Em meados de 2025, 117 milhões de pessoas no mundo haviam sido deslocadas por guerras, violência e perseguição. Três em cada quatro vivem em países que enfrentam exposição alta a extrema a riscos relacionados ao clima. Nos últimos 10 anos, desastres climáticos causaram cerca de 250 milhões de deslocamentos internos – o equivalente a 70 mil deslocamentos por dia. Sejam inundações que assolam o Sudão do Sul e o Brasil, calor recorde no Quênia e no Paquistão ou escassez de água no Chade e na Etiópia, o clima extremo está levando comunidades já frágeis ao limite.
Estas mensagens estão no relatório “No Escape II: The Way Forward” da agência da ONU para Refugiados, Acnur, lançado na COP30, em Belém. “Vivemos em uma era que não é propícia à cooperação internacional”, diz Filippo Grandi, o historiador que trabalha há 42 anos com crises humanitárias e há dez anos é o Alto Comissário das Nações Unidas para Refugiados. “A contradição é que vivemos em uma era que precisa de cooperação internacional mais do que nunca”.
As crises são maiores, a mudança climática se agrava e amplia conflitos já existentes, e os recursos para ajuda, diminuem. Até 2024 a Acnur recebia cerca de US$ 5 bilhões por ano, em média, dos países doadores. Em 2025 foram US$ 3,5 bilhões. Os EUA cortaram fluxos e outros os seguiram. “Há uma redução de recursos destinados às respostas humanitárias, o que é muito grave para as pessoas que ficaram sem assistência”, diz Grandi, que deixa a direção da agência em dezembro.
Mulheres e crianças são os que mais sofrem. Pessoas em deslocamento muitas vezes são acolhidas em regiões tão expostas à crise climática quanto seus locais de origem. Na América Latina, a Acnur também identifica o fenômeno de quem foge de grupos criminosos. A seguir os principais trechos da entrevista:
Valor: Qual a mensagem principal do relatório?
Fillipo Grandi: O relatório se chama “No Escape”. Não há como escapar: essa é a mensagem principal. Existe uma crise climática e a crise está tendo impacto maior sobre os mais vulneráveis. E entre os mais vulneráveis estão os refugiados, pessoas que fogem da guerra, da violência e, às vezes, até mesmo da mudança climática. A maioria das pessoas que sofre mais vive em países muito sensíveis à crise do clima e que estão no Chifre da África, no Sahel, no Afeganistão. É muito diferente viver em um país rico e na própria casa de vir de países muito frágeis e pobres e ir para outro lugar igualmente frágil.
Valor: Pode dar exemplos?
Grandi: No Sudão, houve uma guerra violenta por quase três anos. Pelo menos 12 milhões de pessoas foram forçadas a fugir, muitas dentro do Sudão e muitas para países vizinhos. Calcula-se que desses 12 milhões, 4 milhões de pessoas, ou seja, um terço, foram para países vizinhos como refugiados. Foram para o Chade que, nos últimos dois anos já recebeu mais de 1 milhão de refugiados. Só que o Chade é um dos quatro países mais pobres do mundo. Essas populações que fogem do Sudão estão migrando para áreas altamente expostas à mudança climática, especialmente impactadas por secas e inundações. Essas pessoas precisam de comida, remédios e tendas e se encontram, novamente, em uma situação perigosa do ponto de vista da crise do clima. As pessoas que as acolhem estão na mesma situação que elas.
Valor: Para a Acnur, qual a importância de estar na COP30?
Grandi: O nosso apelo aqui é para que não nos esqueçamos dessas pessoas. Os principais temas aqui são os planos de ação, as NDCs e os planos nacionais de adaptação. Esses planos devem levar em consideração as pessoas em movimento. Ouvi o presidente Lula mencionar esse ponto em seu discurso de abertura da COP30 e agradeço. Lula enfatizou a importância de incluir os migrantes, o que para nós também inclui os refugiados, nos planos de ação climática. Infelizmente não ouvimos essa posição com frequência. Nosso relatório apresenta inúmeras estatísticas que demonstram a vulnerabilidade das pessoas forçadas a fugir.
Valor: Pode dar algum número?
Grandi: Especialistas realizaram estudos em diversas situações com grande número de refugiados, como no Chade e em outros países. Até o momento, nessas áreas, a média de dias de calor extremo é de 100 por ano. Mas as estimativas mostram que, se as tendências climáticas atuais continuarem, haverá 200 dias de calor extremo até 2050. Quando a Europa, a América do Norte e talvez até o Brasil experimentam ondas de calor cada vez mais frequentes, todos percebem que há um problema climático. Para essas pessoas mais vulneráveis, o calor extremo pode chegar a 200 dias por ano. Essas pessoas não têm ar-condicionado, nem ventilador, nem eletricidade.
Valor: O que mais chamou a sua atenção no relatório?
Grandi: Existe uma relação muito clara entre guerras e a crise climática. Uma vez estive em Camarões. No Norte do país existem comunidades que vivem juntas. Algumas são pastoris, vivem da criação de gado, e outras são agricultoras, vivem dos cultivos. As mudanças climáticas estão se acelerando e a região, muito frágil, está ficando sem água. Antes, toda essa área era cercada pelo grande Lago Chade, mas que hoje praticamente desapareceu. Quem tem que cultivar a terra precisa cavar cada vez mais fundo e faz enormes buracos para coletar água e irrigar seus campos. Quem têm animais, vê os animais morrer porque caem dentro desses buracos. Isso desencadeou uma guerra entre as comunidades. Além disso, existem diferenças étnicas e religiosas. Um conflito relacionado ao clima também desencadeou conflitos étnicos, com milhares de mortes e de refugiados.
