode justificar essas barbaridades porque esses grupos armados também o fazem”, diz Souza.
“O Estado não pode se comparar, em momento algum, há um tipo de ação que é feita por pessoas que eles querem combater, e que estão na ilegalidade. O Estado precisa se fazer presente neste enfrentamento de outra forma.”