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domingo, novembro 16, 2025

‘Safári’ humano expõe indiferença ao mal

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O preço do silêncio é sempre alto. Os mortos no Valle de los Caídos (hoje Valle de Cuelgamuros) na Espanha, em Auschwitz, Sarajevo ou Gaza não puderam falar. E os que ousaram abrir nossos olhos não foram ouvidos à sua época. Os muitos abismos de indiferença humana levam tempo até receber uma primeira lufada de verdade. Mas, uma vez aberta a comporta, ela — a verdade — emerge e matura, ora em jorro, ora aos pingos. E graças a uma característica tão humana quanto a indiferença: a perseverança. A busca por justiça, mesmo que tardia, responde a nossa incontornável obrigação de confrontar traumas coletivos e responsabilizar seus perpetradores.

— Toda a bondade e o heroísmo ressurgirão, para depois ser destruídos e ressurgir novamente. Não é que o mal vença (nunca vencerá), mas ele apenas não morre — escreveu John Steinbeck a um amigo no auge da Segunda Guerra.

Na semana passada, a Justiça italiana desenterrou um dos capítulos mais infames de crueldade humana, ocorrido na Guerra da Bósnia três décadas atrás. Sarajevo, que sofria o cerco mais longo a uma cidade na história moderna da Europa, resistiu durante quatro anos ao estrangulamento promovido pelo exército sérvio-bósnio. Mais de 11 mil civis foram abatidos a troco de nada, a qualquer hora. Às sextas-feiras, diz a investigação aberta pela Procuradoria de Milão, ocorriam “safáris” especiais que se estendiam pelo fim de semana. Os caçadores? Cidadãos em sua maioria italianos abastados, socialmente inseridos. Reuniam-se em Trieste, cidade fronteiriça à antiga Iugoslávia, de onde eram transportados pela empresa iugoslavo-sérvia Aviogenex até as colinas ao redor da Sarajevo sitiada. A caça? Cidadãos bósnios indefesos, alvejados enquanto transitavam por determinadas ruas ou becos.

A investigação, liderada pelo procurador Alessandro Gobbis, foi iniciada após o jornalista e romancista Ezio Gavazzeni, em colaboração com os advogados Nicola Brigida e o ex-juiz Guido Salvini, apresentar uma denúncia de “homicídio qualificado por crueldade e motivos desprezíveis” contra esses grupos de “turistas-assassinos”.

— São pessoas com paixão por armas, que preferem ir para a cama com um rifle, com dinheiro à disposição e contatos certos de facilitadores entre a Itália e a Sérvia. É a indiferença do mal: tornar-se Deus e permanecer impune — descreveu Gavazzeni em entrevista ao La Repubblica.

Contou que um dos cinco participantes já identificados na ação voltou do fim de semana de extermínio “e continuou sua vida normalmente, respeitável aos olhos de todos”. Outro é dono de uma clínica de cirurgia plástica de Milão.

Ainda não se sabe quem organizava as viagens. Segundo a denúncia de 17 páginas, cada um desses “turistas-assassinos” pagava o equivalente a até R$ 600 mil em moeda anterior à introdução do euro na União Europeia. Mulheres e idosos podiam ser mortos gratuitamente. Quando o alvo era uma criança ou homem, havia cobrança adicional por parte das milícias leais a Radovan Karadzic, primeiro presidente daquela Sérvia independente. Demorou mais de duas décadas para Karadzic ser condenado pelo Tribunal Penal Internacional da ONU para a ex-Iugoslávia (TJPI) por genocídio e crimes contra a humanidade e cumprir prisão perpétua.

Tampouco ainda se sabe a real extensão da indiferença ou conivência de autoridades com o horror. Pelo menos um depoente no inquérito —um ex-oficial militar bósnio — alegou ter alertado a agência de inteligência militar da Itália (Sismi) sobre a prática macabra ainda em 1994 e disse ter sido informado de que a operação fora interrompida. A Sérvia, por seu lado, negou qualquer envolvimento nos assassinatos.

Faz um mal danado à alma e à mente investigar como transcorriam essas caçadas covardes, em que o matador nem precisava ser exímio — sua presa indefesa já estava à vista. O caçador também sabia que não levaria a carcaça humana para casa, como troféu. A excitação se resumia à aventura de matar civis cercados, por mero esporte.

Não há tribunal no mundo capaz de cassar a humanidade dessas criaturas. Mas é imperioso levá-las a julgamento para não apagar a História.

[Fonte Original]

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