Vivemos em uma era que não é propícia à cooperação internacional; a contradição é que vivemos em uma era que precisa de cooperação”
Valor: Quando o senhor chegou à direção da Acnur, dez anos atrás, qual cenário que encontrou?
Grandi: Aqueles que são refugiados em seu próprio país nós os chamamos de deslocados internos. Quando comecei, o número total desses grupos no mundo era de 60 milhões, o que nos parecia enorme. Este número chegou a 123 milhões. Agora estamos em torno de 117 milhões. Assim, em dez anos, tantas crises, tantos conflitos e o fator climático causou um enorme aumento na população deslocada. É importante notar que existe também muita hostilidade. Lembro-me de que, há muitos anos, quando comecei, a questão dos refugiados não era negativa. Todos entendiam que essas pessoas precisavam de ajuda. Agora há uma hostilidade generalizada em relação a refugiados e migrantes e atribuo isso a políticos que manipularam a questão da migração para ganhar votos. Não é o caso no Brasil.
Grandi: O Brasil é um dos países que se manteve aberto a esses fenômenos. O Brasil acolhe muitos refugiados da Venezuela e de outros países. Mas, na maioria dos países, sobretudo nos industrializados, na Europa, nos Estados Unidos e na Austrália, tornou-se muito difícil ajudar as pessoas que chegam. Até 2024 esses países forneciam recursos para que organizações como a nossa pudessem ajudar gente na África e na Ásia. Mas a partir de 2025 os Estados Unidos e depois os países europeus reduziram o financiamento.
Valor: Como percebe essa situação?
Grandi: É muito perigosa. Na Acnur tivemos que reduzir um terço do nosso trabalho porque não temos fundos suficientes. Reduzimos significativamente nossas atividades escolares e de saúde, na esperança de que outras organizações possam nos cobrir. Mas outras organizações também estão sendo afetadas por essa crise financeira. Até 2024 recebíamos contribuições voluntárias dos Estados, ou seja, cerca de US$ 5 bilhões por ano, em média. Este ano recebemos US$ 3,5 bilhões. E em 2026 tenho receio que seja ainda menos. O pior é que não somos os únicos: todos os parceiros que trabalham conosco estão enfrentando o mesmo problema. Há uma redução de recursos destinados às respostas humanitárias, o que é muito grave para pessoas que ficaram sem assistência. A crise climática está aumentando, o dinheiro, diminuindo. Uma situação muito difícil.
Valor: A COP30 é importante?
Grandi: Há muitos questionamentos em torno destes eventos que custam muito e têm enorme pegada de carbono. Mas continuam importantes. Não são apenas os governos que participam dessas conferências, mas a sociedade civil, o setor privado e organizações internacionais como a Acnur. São os únicos momentos em que podemos estar juntos. É evidente que a ação climática está em crise. Os Estados Unidos não estão presentes. Há menos interesse do que há alguns anos. Mas a necessidade é maior do que era há dez anos. Portanto, devemos continuar a manter viva a pressão. A Acnur tem um documento fundamental, sua constituição, a Convenção de Refugiados de 1951. Se os países tivessem que se reunir hoje para ver o que fazer com os refugiados eu acredito que não teríamos este documento. Vivemos em uma era que não é propícia à cooperação internacional. A contradição é que vivemos em uma era que precisa de cooperação internacional mais do que nunca.
Valor: Como sair dessa situação?
Grandi: Não sei, é difícil porque toda a política se tornou nacionalista. Isso pode até servir para angariar votos em uma ou duas eleições, mas não resolve os problemas. Acredito que, infelizmente, só quando essas grandes crises tiverem um impacto ainda maior sobre as pessoas é que elas entenderão que precisam votar em políticos que promovam a cooperação internacional. É a única saída, mas não estou otimista.
Valor: Entre as populações que mais sofrem, quais grupos sofrem mais?
Grandi: Mulheres e crianças. Crianças representam cerca de metade do total de refugiados. Dez por cento sofre de desnutrição grave, de fome extrema. É um número enorme. Se observarmos a população refugiada, pessoas que fugiram de seus países, menos de 50% das crianças frequenta escolas. O percentual de crianças na escola a nível mundial é de quase 90%. Mas no caso de crianças refugiadas, é inferior a 50%. Trata-se de uma crise material, porque não há comida, mas também uma crise de educação, que é igualmente importante para a vida.
Valor: Qual o cenário na América Latina?
Grandi: A principal crise de refugiados na região é a da Venezuela. Estimamos que haja cerca de 8 milhões de venezuelanos migrantes e refugiados. A situação é um pouco complexa, porque não estão fugindo da guerra, mas sim de um país em crise. Mas são muitos, e estão indo para a Europa, para a Espanha, para o Brasil, para a Colômbia, para todos os países. Há outra crise, menos conhecida e menor, mas grave: a da Nicarágua. A Costa Rica abriga dezenas de milhares de refugiados nicaraguenses. São pessoas fugindo de violações dos direitos humanos. O que também estamos vendo é o impacto de grupos criminosos. Os primeiros casos que vimos foram em Honduras, El Salvador e Guatemala, na América Central. Mas agora vemos isso no Equador, por exemplo. Também vemos isso na Colômbia. Grupos criminosos que agem como se fossem grupos armados. Acreditamos que se uma pessoa foge dessa situação e alega ser refugiada, o caso deve ser investigado minuciosamente. Não se trata só de fugir do governo, também pode-se fugir de grupos criminosos porque praticam recrutamento forçado, violência às mulheres e opressão econômica. Essa é uma característica muito latino-americana.
Valor: Comparado ao cenário que encontrou dez anos atrás, onde o senhor situaria o início da crise climática?
Grandi: Está tudo interligado. Não existem refugiados climáticos. É uma combinação de fatores. Há dez anos observávamos certos fenômenos, mas não tínhamos tanta consciência.